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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (4)

Escherichia coli enteropatogênica: mecanismos de patogenicidade

Cravioto e cols., em 1979 (Curr Microbiol 3:95-9), descreveram uma propriedade característica das EPEC a qual se manifesta por uma adesão localizada quando estes microorganismos são expostos em cultura de tecido às células Hep-2 ou HeLa (Figura 1).

Figura 1- Típica adesão localizada de uma cepa de Escherichia coli enteropatogênica em cultura de células HeLa.

Este padrão de adesão localizada é determinado por um plasmídeo que foi denominado EAF (Escherichia coli adherence factor). Vale ressaltar que plasmídeo é um material genético extra-cromossômico e como tal pode ser transferido de bactéria a bactéria através da conjugação sexual, e, portanto, esta propriedade pode ser adquirida por um novo microorganismo até então desprovido da capacidade de provocar adesão localizada. Giron e cols., em 1991 (Science 254:710-13), identificaram o fator responsável pela mediação da adesão localizada; estes autores descreveram fímbrias de 7nm de diâmetro produzidas pelas cepas de EPEC, as quais têm a tendência de se agregar e formar bandas, e por isso foram denominadas “bundle-forming pilus” (BFP) (Figura 2).

Figura 2- Ultramicrofotografia de uma Escherichia coli enteropatogênica e suas fímbrias.

Além destas propriedades específicas das cepas de EPEC deve-se agregar outro mais, a que representa a marca histopatológica característica sobre o epitélio do intestino delgado das infecções por EPEC, ou seja, a lesão denominada “attaching-and-effacing” (AE) (aderência e desaparecimento) (Figura 3) que foi pela primeira vez descrita em crianças portadoras de diarréia persistente por Rothbaum e cols., em 1982 (Gastroenterology 83:441-54).


Figura 3- Ultramicrofotografia de um enterócito mostrando vários microorganismos "sentados" sobre a superfície epitelial.
A íntima adesão da bactéria com a membrana do enterócito causa uma ruptura da porção apical do citoesqueleto e dá a nítida aparência de que a bactéria encontra-se “sentada” sobre um pedestal da membrana celular (Figura 4).

Figura 4- Ultramicrofotografia de um enterócito demonstrando a característica lesão em pedestal.

Esta íntima adesão AE é codificada por um gene denominado Escherichia coli attaching-effacement” (eae) e efetuada pela produção de uma proteína denominada intimina (Figura 5).
Figura 5- Modelo esquemático do mecanismo de patogenicidade da Escherichia coli enteropatogênica.

Posteriormente, Fagundes-Neto e cols., em 1995 (Acta Paediatr 84:453-5), descreveram a capacidade de uma cepa de Escherichia coli O111:H2 de penetrar o epitélio intestinal de uma criança portadora de diarréia aguda. Tratou-se de um lactente de 11 meses de idade internado no Hospital Universitário de Brasília com diarréia de 5 dias de duração, associada a vômitos e febre; o paciente encontrava-se assintomático até o início de um quadro de diarréia aquosa profusa que acarretou desidratação moderada. Inicialmente o paciente foi tratado na sala de urgência tendo recebido terapia de reidratação oral, porém como o processo diarréico se acentuou associado a acidose metabólica o paciente foi internado na enfermaria para receber hidratação intravenosa e correção do distúrbio metabólico. A cultura de fezes revelou a presença de Escherichia coli O111:H2 e o mesmo agente enteropatogênico foi isolado na cultura da secreção jejunal. No quinto dia de internação devido à má evolução clínica o paciente foi submetido à biópsia jejunal, cuja avaliação à microscopia óptica comum revelou atrofia vilositária sub-total associada a nichos de bactérias Gram – firmemente aderidas à porção apical dos enterócitos. A análise à microscopia eletrônica de transmissão revelou a presença de bactérias aderidas à superfície apical dos enterócitos com formação de pedestal e penetração das mesmas no interior dos enterócitos. O paciente apresentou intolerância alimentar múltipla e necessitou ser alimentado com fórmula à base de hidrolisado protéico, a qual foi bem tolerada. Após 15 dias de internação o paciente recebeu alta hospitalar curado do episódio diarréico (Figuras 6 – 7 – 8 – 9 - 10).
Figura 6- Microfotografia de material de biópsia do intestino delgado revelando atrofia vilositária sub-total.

FIgura 7- Microfotografia em maior aumento de material de biópsia de intestino delgado mostrando nichos de bactéria sobre o epitélio do intestino delgado.

Figura 8- Microfotografia em corte semifino do intestino delgado evidenciando nichos de Escherichia coli O111:H2 firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.


