quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor (2)

Composição do Leite Humano e do Leite produzido por outros Mamíferos

O leite é uma emulsão constituída aproximadamente por 20% de material sólido e 80% de água. Trata-se de uma solução coloidal de glóbulos de gordura (micela), as quais se encontram no interior de um fluido aquoso (Figura 1).



Figura 1- Representação esquemática de uma micela.

Cada glóbulo de gordura é circundado por uma membrana constituída por fosfolípides e proteínas; estas substâncias, denominadas emulsificantes, mantêm os glóbulos separados individualmente evitando que estes se juntem para formar grânulos sólidos de gordura e também agem como protetores dos próprios glóbulos de gordura da ação das enzimas digestivas de gorduras presentes na fração líquida do leite. As vitaminas lipossolúveis A, D, E e K encontram-se presentes no interior da porção gordurosa do leite. É importante assinalar que o leite humano contem uma enzima denominada lipase, a qual quebra a gordura transformando-a em pequenos glóbulos, os quais são mais facilmente digeridos.

As maiores estruturas químicas presentes na porção líquida do leite são formadas por micelas de caseína; estas se constituem em milhares de moléculas de proteínas ligadas entre si com o auxílio de partículas em escala nanométrica de fosfato de cálcio. Estas micelas desempenham importantes papeis, mas a mais notória é impedir que as mesmas formem agregados sólidos. A camada mais externa das micelas é constituída por um tipo de proteína denominada kappa-caseina, a qual se encontra na porção exterior do corpo da micela no interior do fluido que a circunda. Estas moléculas de kappa-caseina possuem carga elétrica negativa e, portanto, se auto-repelem, fenômeno que mantém as micelas individualmente separadas, evitando assim que em condições normais, sejam formados grumos sólidos, preservando-as em uma suspensão coloidal estável no fluido em que estão imersas.

O leite contem ainda uma grande série de outras proteínas além da caseína, as quais são mais solúveis em água e não formam grandes estruturas químicas. Como estas proteínas permanecem suspensas no soro do leite quando a caseína forma coágulos, elas passaram a ser denominadas em conjunto de proteínas do soro.
Tanto os glóbulos de gordura quanto as pequenas micelas de caseína, as quais têm tamanho suficiente para defletir a luz, contribuem para a coloração branca do leite.

O carboidrato do leite, a lactose, confere-lhe um sabor levemente adocicado. A lactose é um dissacarídeo constituído pelos seguintes monossacarídeos: glicose e galactose (Figura 2). Na natureza, a lactose é praticamente encontrada apenas no leite, porém está também presente em baixíssimas concentrações em algumas plantas.

Figura 2- Representação simplificada da molécula da lactose e a consequente hidrólise dando resultado aos monossacarideos Glicose e Galactose.

O leite humano contem 1,1g% de proteínas, 4,2g% de gorduras, 7,0g% de carboidratos e 0,2g% de minerais oferecendo 72 kcal/100ml (Tabela 1). O principal carboidrato do leite humano é a lactose, porém vários outros oligossacarídeos semelhantes à lactose foram identificados em pequenas concentrações. A fração de gordura contem triglicerídeos específicos, tais como ácidos oléico e palmítico, assim como significativas quantidades de lipídeos com ligações trans, os quais são benéficos à saúde. Dentre eles destacam-se os ácidos vacênico e linoléico, os quais correspondem a cerca de 6% da gordura total. As principais proteínas são a beta-caseina, alfa-lactoalbumina, lactoferrina, IgA secretora, lisosimas e a soro-albumina. Compostos nitrogenados não protéicos que incluem uréia, ácido úrico, creatina, creatinina, amino-ácidos e nucleotídeos correspondem a aproximadamente 25% do conteúdo de nitrogênio. Foi demonstrado também que o leite humano fornece uma substância que é um neuro-transmissor (endocannabinoide) com ação tranqüilizante. O leite humano também é provido de todas as vitaminas necessárias para o crescimento e o desenvolvimento adequados do recém-nascido e do lactente até pelo menos os primeiros 6 meses de vida, a saber: Vitaminas A, D, C, E, B1, B2, B6, B12, ácido pantotênico, biotina, niacina e ácido fólico, além de quantidade apropriada de Ferro.

A composição do leite de alguns outros mamíferos, que são frequentemente utilizados na nossa dieta seja in natura ou sob a forma de sub-produtos como por exemplo queijos, difere substancialmente do leite humano, e, por esta razão estes leites são completamente inapropriados para a alimentação de recém-nascidos e lactentes até o segundo ano de vida, pelo menos.


No nosso próximo encontro continuaremos a discutir a importância da promoção do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor (1)

Introdução

A OMS recomenda a prática do aleitamento natural exclusivo durante os 6 primeiros meses de vida, e a partir desta idade deve-se começar, de forma gradual, a introdução dos alimentos sólidos. A suplementação do aleitamento natural é recomendada até pelo menos os 2 anos de idade desde que este seja um desejo recíproco entre mãe e filho (Figuras 1-2-3 & 4).

