segunda-feira, 4 de maio de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (6)

O papel desempenhado pela Genética na Doença Celíaca

A suscetibilidade para a ocorrência da DC está, em parte, determinada por uma associação com um Antígeno de Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante comum: especificamente, com o mais importante complexo de antígenos classe II de histocompatibilidade, DQ2 e DQ8. Esses genes são codificados para glicoproteinas que se ligam a peptídeos e formam um complexo antigênico HLA que pode ser reconhecido pelas células T receptoras CD4+ na mucosa intestinal. O gene DQ2 está presente em cerca de 90% dos pacientes e quando esses alelos são homozigotos respondem pela instalação precoce da forma clássica da DC. Vale ressaltar que embora o gene DQ2 represente a base da suscetibilidade genética da DC, eles estão presentes em cerca de 30% de toda a população. O gene DQ8 está presente na maioria dos restantes 10% dos pacientes. Portanto, como as moléculas de DQ2 e DQ8 respondem pela quase totalidade dos pacientes com DC, a ausência das mesmas, nos testes genéticos, praticamente exclui a possibilidade da existência da DC em um determinado indivíduo. Vale ressaltar, porém, que embora DQ2 esteja presente em 30% da população geral e que tanto DQ2 como DQ8 estejam presentes em 40% da população geral, a auto-imunidade para DC irá surgir em apenas cerca de 3% da população geral que possui DQ2. Desta forma as sondas genéticas para DQ2 e DQ8 apresentam alta sensibilidade (baixas taxas de falso negativo), mas baixa especificidade (altas taxas de falso positivo), indicando, portanto, baixo valor preditivo positivo, mas um alto valor preditivo negativo para a DC.
Diagnóstico

O diagnóstico da DC usualmente é suspeitado em um primeiro momento pela presença dos auto-anticorpos, porém, deve sempre ser confirmado pela realização da biópsia de intestino delgado. Há uma série de artigos disponíveis na literatura médica demonstrando que o diagnóstico baseado em critérios clínicos levando-se em consideração apenas as manifestações gastrointestinais mostraram-se incorretos em mais de 50% dos casos. Exames radiológicos ou mesmo outros testes laboratoriais também são incapazes de definir corretamente a existência ou não da atrofia vilositária.

Atualmente, é consenso internacional que crianças maiores de 2 anos de idade (em crianças menores as mesmas alterações histológicas também podem ser observadas em lactentes portadores de enteropatia por alergia à proteína do leite de vaca), que apresentam manifestações clínicas sugestivas da DC associadas a lesões morfológicas características do intestino delgado, e que evoluem para a recuperação clínica e nutricional quando submetidas à dieta isenta de glúten, o diagnóstico da DC pode ser considerado definitivamente correto, sem que haja necessidade da realização de novas biópsias do intestino delgado. Além disso, caso tenham sido demonstrados auto-anticorpos antes do diagnóstico e o conseqüente desaparecimento dos mesmos, após a introdução da dieta isenta de glúten, estes eventos reforçam ainda mais o acerto diagnóstico da DC.
As características lesões morfológicas da mucosa do intestino delgado descritas na DC incluem um número aumentado de linfócitos intra-epiteliais (>30 linfócitos por 100 enterócitos), índice mitótico dos linfócitos intra-epiteliais superior a 0,2%, diminuição na altura das células epiteliais, com transformação cuboidal, hiperplasia das criptas, atrofia vilositária parcial ou total, com nítida diminuição da relação vilosidade:cripta (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Aspecto histopatológico característico da Doença Celíaca. Atrofia vilositária total, transformação cuboidal do epitélio, com hiperplasia das criptas e infiltrado intra-epitelial de linfócitos.

Figura 2- Aspecto da histologia normal da mucosa do intestino delgado, apresentando vilosidades digitiformes, células epiteliais cilíndricas com núcleo em posição basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta 4ou5:1.


Presentemente, os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos por Marsh, em 1992 (Figuras 3 & 4) (Gastroenterology 102: 330-54).

Figura 3- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da Doença Celíaca.