Figura 9- Ultramicrofotografia de um enterócito evidenciando a presença microorganismos de Escherichia coli O111:H2 no seu interior.


Figura 10- Ultramicrofotografia da infecção de uma célula HeLa pela cepa de Escherichia coli O111:H2. Notar a presença de um microorganismo no interior da célula e outro na porção apical da célula HeLa com formação de pedestal.

Em resumo podemos afirmar que a patogenicidade da EPEC se dá em um modelo de 3 estágios, a saber: 1- adesão localizada que representa a interação inicial entre a bactéria e a célula epitelial, a qual é mediada pelas fimbrias mas também envolve lócus cromossômicos e plasmidiais; 2- genes cromossômicos iniciam um sinal de transdução que resultam na liberação intracelular de Cálcio e conseqüente desaparecimento das microvilosidades; 3- a interação da intimina e produtos do gene eae que causarão a firme adesão da bactéria ao enterócito formando a lesão em pedestal.

No nosso próximo encontro passarei a descrever os mecanismos fisiopatológicos da infecção pelas cepas de Escherichia coli enteroagregativa.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (3)

Fatores de Risco para a ocorrência de Diarréia Persistente (DP)

A evolução de um episódio de diarréia aguda para persistente depende fundamentalmente de circunstâncias que envolvem a interação entre o hospedeiro, o agente agressor e seu meio ambiente. No que diz respeito ao hospedeiro os principais fatores predisponentes para a perpetuação da diarréia estão ligados à ausência da prática do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, função imunológica deficiente, desnutrição protéico-calórica e idade precoce. Com relação ao agente agressor, alguns microorganismos enteropatogênicos apresentam maior capacidade de provocar danos funcionais e morfológicos à mucosa intestinal e, portanto, são potencialmente mais predisponentes a causar o prolongamento do processo diarréico. Do ponto de vista do meio ambiente os baixos níveis sócio-econômico-educacionais dos pais ou cuidadores, hábitos de higiene alimentar precários, insalubridade da água e deficiência, ou mesmo ausência, da rede de esgotos, são fatores extremamente importantes que contribuem para a ocorrência da DP.

Etiopatogenia

Vários agentes etiológicos causadores de Diarréia Aguda têm sido envolvidos na gênese da DP, tais como: Escherichia coli enteropatogênica (EPEC), Escherichia coli enteroagregativa (EAEC), Salmonella, Shigella, Campylobacter, Cryptosporidium, Giárdia, Norovirus e Rotavirus, dependendo das características geográficas, sasonais, ambientais e das especificidades das populações estudadas. No nosso meio os agentes etiológicos mais frequentemente descritos como causadores de DP são as diversas cepas de EPEC e EAEC. Por este motivo, no presente manuscrito dedicarei particular atenção a estes 2 tipos de microorganismos enteropatogênicos (Figura 1).

Figura 1- A importância no nosso meio das cêpas de EPEC como causa de Diarréia Persistente.

EPEC

No nosso meio os sorogrupos de EPEC O111 e O119 representam aproximadamente 80% de todos os sorogrupos (são cerca de 20) isolados em crianças com diarréia. A Escherichia coli foi descoberta, em 1885, pelo Pediatra alemão Theodore Escherich que a denominou Bacterium coli commune, e a razão de utilizar esta terminologia foi para indicar sua ocorrência universal no intestino grosso dos indivíduos saudáveis. Entretanto, o próprio Escherich já suspeitava que a E. coli pudesse agir como agente enteropatogênico para o ser humano, quando por alguma razão estivesse deslocada do seu habitat natural, ou seja fora do intestino grosso. Para confirmar tal suspeita, este pesquisador demonstrou a patogenicidade da E. coli ao injetar um caldo de cultura da mesma em alças intestinais isoladas de coelho, provocando grande acúmulo de secreção de fluidos e eletrólitos. No entanto, o primeiro cientista a comprovar cabalmente a associação de cepas antigenicamente homogêneas de E. coli como causadoras de diarréia foi o Microbiologista John Bray, em 1945, na Inglaterra. Bray, trabalhando em colaboração com o Pediatra Thomas Beaven e com o Biólogo Stevenson, descreveu um surto de diarréia em lactentes internados no Hillingdon Hospital, Uxbridge, provocado por um novo agente enteropatogênico que apresentava elevada capacidade de virulência e que causou altas taxas de mortalidade (Figura 2).

Figura 2- Placa comemorativa a John Bray pela descrição da Escherichia coli enteropatogênica.

