quinta-feira, 3 de março de 2011

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal (3)

Abaixo transcrevo os principais tópicos da discussão do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, intitulado:

ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA

Christiane Araujo Chaves LEITE, Regina Célia de Menezes SUCCI, Francy Reis da Silva PATRÍCIO e Ulysses FAGUNDES-NETO
DISCUSSÃO

Este estudo foi realizado em período que antecedeu o advento da terapia anti-retroviral potente (HAART), no qual se dispunha apenas de monoterapia ou uso combinado de dois anti-retrovirais análogos de nucleosídios e, portanto, pequeno impacto clínico, imunológico e virológico na evolução da infecção pelo HIV. Sendo assim, a presente amostra deve representar condição muito próxima à observada na história natural da infecção pelo HIV nas crianças. Esta observação é importante, pois, ao se compararem biópsias de intestino de pacientes HIV positivos entre 1995 e 1998, período em que foi introduzida a HAART, Monkemuller et al. constataram declínio significativo das infecções oportunistas gastrointestinais, mesmo nos indivíduos com CD4 baixo. De modo diverso, estudo conduzido na região sul do Brasil em 1999, envolvendo 104 crianças infectadas pelo HIV e já em uso de HAART, identificou a presença de Cryptosporidium em 31,73% das amostras de fezes analisadas (Figura 1).

Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e a presença de microorganismos de Cryptosporidium firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.

Este mesmo estudo, no entanto, atribui ao uso da HAART a escassez de alteração no teste da D-xilose, observada em apenas 7,7% das crianças. Outro estudo envolvendo coorte de 671 pacientes infectados pelo HIV, entre 1995 e 1999, mostrou que 47,7% apresentavam má absorção de D-xilose, 38,9% tinham diarréia e que em 12,2% foram identificados agentes patogênicos entéricos, sendo encontrado Cryptosporidium em apenas uma amostra de fezes. A identificação de microorganismos patogênicos nas fezes não tinha associação com a ocorrência de diarréia. Esse estudo concluiu que a alteração da função gastrointestinal é também problema comum após o advento da HAART, tendo início precoce na evolução da infecção pelo HIV, mesmo na ausência de diarréia. A explicação para resultados tão distintos enfatiza a complexidade da interação de fatores sociodemográficos, exposição a agentes patogênicos diversos e estágio da infecção pelo HIV capazes de afetar a função gastrointestinal. Embora com casuística pequena e num contexto de disponibilidade de arsenal terapêutico diferente, os resultados da presente série se assemelham aos reportados na literatura. Três dos 11 pacientes apresentavam diarréia. No entanto, os dois microorganismos oportunistas identificados, Cryptosporidium e Mycobacterium avium intracellulare, não estavam associados à ocorrência de diarréia. Ainda nesta casuística, o teste da D-xilose esteve abaixo do nível normal nos nove pacientes em que foi realizado, independentemente da ocorrência de diarréia como sintoma de má absorção, fato também relatado por outros autores (Figura 2).

Figura 2- Esporos de Mycobacterium avium intracellulare disseminados na luz do intestino delgado.

O paciente em que se identificou Mycobacterium avium intracellulare teve a D-xilose de valor mais baixo, ainda que com apenas grau II de atrofia de vilosidades no fragmento de intestino delgado obtido por biópsia. O encontro de má absorção da D-xilose, mesmo com alterações histológicas mínimas da mucosa intestinal, também já foi escrito, podendo os resultados alterados representar uma predição da ocorrência da enteropatia pelo HIV (Figura 3).

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado infectado pelo Mycobacterium avium intracellulare.
Knox et al. verificaram em sua casuística que a má absorção da D-xilose ocorreu em indivíduos sem outros sinais de má absorção, tais como diarréia, baixos níveis de vitamina B12 e de folatos no sangue ou perda de gordura nas fezes. Tais dados seriam sugestivos de que as alterações precoces determinadas pela enteropatia pelo HIV sejam freqüentes, porém não detectáveis, exceto por absorção alterada da D-xilose.

Desnutrição, na presente casuística, esteve presente em todas as crianças, na maioria em sua forma grave (III grau), quando consideradas as menores de 5 anos, denotando o impacto da infecção pelo HIV nesses pacientes. A avaliação das duas crianças maiores de 5 anos evidencia agravo nutricional de longa duração, tendo em vista o comprometimento da estatura de ambos. Não se pode desprezar o efeito que o meio ambiente adverso, ao qual essas crianças são submetidas, exerce nesse contexto, pois algumas delas identificavam-se perfeitamente na descrição da síndrome que Fagundes-Neto et al. denominaram de enteropatia ambiental, em que são observados graus variáveis de atrofia das vilosidades e infiltrado linfoplasmocitário do córion, à semelhança dos resultados do estudo presente. A desaceleração do crescimento ponderal e de estatura parece ser a alteração mais comum nas crianças infectadas pelo HIV e é acompanhada por decréscimo preferencial da gordura livre ou da massa corporal magra. Podem estar associadas deficiências de vários micronutrientes, alterações neuroendócrinas, infecções do trato gastrointestinal e má absorção de carboidratos, gordura e proteína na gênese desse processo. As crianças infectadas pelo HIV que têm crescimento retardado, apresentam cargas virais mais elevadas quando comparadas com as que têm crescimento normal e a supressão do HIV parece exercer papel favorável na retomada do ganho ponderal e da estatura.

