terça-feira, 27 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 3)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

Manifestações Clínicas

A DC pode afetar qualquer grupo etário e determinar uma multiplicidade de manifestações clínicas, isto é, apresenta um amplo espectro de sintomas que podem ser tanto digestivos quanto extra-digestivos, circunstância esta que provavelmente possa explicar um retardo no diagnóstico.

As formas de apresentação da DC são: 1) Clássica: neste caso predominam as manifestações digestivas e a consequente síndrome de má absorção; 2) Atípica ou Extra-digestiva: atualmente é a forma mais habitual de apresentação; 3) Silente ou Assintomática.

A)         Clássica
A forma clássica de apresentação da DC nas crianças consiste no surgimento de sinais e sintomas do trato digestivo que se iniciam entre os 6 e 24 meses de vida, depois da introdução do glúten na dieta. Nos quadros típicos os lactentes e pré-escolares apresentam queixa de diarreia crônica, anorexia, distensão abdominal, dor abdominal, ganho ponderal insuficiente ou mais frequentemente perda de peso, parada do ritmo de crescimento e vômitos (Figuras 14-15-16-17-18-19).
Figura 14- Paciente com forma clássica da DC caracterizada por diarreia crônica, hipotrofia da musculatura dos glúteos, distensão abdominal e extrema irritabilidade.

Figura 15- Aspecto clínico de uma paciente com DC e abaixo seu gráfico de crescimento.

Figura 16- Gráfico da paciente acima com DC evidenciando parada do ritmo de crescimento e perda de peso.

Figura 17- Fragmento de biópsia da mucosa do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária total, hiperplasia das criptas, e transformação cuboidal dos enterócitos.

 Figura 18- Gráfico de crescimento da paciente com DC mostrando total recuperação do ganho de peso e do crescimento, bem como do aspecto clínico.

Figura 19- Fragmento de biópsia do intestino delgado evidenciando vilosidades digitiformes e enterócitos cilíndricos. Relação vilosidade/cripta 4 a 5:1.

Desnutrição grave e até mesmo caquexia (Figura 20), podem ocorrer nos casos em que o diagnóstico é muito retardado. Alterações do comportamento, em especial irritabilidade intensa, costumam também estar presentes.

Figura 20- Pacientes com DC por ocasião do diagnóstico em franco estado de caquexia.

A forma Clássica de apresentação passou a ser considerada como “a parte visível do iceberg da DC”, tamanho o grau de variabilidade das manifestações clínicas desta enfermidade. É importante assinalar que nas crianças maiores, escolares e adolescentes, as manifestações clínicas costumam ser mais sutis, o que pode ser um fator de retardo no diagnóstico. Os sintomas digestivos podem incluir dor abdominal, diarreia, e até mesmo constipação, flatulência e excessiva produção de gás. Cerca de 2 a 8% dos escolares e adolescentes geralmente apresentam baixa estatura e retardo constitucional na puberdade. Ter o conhecimento da curva de crescimento pondero-estatural é uma informação da mais alta valia para se poder verificar se ocorreu parada do ritmo de crescimento ou mesmo diminuição da velocidade do crescimento, a qual resulta em uma horizontalização na curva do crescimento.

Atualmente, raros são os pacientes que apresentam as manifestações daquilo que se convencionou denominar de “crise celíaca”, a qual era vista com maior frequência em passado não muito remoto. A “crise celíaca” se caracteriza por diarreia aquosa explosiva, distensão abdominal importante, hipotensão, letargia e desidratação com grave associação de distúrbios eletrolíticos, em especial hipopotassemia. Este tipo de manifestação, de instalação aguda, coloca o paciente em alto risco de vida e tem sido responsável pela causa direta de morte desta enfermidade.

B)         Atípica ou Extra-Digestivas

Neste tipo de apresentação da DC os sintomas digestivos são escassos ou ausentes com predomínio das manifestações extra-digestivas, a saber: anemia, baixa estatura, anorexia, osteoporose, alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da puberdade, constipação.