Vale a pena recordar que até aquela data somente eram conhecidos 3 agentes enteropatogênicos, a saber: Vibrio cholera, Salmonella e Shigella. Desta forma, o até então denominado Bacterium coli, passou a ser incorporado na lista dos agentes provocadores de diarréia, porém com uma característica especial, afetava crianças de baixa idade e provocava alta taxa de letalidade. Foi Kauffman, em 1947, o responsável pela mudança do nome de Bacterium coli para Escherichia coli, em homenagem ao seu descobridor o Pediatra alemão Theodore Escherich. Kauffman também foi o responsável pela caracterização dos diferentes grupos sorológicos da E. coli por meio da determinação dos antígenos O (somático), K (capsular) e H (flagelar) (Figura 3).

Figura 3- Grupos sorológicos de Escherichia coli.

A partir do esquema de classificação proposto por Kauffman constatou-se que a bactéria isolada por Bray e a amostra Aberdeen alfa, isolada por Giles em um surto de diarréia em lactentes naquela localidade, na Escócia, eram na realidade a E. coli O111. Estudos realizados por Kauffman e Du Pont em crianças portadoras de diarréia, no período de 1945 a 1950, em várias partes do mundo, mostraram que as E. coli isoladas pertenciam aos sorogrupos O55 e O111. No Brasil, foi o microbiologista Luis Rachid Trabulsi o pioneiro em descrever as cepas de E. coli causadoras de diarréia em crianças. Professor Trabulsi e cols., em 1961 (Ver. Inst. Med. Trop. São Paulo 3, 267) estudaram 80 crianças com diarréia, internadas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo sido isolados em 17 delas colibacilos enteropagênicos, com predomínio das E. coli O119, O126, O26, O55 e O111.

A descoberta de Bray e seus colaboradores foi um avanço científico de enorme importância e, ainda que tardiamente, valeu o reconhecimento dos seus sucessores no Hillingdon Hospital, pois somente em 1968 foi realizado um evento em homenagem aos autores em referência a aquela descoberta. Naquela ocasião foi confeccionada uma placa comemorativa para celebrar a grande descoberta de Bray, que lá esteve presente juntamente com Beaven e Stevenson (Figura 4).

Figura 4- O Microbiologista John Bray (esquerda), o Pediatra Thomas Beavan (centro) e o Biólogo J. Stevenson (direita) no dia da homenagem em 1968.

