terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (25)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica



O Trabalho de Campo 


Conclusões


A elaboração prévia de um detalhado programa de ação para ser desenvolvido no campo deve ser o ponto de partida de qualquer projeto de pesquisa para que, na prática, sua execução possa alcançar o êxito desejado. Especificamente, no caso do presente trabalho de campo que visava estudar o maior número possível de crianças, a escolha da época do ano teve uma função estratégica do mais alto valor, pois devido ser o mês de julho período de seca, as condições climáticas facilitaram as atividades práticas da equipe de saúde, tanto no que se refere a vinda das tribos ao Posto Leonardo quanto ao próprio deslocamento da equipe de saúde às aldeias, seja por via fluvial e/ou terrestre (Figura 24).

Figura 24- Uma visão do rio Kuluene durante um deslocamento da equipe de saúde por via fluvial.

Durante o período das chuvas (outubro a abril) estas atividades estariam altamente prejudicadas, posto que usualmente chove torrencialmente todos os dias e, por esta razão, os deslocamentos seriam quase que impraticáveis (Figura 25).

Figura 25- Visão da trilha que liga o Posto Leonardo a uma aldeia em uma época de chuvas na região.

Os vários deslocamentos realizados pela equipe de saúde dentro do PIX, em visita às aldeias, possibilitaram o levantamento de toda a população infantil que potencialmente poderia ser incluída no estudo, e, em cada ano, pelo menos dois deslocamentos internos foram realizados. As aldeias mais próximas e de acesso fácil (Iaualapiti e Kamaiurá) foram visitadas todos os anos. Deslocamentos mais longos, a partir do Posto Leonardo, foram realizados para visitar outras aldeias, tais como, Kuicuru, Matipu, Nafuqua.

Em resumo, o trabalho assim desenvolvido possibilitou a elaboração de um estudo transversal de avaliação do estado nutricional das crianças representado por cortes anuais, e, ao mesmo tempo, propiciou o estudo longitudinal que permitiu determinar o ritmo de crescimento das crianças índias.

Os inquéritos nutricionais que se destinam a estudar uma determinada comunidade baseiam-se, via de regra, na escolha de uma amostra populacional. Uma vez respeitados os critérios científicos para a constituição da amostragem, os resultados podem ser, de forma válida, extrapolados para a população em questão.

Em se tratando de populações indígenas, defronta-se desde o início, com o obstáculo decorrente do pequeno número de indivíduos pertencentes a estas comunidades. Este é o caso específico das inúmeras comunidades indígenas brasileiras, sobre as quais escassas informações, de real valor científico, a respeito das suas condições nutricionais, encontram-se disponíveis na literatura. A necessidade de se conhecer aspectos mais detalhados em relação ao estado nutricional destes grupamentos populacionais nativos remanescentes torna-se prioritário, pois, se em passado não muito remoto contavam-se aos milhões e chegavam a ocupar parcela significativa do território brasileiro, na atualidade encontram-se reduzidos a alguns parcos núcleos residuais empurrados para um nítido e dramático processo de diminuição populacional (Tabela 6).

Tabela 6- Variação da população indígena do PIX desde 1963, início da constituição do parque, até mais recentemente, demonstrando um significativo aumento da mesma a partir da proteção oferecida contra as frentes de ocupação da nossa sociedade.

Para superar a barreira da possível falta de uma amostragem populacional significativa decidiu-se incluir no estudo o maior número de crianças que potencialmente se encontravam dentro dos critérios de inclusão previamente estabelecidos. O objetivo foi plenamente alcançado, visto que foi estudada a quase totalidade das crianças da região do Alto Xingu com idade estimada igual ou inferior a 5 anos.

Inúmeros ensinamentos práticos puderam ser obtidos desta civilização chamada de “cultura primitiva”, os quais merecem ser comentados. A prática, em escala universal, do aleitamento natural exclusivo e por tempo prolongado, representa, sem dúvida alguma, um dos principais fatores para contribuir com o estado de eutrofia vigente entre as crianças índias, apesar dos múltiplos problemas de ordem ambiental, tais como a malária e a parasitose intestinal endêmicas (Figuras 26-27).


Figura 26- A nítida sensação de eutrofia é a regra vigente entre as crianças índias.

Figura 27- Aleitamento natural exclusivo de forma prolongada é universal nesta civilização.

Outro aspecto a ser ressaltado é a utilização racional e equilibrada dos recursos naturais, o qual é de suma importância para a manutenção de um estado nutricional adequado. No Alto Xingu, a dieta, apesar de ser monótona, proporciona quantidades suficientes de proteínas e gorduras de alta qualidade, fornecidas pelo peixe que é abundante na região (Figuras 28-29), a mandioca como fonte de carboidrato e as frutas silvestres como fonte de vitaminas, em especial o pequi, este último altamente rico em vitamina A (Figura 30).

Figura 28- Peixes sendo assados diretamente sobre a fogueira.

Figura 29- Beiju da mandioca sendo assado para depois ser ingerido juntamente com o peixe.

Figura 30- Crianças índias Uaura observando cestas de pequi que são estocadas submersas nas águas do lago próximas à aldeia, e, cujo fruto é consumido de acordo com a necessidade individual.

Na sociedade indígena a disponibilidade de alimentos é universal, posto que não existe estratificação socioeconômica, não há valores pecuniários e todos os indivíduos de uma determinada aldeia têm os mesmos deveres e direitos, os quais são norteados por critérios de convivência que foram acordados entre eles e que se consagraram pela prática, para possibilitar a perpetuação da espécie ao longo dos muitos séculos de existência na área.