Na Tabela 1, abaixo, estão discriminadas as principais manifestações extra-digestivas da DC

A) Manifestações que apresentam grande ou moderada evidência de DC
B) Manifestações que apresentam evidência menos intensa
Dermatite herpetiforme
Hipoplasia do esmalte dentário (dentição definitiva)
Osteopenia/Osteoporose
Baixa estatura
Puberdade retardada
Anemia ferropriva refratária a tratamento oral com ferro
Constipação
Hepatite
Artrite
Epilepsia com calcificações occipitais

Na Tabela 2, abaixo, estão discriminadas associações que apresentam prevalência aumentada com DC
Diabete tipo 1
Tireoidite autoimune
Síndrome de Down
Síndrome de Turner
Síndrome de Williams
Deficiência seletiva de IgA
Parentesco de primeiro grau

Há fortes evidências de que a Dermatite Herpetiforme representa a manifestação dermatológica da DC (Figura 21), posto que a maioria destes pacientes também apresenta concomitantemente alterações morfológicas da mucosa intestinal compatíveis com a DC, mesmo na ausência de manifestações gastrointestinais. Tanto as lesões de pele quanto a morfologia da mucosa intestinal são reversíveis com a utilização de uma dieta isenta de glúten. Raramente ocorre durante a infância e tem sido descrita quase que exclusivamente em adolescentes e adultos.

Figura 21- Lesões vesiculosas típicas de Dermatite herpetiforme no tronco de paciente adulto.

Defeito do Esmalte Dentário envolvendo a dentição definitiva tem sido descrito em cerca de 20% a 70% das crianças com DC, podendo mesmo ser a primeira manifestação da enfermidade (Figura 22); portanto, nestes casos, a suspeita diagnóstica de DC deve ser primariamente levantada pelo dentista.

Figura 22- Alterações do esmalte dentário em paciente com DC.

Artrite envolvendo o esqueleto axial e periférico tem sido relatada em até 25% dos casos de DC; a artrite tem sido descrita como aguda e não erosiva que geralmente cede com a introdução de dieta isenta de glúten.

Osteoporose e diminuição da densidade mineral óssea têm sido relatadas em pacientes com DC não tratada, as quais se revertem com o uso de dieta isenta de glúten.

Baixa estatura pode ser uma das formas de apresentação da DC, tendo sido identificada em 8% a 10% dos pacientes.

Anemia por deficiência de ferro, refratária ao tratamento por via oral, é a causa mais frequente de manifestação não digestiva da DC; cerca de 8% a 11% das causas inexplicáveis de anemia ferropriva associadas ou não à deficiência de ácido fólico se devem a DC.

Afecções neurológicas e psiquiátricas incluindo depressão, ansiedade, irritabilidade, neuropatia periférica, ataxia cerebelar, enxaqueca e epilepsia devido a calcificações intracranianas (Figura 23) têm sido descritas em associação à DC. Essa série de problemas neurológicos têm sido atribuídos à DC em adultos e em um menor número nas crianças. A DC pode causar calcificações occipitais e epilepsia de difícil controle. Estes pacientes, em geral, costumam ser resistentes ao tratamento com anti-convulsivantes, mas podem se beneficiar com a introdução de uma dieta isenta de glúten depois do começo das crises convulsivas.

A associação com ataxia cerebelar está bastante reconhecida em adultos levando à criação do termo “ataxia glúten induzida”.

Figura 23- Imagem de calcificações occipitais características da DC.

C)         Silente ou Assintomática

Neste caso os pacientes não costumam apresentar quaisquer sintomas, porém, apresentam sorologia positiva e atrofia vilositária na mucosa duodenal. Nesta circunstância, a DC é detectada em estudos populacionais, em familiares de pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda, naqueles pacientes que foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia vilositária da mucosa duodenal.

Os Marcadores Sorológicos: os testes laboratoriais que permitiram desvendar a parte não visível do “iceberg” da Doença Celíaca

Embora a biópsia do intestino delgado ainda seja considerada absolutamente necessária para a confirmação diagnóstica da DC, a introdução dos testes sorológicos, a partir da década de 1980, trouxe uma enorme contribuição para identificar quais indivíduos devem ser submetidos a este procedimento diagnóstico. Além disso, esses testes passaram também a ser utilizados para rastreamentos populacionais o que possibilitou desvendar o que se convencionou designar como a porção submersa do “iceberg” da DC. A partir da investigação pioneira conduzida por Catassi e cols., em 1996, acima descrita em maiores detalhes, inúmeras outras investigações epidemiológicas populacionais passaram a ser realizadas nos mais diversos países, inclusive no Brasil, as quais demonstraram cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade rara, mas sim, muito ao contrário, trata-se de um problema de saúde pública universal (Tabela 3).

Tabela 3- Prevalência da DC em diversos países, inclusive no Brasil.