Figura 4- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na Doença Celíaca.
Marsh classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes graus, a saber: Grau 0, estágio pré-infiltrativo (normal), Grau 1, lesão infiltrativa (aumento do número de linfócitos intra-epiteliais), Grau 2, lesão hiperplásica (Grau 1 + hiperplasia das criptas), Grau 3, lesão destrutiva (Grau 2 + atrofia vilositária parcial), Grau 4, lesão hipoplásica (atrofia vilositária total com hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para ser subdividida em Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia vilositária subtotal) e Grau 3c (atrofia vilositária total).
A existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é aceita como claro aspecto diagnóstico da DC. A ocorrência de lesão Marsh Grau 2 associada à positividade de marcadores sorológicos é altamente sugestiva da DC. A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica, porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário repetir a biópsia do intestino delgado, ou então, indicar o emprego da dieta isenta de glúten e após 6 meses repetir os testes sorológicos e a biópsia do intestino delgado.

Uma proposta de diagnóstico precoce da Doença Celíaca: uma nova revolução desvendando ainda mais a parte não visível desta enfermidade
É consenso internacional que o critério diagnóstico de certeza da DC é a demonstração de atrofia vilositária Marsh 3. Entretanto, há evidencias de que a lesão da mucosa do intestino delgado se instala de forma gradual, e, portanto, admite-se que enteropatias moderadas podem evoluir para atrofia vilositária total e hiperplasia das criptas, caso a ingestão de glúten se mantenha de forma continuada. Dados atuais sugerem que alguns pacientes que apresentam somente enteropatias moderadas podem apresentar sintomas ou mesmo complicações clínicas em decorrência da ingestão de glúten antes de desenvolverem atrofia vilositária total. Este fato desperta a inevitável questão se acaso os atuais critérios diagnósticos para caracterizar a DC ainda sejam válidos (Figura 5).

Figura 5- Aspectos progressivos da lesão do intestino delgado na Doença Celíaca.

Kalle Kurppa e colaboradores (Gastroenterology 2009; 136: 816-23), em Tampere, na Finlândia, levando em consideração a hipótese acima considerada realizaram uma investigação clínica controlada, de forma prospectiva e randomizada, para avaliar o efeito da intervenção do glúten em pacientes suspeitos de sofrerem de DC que apresentavam positividade ao autoanticorpo anti-Endomíseo (EMA) e que à biópsia do intestino delgado evidenciavam linfocitose, mas arquitetura vilositária normal. Foram realizadas biópsias de intestino delgado em 70 pacientes EMA positivos, e destes, 23 apresentavam apenas enteropatia moderada (Marsh 1-2), os quais foram aleatoriamente distribuídos para continuarem recebendo dieta contendo glúten ou dieta isenta de glúten. Após o período de 1 ano foram repetidas as avaliações clínicas, sorológicas e histológicas. Um grupo de 47 pacientes com lesões da mucosa do intestino delgado compatíveis com DC (Marsh 3) e submetidos a dieta isenta de glúten serviram como grupo controle enfermo.

No grupo que recebeu dieta contendo glúten (Marsh 1-2) a arquitetura da mucosa intestinal se agravou em todos os indivíduos, e os sintomas persistiram assim como a positividade do EMA. Em contraste, naquele grupo que recebeu dieta isenta de glúten os sintomas desapareceram, os títulos do EMA diminuíram, e a morfologia da mucosa intestinal se normalizou, da mesma forma que ocorreu no grupo controle enfermo. Quando o ensaio clínico terminou todos os indivíduos decidiram adotar uma dieta isenta de glúten.
Os autores concluiram que os indivíduos que apresentaram EMA positivo se beneficiaram com a adoção de uma dieta isenta de glúten, a despeito de não apresentarem atrofia vilositária total. Baseados nos resultados dessa pesquisa propõem que os critérios diagnósticos para DC necessitam ser revistos, valorizando os resultados positivos dos marcadores sorológicos EMA e TTG, até então considerados “falso positivos”. Enfatizam que a positividade dos marcadores sorológicos mesmo na ausência de atrofia vilositária é uma indicação para a adoção de uma dieta isenta de glúten.
Levando-se em consideração os resultados dessa importante pesquisa, e, nos colocando na expectativa de que essas observações sejam confirmadas em outros centros, passaremos a admitir que a parte não visível do “iceberg” é ainda maior do que aquela até o presente conhecida.
No nosso próximo encontro discutiremos o tratamento dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.

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