terça-feira, 22 de maio de 2012

Intolerância à Lactose: mitos e realidade (3)


Tipos de intolerância à Lactose
A literatura é vasta em conceitos para caracterizar cada um dos termos que abaixo serão referidos e muitas vezes podem trazer confusões diagnósticas e interpretações equivocadas de cada uma desssa denominações.
São descritas como intolerâncias alimentares quaisquer respostas adversas a um aditivo ou alimento, sem que necessariamente ocorram as mediações imunológicas. Estas podem ser ativadas por ação de toxinas produzidas por bactérias, fungos, agentes farmacológicos ou erros metabólicos por deficiência enzimática. Dentre as intolerâncias alimentares se destaca a intolerância à lactose, por ser frequentemente encontrada na prática médica. Segue abaixo a descrição detalhada, segundo Melvin e Heyman, dos diferentes tipos de má absorção de lactose e/ou intolerância à lactose:
Má absorção: é um problema fisiopatológico que pode se manifestar ou não como intolerância à lactose e deve-se a um desequilíbrio entre a quantidade de lactose ingerida e a capacidade disponível da lactase para hidrolisar o substrato (reação enzima x substrato).
Gasparin e cols., em 2010, realizaram um estudo no Brasil demonstrando que mais de 27 milhões de habitantes apresentam má absorção da lactose, sendo que esta ocorreu principalmente por determinação genética.
Vale ainda ressaltar que a má digestão e/ou absorção de lactose não resultam, necessariamente, em intolerância à lactose.
Intolerância: é uma síndrome clínica caracterizada por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de leite e/ou de alguma substância contendo lactose. A quantidade de lactose que poderá causar qualquer sintomatologia varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da quantidade ingerida, do grau de deficiência de lactase, e também, da forma da substância na qual a lactose está presente.
Duas patologias ligadas ao consumo de leite e derivados são extremamente confundidas no momento do diagnóstico e do tratamento nutricional, podendo influenciar diretamente no estado nutricional e prognóstico do paciente. Por isso, é extremamente importante diferenciar a alergia à proteína do leite de vaca (APLV) da intolerância à lactose; vale ressaltar que a alergia alimentar é mediada pelo sistema imunológico, desencadeando mecanismos de ação contra o antígeno causador, gerando sinais e sintomas após a ingestão do alimento, os quais podem, em certas circunstâncias, serem idênticos aos da intolerância à lactose. Tais diferenças são abreviadamente descritas na Tabela, segundo Tumas e Cardoso.
Deficiência primária de Lactase: é caracterizada pela ausência relativa ou absoluta da lactase, a qual inicia sua ocorrência em idade variáveis, em geral a partir do 5º ano de vida, em distintos grupos étnicos e é a causa mais comum de má absorção e intolerância à lactose. A deficiência primária de lactase é também denominada hipolactasia do tipo adulto ou ontogeneticamente determinada.
Embora a deficiência primária de lactase possa se apresentar de uma maneira relativamente aguda sob a forma de intolerância ao leite, sua instalação é tipicamente sutil ao longo dos anos, surgindo no final da adolescência ou, mais tarde, na vida adulta. A maioria dos indivíduos adultos permanece com apenas 10% da capacidade de produção da lactase em relação aos níveis observados durante o período de lactente. É interessante mencionar que mesmo aqueles indivíduos com intolerância à lactose na vida adulta são capazes de tolerar um copo de leite, entretanto, quando eles ingerem uma quantidade adicional de leite os sintomas de intolerância podem se manifestar. Portanto, pode-se depreender que a deficiência primária de lactase é uma condição natural na vida adulta, e, conseqüentemente, muitos indivíduos apresentarão sintomas de intolerância à lactose se consumirem leite, especialmente em grandes quantidades.
Deficiência secundária de lactase: é a deficiência de lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como diarréia aguda, diarréia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado, podendo estar presente em qualquer idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.
Tal deficiência implica em uma subjacente condição fisiopatológica, a qual é responsável pela subsequente deficiência de lactase e que pode até mesmo acarretar má absorção e/ou intolerância à lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se com maior frequência a diarréia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado, levando à perda da atividade da lactase normalmente existente nas microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem estas são muitas vezes deficientes de lactase, o que causa deficiência secundária de lactase e pode, desta forma, induzir a má absorção de lactose.  Giardíase, criptosporidíase, e outros parasitas que infectam o intestino delgado proximal freqüentemente levam à má absorção de lactose devido uma lesão direta ao enterócito pelo parasita.
Rotavirus é o principal agente viral causador de diarréia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças sofrendo de diarréia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais de lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo lactose não irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a intolerância à lactose poderá estar presente e ser um fator importante na perpetuação da diarréia (Figura 1).