Figura 1- Minha filha Walkyria ainda recém-nascida que foi amamentada de forma exclusiva até o sexto mês de vida por sua mãe Fábia.

Figura 2- Mães da favela da cidade Leonor amamentando seus filhos no programa de promoção ao aleitamento materno introduzido nesta comunidade no início da década de 1990 pela Prof. Dra. Fátima Lindoso, Professora Titular de Pediatria da Universidade Federal de Goias, à época minha aluna de Doutorado.


Figura 3- Profa. Dra. Fátima Lindoso atendendo um de seus pacientes do exitoso programa de promoção do aleitamento materno no início da década de 1990, ainda como aluna do programa de Doutorado da Escola Paulista de Medicina e sob minha orientação.

Figura 4- Mulher índia do Parque Indígena do Xingu ainda amamentando sua filha com mais de 1 ano de idade, prática habitual na comunidade indígena.

O aleitamento natural continua a oferecer efeitos benéficos à saúde da criança até mesmo durante a fase pré-escolar, tais como: baixo risco da Síndrome da Morte Súbita, inteligência mais refinada, menores riscos de contrair infecções das vias aéreas superiores, gripes, menores riscos de contrair determinados tipos de câncer, em especial a leucemia na infância, baixo risco de instalação de diabete, menores riscos de asma e eczema, diminuição de problemas dentários, risco menor de desenvolver obesidade em idades mais avançadas, e riscos menores do surgimento de afecções psicológicas.

O aleitamento natural também fornece benefícios à saúde da mãe, posto que auxilia no retorno do útero ao seu tamanho natural original, antes de haver engravidado, assim como também contribui para que a mulher retorne ao seu peso anterior à gravidez. O aleitamento natural também reduz o risco de contrair câncer de mama em idade mais avançada.

Sob a influência dos hormônios pro-lactina e oxitocina as mulheres passam a produzir leite após o nascimento da criança para poder alimentá-lo. O leite inicialmente produzido chama-se colostro, o qual é muito rico em imunoglobulina A secretora a qual recobre o trato digestivo protegendo-o das agressões do meio exterior. Esta proteção ajuda o recém-nascido até que seu próprio sistema imunológico esteja funcionando plenamente, e, ao mesmo tempo, possui um efeito laxativo ao contribuir para que o mecônio seja eliminado e, desta forma, também prevenir o acúmulo de bilirrubina, que é um fator contribuinte para o surgimento da icterícia.

A quantidade de leite materno produzida depende da freqüência que a mãe oferece o seio, ou seja, quanto mais freqüentemente o recém-nascido mamar, maior será a produção do leite. É extremamente recomendável que o recém-nascido seja alimentado sob o regime da livre demanda, isto é, quando estiver com fome, ao invés de se estabelecer um esquema rígido de horário de alimentação.

A composição exata do leite materno varia de dia para dia e mesmo durante o dia, na dependência da dieta materna e do próprio ambiente e inclusive em pleno ato de mamar. Por exemplo, o leite liberado no início da mamada é mais “aguado”, com baixo teor de gordura e maior concentração de carboidrato em relação ao leite liberado mais tardiamente, à medida que a lactação vai progredindo, o qual é mais cremoso com maior teor de gordura (Figura 4).

Figura 5- Duas amostras de leite humano obtidas em diferentes momentos da lactação: à esquerda leite inicial "aguado" com baixo teor de gordura e à direita leite tardio cremoso com alto teor de gordura.
Na verdade a mama nunca pode ser verdadeiramente esvaziada, porque a produção do leite se constitui em um processo biológico contínuo.

O leite humano além de fornecer apropriadas concentrações de proteínas, gorduras e carboidratos, também oferece vitaminas, sais minerais, enzimas digestivos e hormônios, enfim todos os ingredientes que o lactente necessita para crescer dentro do seu potencial genético. O leite humano também contém anticorpos e linfócitos do organismo materno o que auxilia na prevenção de infecções. A função imunológica do leite humano é individualizada, posto que a mãe através do toque físico ao cuidar do lactente entra também em contato com os microorganismos que colonizam o lactente e, conseqüentemente, estes últimos induzem o organismo materno a produzir anticorpos específicos contra os próprios microorganismos, bem como células imunologicamente competentes.

Histórico do Aleitamento Natural: apogeu e declínio
A lactação é universalmente reconhecida como uma das características exclusivas dos mamíferos, ocorre há milhões de anos, e, na natureza, desde sempre, as fêmeas destas espécies do mundo animal executam esta prodigiosa tarefa de preservar a vida de suas crias sem necessitar de se espelhar em qualquer modelo de ensinamento prévio. Trata-se, portanto, de um ato instintivo de preservação da espécie e que ao mesmo tempo cria, pelo menos no ser humano, um elo indissolúvel de recíproco afeto. Desde o surgimento do Homo erectus a mulher criava sua prole exclusivamente com seu próprio produto da glândula mamária, o leite, desde os períodos mais vulneráveis da existência dos seus conceptos até que estes viessem a ter plena independência na busca dos alimentos alguns anos mais adiante.