Bray pode, então, contar com riqueza de detalhes todas as dificuldades, as frustrações e as dramáticas situações com as quais tiveram de conviver durante o período de aproximadamente 5 anos desde sua chegada ao hospital até finalmente poder confirmar cabalmente a existência deste novo agente enteropatogênico. Este relato está publicado na revista Archives of Disease in Childhood 48; 923-26, 1973, e vale a pena ser parcialmente transcrito para que se tenha uma idéia mais precisa do que representa a obstinada luta de um pesquisador para alcançar um determinado objetivo. Com a palavra John Bray: “Quando eu fui contratado pelo Hillingdon Hospital para trabalhar como patologista no Serviço de Emergência, em 1939, no começo da II Guerra Mundial, uma das minhas tarefas era realizar as necrópsias dos pacientes que faleciam no hospital. Eu supus que teria um grande trabalho com os falecimentos em decorrência dos bombardeios que a Inglaterra sofria naquela época. Entretanto, felizmente esta situação não ocorreu, mas logo me dei conta de que havia um grande número de óbitos de lactentes que recebiam aleitamento artificial. Estes lactentes faleciam devido a gastroenterite, os quais apresentavam uma característica que chamava minha atenção. Em um primeiro momento estas crianças aparentemente não apresentavam maior gravidade mas dentro de uma ou horas mais tarde encontravam-se agonizantes. Para minha surpresa os exames bacteriológicos das fezes não revelavam nenhum dos agentes enteropatogênicos conhecidos na época; tudo que era encontrado nas placas de cultura das fezes era Bacterium coli considerado da flora colônica normal, e além disso a necrópsia não revelava qualquer achado de valor diagnóstico que pudesse justificar a morte daquelas crianças. Entretanto, em um determinado dia Dr. Beavan veio ao meu laboratório e fez o seguinte comentário: ”Você sabe, eu consigo identificar estes casos de gastroenterite assim que eles são internados, porque eles exalam um odor característico de esperma”. Não fiz qualquer observação a respeito mas esta era a dica que eu estava esperando, porque desde a primeira placa de cultura, dentre as inúmeras que costumava realizar, que eu havia pego da bancada de um caso de gastroenterite e que evidenciava uma flora aparentemente normal, exalava um forte odor espermático, mas que era rapidamente evanescente. Decidi, então, levar para a enfermaria 2 placas de cultura, uma com Proteus, bactéria pertencente à flora fecal normal, que exala um forte odor caracterísitco, e uma outra de Bacterium coli com odor espermático, como costumávamos designar a E. coli à época. Entreguei as duas placas à enfermeira que cuidava dos pacientes com gastroenterite para que ela as cheirasse; quanto à cultura de Proteus ela disse que tinha um odor parecido a cola, mas quando ela cheirou a outra, imediatamente exclamou: "ela cheira igualzinho ao bebê Wickens”. Então eu retruquei, esta é a cultura de fezes do bebê Wickens, e, naquele exato momento, tive a certeza que havia solucionado o problema e um novo agente enteropatogênico estava sendo descoberto. A partir daí não podia apenas me ater em estabelecer o diagnóstico pelo odor exalado da placa da cultura de fezes, era necessário avançar e para tal era necessário elaborar um anti-soro que aglutinasse com esse tipo de bactéria. Para tal eu injetei a cultura de fezes do bebê Wickens (que infelizmente veio a falecer) na veia da orelha de um coelho, e, assim obtive um anti-soro. A partir daí tive que realizar inúmeros testes de aglutinação com diferentes cepas de Bacterium coli isoladas das fezes de indivíduos normais e com diarréia para poder comprovar minha suspeita. Este trabalho tomou-me muito tempo e estendeu-se por um período de 4 anos, nem sempre com resultados animadores, e, em muitos momentos provocando-me grandes frustrações, porque as aglutinações nem sempre ocorriam como o esperado. Porém, após muita insistência meu anti-soro passou a reagir de forma consistente com os micro-organismos isolados das fezes das crianças com gastroenterite, e eu me permito afirmar que isto foi um verdadeiro triunfo para controlar esta doença potencialmente fatal. O teste passou a ser um meio rapidamente efetivo para diferenciar os casos de diarréia por E. coli daqueles outros de origem irrelevante. Pela primeira vez o médico passou a ser capaz de diferenciar os casos de diarréia infecciosa grave daqueles observados em crianças saudáveis. É possível que nos dias atuais existam melhores métodos diagnósticos, mas naquela época este teste revelou-se algo absolutamente novo. Em conclusão, atualmente o micro-organismo isolado teve sua estrutura antigênica mais detalhadamente examinada e foi denominado Escherichia coli O111:B4. A cepa O111:B4 Wickens original ainda está conosco, e permanece com seu poder de causar gastroenterite em lactentes, mas os dias nos quais milhares de crianças no Reino Unido morriam a cada ano desta enfermidade já não existem mais”.

A descoberta de Bray e Beavan nos deixa inúmeros ensinamentos, além do próprio mérito científico, que por si só se revelou de importância clínica inestimável (Figura 5).

Figura 5- Graças aos achados pioneiros de Bray e Beavan aliados aos novos conhecimentos fisiopatológicos da infecção causada pelas cêpas de EPEC e também aos avanços científicos e tecnológicos da Medicina é que nosso paciente A, diferentemente de Wickens e tantas outras crianças que faleceram e continuam a falecer por esta grave infeccção, já está fora de perigo, e, embora ainda apresente fezes amolecidas está em franco processo de recuperação clínica e nutricional.

Em primeiro lugar, nos ensina o quão importante é levar em consideração a observação acurada dos mínimos detalhes para se alcançar grandes descobertas, no caso além dos conhecimentos de bacteriologia, existentes na época, foi a partir do uso de um órgão do sentido, o olfato, que se abriu todo um novo caminho para o sucesso da pesquisa em questão; em segundo lugar, o trabalho associativo com um colega de outra disciplina, o Pediatra, o profissional da saúde que vive intensamente à beira do leito o drama do seu paciente que sofre de uma enfermidade que aparentemente não pode ser debelada, mas que nem por isso deixa de buscar uma solução para salvar a vida daquele ser gravemente enfermo, mesmo tendo que vivenciar inúmeras frustrações na sua luta entre a doença e a busca incessante da saúde; em terceiro lugar, valorizar a enfermeira acreditando ser ela uma profissional tão envolvida quanto quaisquer outros no cuidado do paciente a ponto de demonstrar sua capacidade de perceber nitidamente as diferenças organolépticas entre os micro-organismos que cresceram na placa de cultura. Infelizmente, o que ainda persiste a ocorrer nos países em desenvolvimento é a realidade que Bray vivenciou nos anos 1940 na Inglaterra, e que continua a ser o desafio enfrentado em muitas frentes de batalha, tanto nos avanços da intimidade do processo infeccioso causado pelas cepas de EPEC quanto na melhor abordagem diagnóstica e terapêutica, como continuaremos a descrever no nosso próximo encontro.