Figura 1- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.

Nas comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou enteroagregativa em cultura de tecido com células HeLa são altamente agressivas sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 2).


Figura 2- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.

Estes agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e devido sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia coli enteropatogênicas clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das microvilosidades dos enterócitos (Figuras 3- 4-5-6).


Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarréia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.


Figura 4- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.


Figura 5- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.


Figura 6- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.

Intolerância à lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarréia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 7-8).


Figura 7- Paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 acarretando intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar múltipla, tendo necessidade de receber nutrição parenteral total.


Figura 8- O mesmo paciente da figura 8 já em recuperação clínica com capacidade de tolerar fórmula isenta de lactose, posto que ainda se encontrava intolerante à lactose.

Crianças portadoras de Enteropatia ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à lactose. Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como os Bacteróides e Veilonella, quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformamdo-os em sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 9- 10-11-12-13-14).


Figura 9- Visão parcial da favela cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de saneamento básico e, portanto, fator fundamental para o surgimento da Enteropatia Ambiental com sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Observar as crianças brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu aberto.


Figura 10- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.
 
Figura 11- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.


Figura 12- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.


Figura 13- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 14- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em número e altura.

Lactentes jovens com desnutrição grave desenvolvem atrofia intestinal que também implica em deficiência secundária à lactose. Por esta razão, a Organização Mundial de Saúde recomenda evitar leite contento lactose em crianças com diarréia persistente (com duração superior a 14 dias).
Deficiência congênita de lactase: enfermidade extremamente rara, de origem autossômica recessiva, com incidência de 1:60.000 nascidos vivos, relatada em poucas crianças e potencialmente letal em épocas que não existiam substitutos para o leite.
Recém-nascidos afetados cursam com diarréia intratável logo que o leite humano ou fórmula láctea contendo lactose é introduzido; no caso de o diagnóstico não for suspeitado apresentam diarréia osmótica com perda de nutrientes que levam a desnutrição, desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. A resposta clínica ocorre poucas horas após a retirada da lactose da dieta e o desenvolvimento da criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é permanente, e que, portanto, a lactose deve ser evitada durante toda a vida.
A literatura descreve dois tipos clínicos de deficiência congênita de lactase:
Alactasia congênita: manifesta-se com o aparecimento de diarréia ácida, desidratação e acidose metabólica desde os primeiros dias de vida, logo após a introdução da alimentação com leite, seja ele materno ou não.
Intolerância congênita à lactose: quadro clínico semelhante ao da alactasia congênita, acompanhado de lactosúria, aminoacidúria e acidose renal, com predomínio de vômitos. Neste segundo tipo, os sintomas desaparecem com a infusão da lactose no duodeno, através do uso de sonda pós-pilórica, sugerindo alguma alteração na permeabilidade gástrica. Caso não seja rapidamente identificada e controlada com a utilização de fórmula láctea isenta de lactose, pode levar à morte, devido à ocorrência de desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos graves.
Deficiência de lactase do desenvolvimento: é caracterizada como deficiência relativa de lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.
No trato gastrointestinal imaturo, a lactase e outras dissacaridases são deficientes até pelo menos a 34º semana gestacional. Melvin e cols. investigando prematuros relataram o benefício da suplementação com lactase e fórmulas com baixo teor de lactose; porém, por outro lado, também demonstraram que o leite humano e fórmulas contendo lactose não provocaram quaisquer efeitos deletérios a curto ou longo prazo em recém-nascidos prematuros. Até 20% da lactose dietética pode atingir o cólon em recém-nascidos e crianças jovens. O metabolismo bacteriano da lactose diminui o pH fecal (abaixo de 6) provocando um efeito benéfico, já que favorece a proliferação de microorganismos protetores do trato digestivo (eg, Bifidobactérias e espécies de Lactobacilos) ao invés de favorecer o surgimento de agentes potencialmente patogênicos (espécies de Proteus, Escherichia coli e Klebsiella) em lactentes jovens. Agentes antimicrobianos podem afetar negativamente esta colonização benéfica.

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