Até o início do século XIX a amamentação era uma regra praticamente universal em vigência; entretanto, em decorrência das alterações do comportamento biopsicossocial do ser humano iniciadas no fim do século retrasado acompanhando o começo da era da modernização oriunda da industrialização, particularmente no mundo ocidental, passou-se concomitantemente a ser observada uma progressiva e disseminada mudança no hábito da prática do aleitamento natural, caracterizada por um nítido declínio da mesma. Inicialmente este fenômeno teve lugar nas classes mais abastadas dando origem ao surgimento das amas-de-leite, que em geral eram as serventes das famílias (na verdade praticamente escravas), função esta que posteriormente passou a ser ocupada pelas nutrizes remuneradas. Para exemplificar esta afirmativa, há documentos cientificamente comprovados os quais atestam que em Paris, França, em 1780, dentre as 21.000 crianças que aí nasceram apenas uma pequena parcela foi amamentada por suas próprias mães (Organización Mundial de la Salud 1981, 245 pg); a grande maioria delas foi criada por amas-de-leite mercenárias. Este fenômeno de abrangência praticamente geral no mundo ocidental pode ser comprovado por inúmeras pesquisas realizadas em diferentes países. Assim é que na Inglaterra, em 1947, 41% dos lactentes acompanhados em New Castle Upon Time recebiam alimentação mista com um mês de vida, passando para 67% aos três meses de idade. Na mesma época, em Southport, 76% dos lactentes com dois meses de vida já estavam recebendo aleitamento misto; em Londres, em 1969, constatou-se que apenas 33% das mães amamentavam seus filhos exclusivamente ao seio durante o primeiro mês. Na Suécia, o aleitamento natural de forma exclusiva até o segundo mês de vida sofreu vertiginosa queda de 85% em 1944, para 35% em 1970 (UNICEF 1980).

No Brasil, este mesmo fenômeno começou a ocorrer algum tempo depois, mas já em 1873, Correia de Azevedo reclamava pela adoção de medidas que normatizassem a prática do aleitamento mercenário, para logo a seguir, o Barão de Lavradio, em 1875, passar a reivindicar dos órgãos competentes a regulamentação desse serviço considerado à época de doméstico. Como resultado deste pleito, em 1876, foi criado por Moncorvo, o primeiro projeto de regulamentação da atividade desse tipo de nutrizes. Em 1901, foi fundado o Instituto de Proteção e Assistência à Infância, no Rio de Janeiro, o qual, entre outros objetivos, tinha a finalidade de oferecer assistência médica e controlar o estado de saúde das amas-de-leite. Entretanto, apesar dos esforços invidados por estes próceres, uma modalidade de lei que viesse a regulamentar a atividade das amas-de-leite jamais foi promulgada e, portanto, nunca chegou a ser implantada (Ama de Leite, Clin. Pediat. 3;91-4,1985). Em 1960, a prática do aleitamento natural ainda era universal, e o tempo de duração variava de 4 a 12 meses. Na década de 1970, porém, este quadro sofreu uma grande transformação, e o declínio da prática do aleitamento natural tornou-se evidente e alarmante. Sigulem e Tudisco (Arch. Latino-Amer. Nutr. 3;401-16,1980), em estudo realizado na cidade de São Paulo constataram que a mediana da duração do aleitamento natural era inferior a 30 dias. Por outro lado, Sichieri e Moura (J Pediatr. 55;323-6,1983), em 1982, observaram que das 492 crianças acompanhadas em um Posto de Saúde da periferia de São Paulo, 54,5% haviam sido desmamadas em período de tempo igual ou inferior a 30 dias, e somente 12,5% dos lactentes haviam recebido aleitamento natural por tempo prolongado. Lima, Wehba e Fagundes-Neto (Rev. Paulista Pediatr. 8;55-8,1990) demonstraram que, na década de 1980, também nas classes sócio-econômicas abastadas a prática do aleitamento natural exclusivo encontrava-se em desuso, posto que a idade média do desmame ocorreu aos 10 dias de vida do lactente e a principal causa atribuída ao fracasso da amamentação, em 65,5% dos casos foi a hipogalactia.

No entanto, em virtude dos alarmantes problemas de saúde surgidos em decorrência do abandono da prática do aleitamento natural, que redundou no aumento significativo da mortalidade infantil, em especial nas parcelas sócio-econômicas mais vulneráveis da sociedade, o que foi cientificamente comprovado, estes fatos chamaram a atenção dos órgãos internacionais responsáveis por cuidar da qualidade de vida das populações, e passou-se, então, a implementar políticas de saúde pública para se tentar reverter este dramático quadro a partir do início da década de 1980. No nosso próximo encontro passarei a detalhar mais extensamente as medidas adotadas que resultaram no renascimento da prática do aleitamento natural no mundo ocidental.