Os testes laboratoriais comercialmente disponíveis incluem os anticorpos anti-gliadina IgA e IgG (AGA IgA e AGA IgG), anti-gliadina IgA e IgG deamidada, anti-reticulina IgA (ARA), anti-endomíseo IgA (EMA) e anti-transglutaminase tecidual IgA e IgG (ATTG).

A sensibilidade e a especificidade destes testes sorológicos estão discriminadas na Tabela 4.

Tabela 4- Sensibilidade e Especificidade dos principais marcadores sorológicos para DC.

Dentre os vários marcadores sorológicos disponíveis atualmente, os mais utilizados são o EMA e o ATTG, porque apresentam as mais altas taxas de sensibilidade e especificidade.

Estudos populacionais com doadores de sangue têm-se constituído em uma casuística muito frequentemente utilizada pelos pesquisadores em virtude da facilidade de se utilizar o sangue estocado. Ricardo Palmero Oliveira, pesquisador da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e colaboradores (European Journal of Gastroenterology and Hepatology 19: 43-9, 2007), realizaram um estudo com 3.000 candidatos a doadores de sangue para determinar a prevalência da DC em São Paulo com o emprego do ATTG e confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado. O teste sorológico resultou negativo em 95,4% (2861/3000), mostrou-se fracamente positivo em 3,1% (94/3000) e positivo em 1,5% (45/3000) dos indivíduos. Dentre os 94 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG fracamente positivo 91 eram assintomáticos, 1 apresentava queixa de constipação e dor abdominal e 2 queixavam-se de dor abdominal. Dentre os 45 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG positivo 46,7% (21/45) concordaram em realizar a biópsia do intestino delgado. Na Tabela 5 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 5- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Na Tabela 6 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 6- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.

Na Tabela 7 estão discriminadas as manifestações clínicas que podem estar associadas à DC, mostrando que indivíduos da população geral que apresentam sintomas compatíveis com DC têm maior probabilidade de serem portadores da enfermidade.

Tabela 7- Manifestações clínicas associadas à DC.

Dentre os indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado confirmou-se o diagnóstico de DC em 66,7% (14/21) deles, ou seja, a prevalência da DC nesta população revelou ser de 1:214 indivíduos. Por outro lado, caso todos os indivíduos que apresentaram dosagem elevada do ATTG e que se recusaram a realizar a biópsia do intestino delgado (24/45), tivessem também se submetido ao referido procedimento, e considerando-se que o ATTG revelou-se falso positivo em 33,3% dos indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado e que confirmaram ser portadores da DC, a prevalência seria maior, porque se poderia especular que 66,7% (16/24) dos indivíduos que não realizaram a biópsia de intestino delgado seriam também portadores de DC. Neste caso, ao acrescentarmos mais 16 indivíduos aos 14 com diagnóstico de DC confirmado, totalizaríamos 30 dos 3000 candidatos a doadores de sangue no grupo com DC. Desta forma, então, a prevalência da DC em São Paulo passaria a ser de 1:100 indivíduos, portanto, tão elevada quanto à verificada em outros países, em especial na comunidade europeia.

2 comentários:

Karla Andrade disse...

Primeiro gostaria de dar meus parabéns pelo poster, bastante informativo e didático.

Meu nome é Karla Andrade, sou professora de nutrição animal da UFRPE e tenho sido tratada a quatro anos com diagnóstico de depressão. Bem, após minha psiquiatra ter ido a um congresso ela resolveu me pedir exames da tireóide, mas não apenas os mais comuns TSH e T4 livre e sim, anti-TPO, pois ela havia participado de um seminário associando o aumento desse anti corpo com problemas de depressão.
Para nossa surpresa fiz dois testes em laboratórios diferentes e apesar do TSH e T4 estarem levemente alterados o anti-TPO estava no máximo que o método utilizado poderia registrar.
Então, comecei a fazer pesquisas sobre isso e vi que existe também uma forte ligação desse anticorpo e de meus sintomas com a doença celíaca.

Lendo esse seu post fiquei ainda mais convencida e gostaria muito de uma opinião do senhor se estou no caminho certo, pois aqui em Garanhuns onde moro temos muitas deficiências em especialidades médicas.

Agradeço desde já, seu empenho em esclarecer as pessoas sobre esse assunto e desejo sucesso e suas pesquisas.

Cordialmente,

Karla Andrade.

Professor Ulysses Fagundes-Neto disse...

Prezada Karla, sim você está correta é necessário investigar doença celíaca, podemos conversar via e-mail: ulyneto@osite.com.br