Tipos de intolerância à Lactose
A literatura é vasta em
conceitos para caracterizar cada um dos termos que abaixo serão referidos e
muitas vezes podem trazer confusões diagnósticas e interpretações equivocadas
de cada uma desssa denominações.
São descritas como
intolerâncias alimentares quaisquer respostas adversas a um aditivo ou
alimento, sem que necessariamente ocorram as mediações imunológicas. Estas
podem ser ativadas por ação de toxinas produzidas por bactérias, fungos,
agentes farmacológicos ou erros metabólicos por deficiência enzimática. Dentre
as intolerâncias alimentares se destaca a intolerância à lactose, por ser
frequentemente encontrada na prática médica. Segue abaixo a descrição
detalhada, segundo Melvin e Heyman, dos diferentes tipos de má absorção de
lactose e/ou intolerância à lactose:
Má absorção: é um problema fisiopatológico que pode se manifestar ou
não como intolerância à lactose e deve-se a um desequilíbrio entre a quantidade
de lactose ingerida e a capacidade disponível da lactase para hidrolisar o
substrato (reação enzima x substrato).
Gasparin
e cols., em 2010, realizaram um estudo no Brasil demonstrando que mais de 27
milhões de habitantes apresentam má absorção da lactose, sendo que esta ocorreu
principalmente por determinação genética.
Vale
ainda ressaltar que a má digestão e/ou absorção de lactose não resultam, necessariamente,
em intolerância à lactose.
Intolerância: é uma síndrome clínica
caracterizada por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia,
náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de leite e/ou de
alguma substância contendo lactose. A quantidade de lactose que poderá causar
qualquer sintomatologia varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da
quantidade ingerida, do grau de deficiência de lactase, e também, da forma da
substância na qual a lactose está presente.
Duas patologias ligadas ao
consumo de leite e derivados são extremamente confundidas no momento do
diagnóstico e do tratamento nutricional, podendo influenciar diretamente no
estado nutricional e prognóstico do paciente. Por isso, é extremamente
importante diferenciar a alergia à proteína do leite de vaca (APLV) da
intolerância à lactose; vale ressaltar que a alergia alimentar é mediada pelo
sistema imunológico, desencadeando mecanismos de ação contra o antígeno
causador, gerando sinais e sintomas após a ingestão do alimento, os quais
podem, em certas circunstâncias, serem idênticos aos da intolerância à lactose.
Tais diferenças são abreviadamente descritas na Tabela, segundo Tumas e Cardoso.
Deficiência primária de Lactase: é caracterizada pela ausência relativa ou absoluta da
lactase, a qual inicia sua ocorrência em idade variáveis, em geral a partir do
5º ano de vida, em distintos grupos étnicos e é a causa mais comum de má
absorção e intolerância à lactose. A deficiência primária de lactase é também
denominada hipolactasia do tipo adulto ou ontogeneticamente determinada.
Embora
a deficiência primária de lactase possa se apresentar de uma maneira
relativamente aguda sob a forma de intolerância ao leite, sua instalação é
tipicamente sutil ao longo dos anos, surgindo no final da adolescência ou, mais
tarde, na vida adulta. A maioria dos indivíduos adultos permanece com apenas
10% da capacidade de produção da lactase em relação aos níveis observados
durante o período de lactente. É interessante mencionar que mesmo aqueles
indivíduos com intolerância à lactose na vida adulta são capazes de tolerar um
copo de leite, entretanto, quando eles ingerem uma quantidade adicional de
leite os sintomas de intolerância podem se manifestar. Portanto, pode-se depreender
que a deficiência primária de lactase é uma condição natural na vida adulta, e,
conseqüentemente, muitos indivíduos apresentarão sintomas de intolerância à
lactose se consumirem leite, especialmente em grandes quantidades.
Deficiência
secundária de lactase: é a deficiência de lactase que resulta
de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como diarréia aguda, diarréia
persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas
de agressões à mucosa do intestino delgado, podendo estar presente em qualquer
idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.
Tal
deficiência implica em uma subjacente condição fisiopatológica, a qual é responsável
pela subsequente deficiência de lactase e que pode até mesmo acarretar má
absorção e/ou intolerância à lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se
com maior frequência a diarréia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente
enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado,
levando à perda da atividade da lactase normalmente existente nas
microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem
estas são muitas vezes deficientes de lactase, o que causa deficiência
secundária de lactase e pode, desta forma, induzir a má absorção de lactose. Giardíase, criptosporidíase, e outros
parasitas que infectam o intestino delgado proximal freqüentemente levam à má
absorção de lactose devido uma lesão direta ao enterócito pelo parasita.
Rotavirus
é o principal agente viral causador de diarréia aguda na infância e é conhecida
sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do
intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado
que crianças sofrendo de diarréia aguda por rotavirus e que não apresentam grau
importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo
concentrações habituais de lactose, sem que ocorram manifestações de
intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo lactose não
irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado
nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos
lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau
de agravo nutricional, a intolerância à lactose poderá estar presente e ser um
fator importante na perpetuação da diarréia (Figura 1).
Figura 1- Ultramicrofotografia do Rotavirus.
Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.
Nas
comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas
populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente
prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as
cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou
enteroagregativa em cultura de tecido com células HeLa são altamente agressivas
sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 2).
Figura 2- Incubação de Escherichia coli O111
em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto
característico de adesão localizada.
Estes
agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e
devido sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino
delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas
de Escherichia coli enteropatogênicas
clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as
típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das
microvilosidades dos enterócitos (Figuras 3- 4-5-6).
Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande
aumento) de um paciente portador de diarréia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a
presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição
dos enterócitos.
Figura 4- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte
semi-fino, de um paciente portador de diarréia persistente por infecção causada
por Escherichia coli O111
evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície
epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.
Figura 5- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a
destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior
do enterócito.
Figura 6- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal
devido a infecção por cepa de Escherichia
coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do
enterócito e a completa destruição das microvilosidades.
Intolerância
à lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas
porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à
perpetuação da diarréia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte
(Figuras 7-8).
Figura 7- Paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 acarretando
intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar múltipla, tendo
necessidade de receber nutrição parenteral total.
Figura 8- O mesmo paciente da figura 8 já em recuperação clínica com capacidade de
tolerar fórmula isenta de lactose, posto que ainda se encontrava intolerante à lactose.
Crianças
portadoras de Enteropatia ambiental sofrem também risco potencial de
apresentarem intolerância à lactose. Estas crianças muito comumente sofrem
algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no
intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como
os Bacteróides e Veilonella, quando
presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos
fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do
sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos
sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformamdo-os em
sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são
altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 9- 10-11-12-13-14).
Figura 9- Visão parcial da favela cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de
saneamento básico e, portanto, fator fundamental para o surgimento da
Enteropatia Ambiental com sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.
Observar as crianças brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu
aberto.
Figura
10- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação
ambiental.
Figura
11- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais
biliares primários.
Figura
12- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de lactase
devido ao sobrecrescimento bacteriano.
Figura
13- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia
Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado
linfo-plasmocitário na lâmina própria.
Figura
14- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de
Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as
quais se encontram diminuídas em número e altura.
Lactentes jovens com
desnutrição grave desenvolvem atrofia intestinal que também implica em
deficiência secundária à lactose. Por esta razão, a Organização Mundial de
Saúde recomenda evitar leite contento lactose em crianças com diarréia
persistente (com duração superior a 14 dias).
Deficiência
congênita de lactase: enfermidade extremamente rara, de
origem autossômica recessiva, com incidência de 1:60.000 nascidos vivos,
relatada em poucas crianças e potencialmente letal em épocas que não existiam
substitutos para o leite.
Recém-nascidos
afetados cursam com diarréia intratável logo que o leite humano ou fórmula
láctea contendo lactose é introduzido; no caso de o diagnóstico não for
suspeitado apresentam diarréia osmótica com perda de nutrientes que levam a
desnutrição, desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes
são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. A resposta clínica
ocorre poucas horas após a retirada da lactose da dieta e o desenvolvimento da
criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é
permanente, e que, portanto, a lactose deve ser evitada durante toda a vida.
A
literatura descreve dois tipos clínicos de deficiência congênita de lactase:
Alactasia congênita: manifesta-se com o aparecimento de diarréia
ácida, desidratação e acidose metabólica desde os primeiros dias de vida, logo
após a introdução da alimentação com leite, seja ele materno ou não.
Intolerância congênita à lactose: quadro clínico semelhante ao da alactasia
congênita, acompanhado de lactosúria, aminoacidúria e acidose renal, com
predomínio de vômitos. Neste segundo tipo, os sintomas desaparecem com a
infusão da lactose no duodeno, através do uso de sonda pós-pilórica, sugerindo
alguma alteração na permeabilidade gástrica. Caso não seja rapidamente
identificada e controlada com a utilização de fórmula láctea isenta de lactose,
pode levar à morte, devido à ocorrência de desidratação e distúrbios
hidroeletrolíticos graves.
Deficiência de lactase do desenvolvimento: é caracterizada como deficiência relativa de
lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.
No trato gastrointestinal imaturo, a lactase e
outras dissacaridases são deficientes até pelo menos a 34º semana gestacional. Melvin
e cols. investigando prematuros relataram o benefício da suplementação com
lactase e fórmulas com baixo teor de lactose; porém, por outro lado, também
demonstraram que o leite humano e fórmulas contendo lactose não provocaram
quaisquer efeitos deletérios a curto ou longo prazo em recém-nascidos
prematuros. Até 20% da lactose dietética pode atingir o cólon em recém-nascidos
e crianças jovens. O metabolismo bacteriano da lactose diminui o pH fecal
(abaixo de 6) provocando um efeito benéfico, já que favorece a proliferação de
microorganismos protetores do trato digestivo (eg, Bifidobactérias e espécies de Lactobacilos) ao invés de favorecer o surgimento de agentes potencialmente
patogênicos (espécies de Proteus,
Escherichia coli e Klebsiella) em
lactentes jovens. Agentes antimicrobianos podem afetar negativamente esta
colonização benéfica.
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