A análise histológica dos fragmentos de intestino delgado no presente estudo mostrou graus variados de atrofia das vilosidades, alteração da relação altura da vilosidade versus profundidade da cripta nos oito casos em que a biópsia permitiu essa avaliação, infiltrado inflamatório crônico com predomínio de células linfomononucleares na maioria das amostras e aumento de linfócitos intra-epiteliais na metade dos casos analisados. Essas alterações não estavam correlacionadas com ocorrência de diarréia, nem com a presença de microorganismos ou alteração do teste da D-xilose, conforme descrito anteriormente. Inclusive, o paciente com grau mais intenso de atrofia vilositária (grau III/IV) desta casuística, não apresentava diarréia (Figuras 4 & 5).

Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portados de AIDS evidenciando uma camada muco-fibrino-leuccocitária recobrindo a superfície epitelial (seta) e também uma solução de continuidade (úlceração) do epitélio do intestino delgado no topo das vilosidades.

Figura 5- Material de biópsia de um paciente portador de AIDS evidenciando atrofia vilositária sub-total com hiplerplasia das glândulas crípticas e intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Este polimorfismo das alterações estruturais do intestino e a nem sempre possível associação com ocorrência de sintomas clínicos, encontro de microorganismos e provas de absorção alteradas levou a hipótese da enteropatia pelo HIV, pioneiramente sugerida por Kotler et al. e Ullrich et al. em alguns aspectos, com os descritos por Batman et al. em estudo comparativo da morfometria da mucosa jejunal de pacientes infectados pelo HIV residentes em Uganda e Londres. Segundo Marsh este tipo de atrofia com hiperplasia de criptas e atrofia de vilosidades, que pode chegar à mucosa plana, observada também na doença celíaca e em outras enteropatias, seria causado por mecanismos regulados por linfócitos T. Oktedalen et al., estudando 20 pacientes infectados pelo HIV com diarréia, constataram um padrão de má absorção da D-xilose comparável ao observado em pacientes com doença celíaca. No entanto, esse acentuado comprometimento na absorção intestinal não pôde ser explicado pelas alterações observadas pela microscopia de luz dos fragmentos de intestino delgado, isto é, pouca inflamação da mucosa e vilosidades normais.

Nas seis crianças deste estudo, nas quais foi possível fazer a análise morfológica das biópsias retais, destaca-se o encontro de infiltrado linfomononuclear aumentado em todas as amostras e de infiltrado polimorfonuclear neutrófilo em quatro das amostras, caracterizando quadro de infiltrado inflamatório não específico, também descrito na literatura. A presença dos neutrófilos indica atividade da lesão, isto é, fase de reagudização da lesão, já que essas células não ocorrem normalmente na lâmina própria do trato gastrointestinal. Clayton et al. documentaram progressão qualitativa e quantitativa nas alterações vistas na mucosa retal de indivíduos infectados pelo HIV, a qual se correlacionou com a presença e a quantidade do vírus no tecido colônico, sugerindo, além da enteropatia do HIV anteriormente comentada, que a mucosa intestinal poderia constituir local de proliferação e de destruição de linfócitos. Mais recentemente, Monno et al., comparando amostras de HIV obtidas concomitantemente do sangue e de tecido retal, verificaram padrões de resistência aos anti-retrovirais diferentes, dando suporte à idéia de evolução genotípica variável do HIV nos diferentes compartimentos corporais e enfatizando a participação da mucosa intestinal na seleção do genótipo do HIV.

Considerando-se a escassez de informações sobre o trato gastrointestinal em crianças infectadas pelo HIV, os resultados da presente pesquisa contribuem para melhor compreensão da evolução da infecção pelo HIV na faixa etária pediátrica. Um passo futuro, seria avançar na análise ultra-estrutural para melhor caracterizar a enteropatia do HIV, bem como avaliar o impacto da má absorção intestinal na biodisponibilidade dos medicamentos anti-retrovirais e a busca de estratégias de suporte nutricional específicas para esses pacientes.

No nosso próximo encontro apresentarei um novo tema de grande interesse da especialidade.

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