Este trabalho foi apresentado sob a forma de tese de Doutorado ao Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, em abril de 1977, tendo sido aprovado com nota 10,0 (Dez) pelos 5 examinadores de reconhecida competência científica, oriundos das mais prestigiosas universidades brasileiras.

Como preâmbulo da minha tese, após ter vivido esta experiência única e indescritível, fiz a seguinte reflexão em relação à civilização que tanto me ensinou: “O ÍNDIO NÃO ESPERA A NOSSA CARIDADE E MUITO MENOS QUE NOSSA CIVILIZAÇÃO SE APIADE DE SUA ATUAL CONDIÇÃO. DESEJA APENAS SEJAM RESPEITADAS SUA CULTURA, TRADIÇÃO E DIREITOS. AINDA É TEMPO DE AJUDAR A CORRIGIR UM GRAVE ERRO HISTÓRICO COMETIDO PELOS NOSSOS ANCESTRAIS, QUE NA ÂNSIA DE CONQUISTAR UM NOVO MUNDO, ESQUECERAM-SE DE OBSERVAR ALGUMAS LEIS DA ÉTICA HUMANA”.

Fiz também a seguinte dedicatória: “A MEUS FILHOS ULYSSES, JULIANA E MARINA QUE ME PERDOEM A AUSÊNCIA, MAS QUE NO FUTURO SAIBAM QUE SEU PAI LUTOU POR UMA CAUSA JUSTA”.

Posteriormente, versões simplificadas e abordando aspectos diversos deste trabalho foram publicadas nas seguintes revistas científicas: 1- American Journal of Clinical Nutrition 34:2220-2235,1981 “Observations of the Alto Xingu with special reference to nutritional evaluation in children” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M. 2- Jornal de Pediatria 50:179-82,1981 “Avaliação nutricional das crianças índias do Alto Xingu” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M.

A pergunta que permanece no ar e que não quer calar é saber se este estado de coisas ainda persiste nesta comunidade, posto que este trabalho foi realizado há mais de 30 anos. Alguma resposta pode ser dada de imediato, porque este trabalho com a mesma metodologia seguiu-se até 1980, e as condições nutricionais das crianças índias permaneceram praticamente inalteradas (Tabela 7).

Tabela 7- Evolução da avaliação do estado nutricional das crianças índias ao longo dos anos desde 1974 até 1980.

E depois? Outro trabalho já no século XXI, em 2001, utilizando a mesma metodologia e incorporando uma tecnologia mais sofisticada e atual, a impedância bioelétrica, foi realizado, mas já se conhecendo a idade exata das crianças índias. Pela primeira vez na nossa Instituição pai e filho estavam trabalhando juntos no PIX (Figuras 31-32-33-34-35-36). Este foi o trabalho de tese de Mestrado de Ulysses Fagundes, meu filho, que carrega consigo o mesmo nome do seu bisavô (foi um pedido do meu avô, caso eu tivesse um filho do sexo masculino que colocasse o nome dele, por coincidência é assim que fazem os índios, porque ninguém desgosta dos avós, principalmente no meu caso, que tinha verdadeira idolatria pelo velho Ulysses Fagundes).

 Figura 31- Uly e eu às margens do lago do Ipavu na aldeia Kamaiurá.

Figura 32- Uly e eu no barco navegando no rio Tuatuari.


Figura 33- A equipe de trabalho em plena ação obtendo os dados antropométricos das crianças índias.

 
Figura 34- Uly incluindo um lactente índio em seu estudo.



Figura 35- Jorge, colega de residência na EPM, realizando a avaliação do estado nutricional utilizando a impedância bioelétrica em uma criança índia.

 
Figura 36- O reencontro, depois de longo tempo, com o grande pajé Tacuman e seu filho Cocoti.

Os resultados ratificaram plenamente o excelente estado de eutrofia das crianças índias. O trabalho de Tese de Mestrado foi apresentado ao programa de Pos-Graduação do Departamento de Pediatria da EPM e aprovado com louvor. Posteriormente foi publicado no Jornal de Pediatria 2004;80:483-89, inclusive merecendo um Editorial.

Ulysses Fagundes nos agradecimentos da sua Tese de Mestrado, a mim dedicou as seguintes linhas: “AO PROF. DR. ULYSSSES FAGUNDES NETO, MEU MESTRE NA VIDA, PELO APOIO E ESTÍMULO DESDE O PROJETO PILOTO, PELA REVISÃO DO TRABALHO E POR ME TER PROPORCIONADO CONHECER O XINGU DESDE O MEU NASCIMENTO, COM QUEM TIVE O PRAZER DE LÁ ESTAR, O QUE NOS PROPORCIONOU UMA EMOÇÃO, QUE, QUEM SABE, SÓ NÓS DOIS PODEREMOS ENTENDER”.

UM ALERTA QUE VALE A PENA SER LEVADO A SÉRIO

No final da década de 1990, em uma das minhas idas a Nova Iorque, decidi visitar o lendário teatro Carnigie Hall. Por coincidência, neste dia, havia o anúncio de uma apresentação do famoso cantor pop Sting; junto ao anúncio havia também um grande poster escrito em inglês subscrito pelo chefe Caiapó Raoni, pois Sting é um fervoroso defensor da causa indígena e grande amigo de Raoni. Quando vi o poster, imediatamente copiei-o traduzido para o português e que abaixo está literalmente transcrito.


Após todas essas aventuras que duraram alguns anos à espera do próximo mergulho ao desconhecido, agora é chegado o tempo de Nova Iorque.

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