terça-feira, 1 de março de 2011

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal (2)

Conforme anteriormente mencionado transcrevo abaixo os pontos mais importantes do artigo publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia 43; 310-15, 2006, o qual descreve nossa experiência ao investigar a função digestivo-absortiva de crianças portadoras de AIDS. Vale ressaltar que este artigo é um subproduto da tese de Mestrado da Dra. Christiane A. C. Leite, de quem fui Orientador, apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, e que foi oficialmente aprovada.


ASPECTOS FUNCIONAIS, MICROBIOLÓGICOS E MORFOLÓGICOS INTESTINAIS EM CRIANÇAS INFECTADAS PELO VÍRUS DA MUNODEFICIÊNCIA HUMANA
Christiane Araujo Chaves LEITE1, Regina Célia de Menezes SUCCI2, Francy Reis da Silva PATRÍCIO3 e Ulysses FAGUNDES-NETO4
Trabalho realizado na Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.
1 Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE; 2 Disciplina de Infectologia Pediátrica, 3 Departamento de Patologia, 4 Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

Tendo em vista a importância do impacto das manifestações gastrointestinais da infecção pelo HIV em crianças e a escassez de informações a esse respeito em nosso meio, o presente estudo teve por objetivo avaliar a função absortiva, as características morfológicas e microbiológicas intestinais, nesse grupo de pacientes.

CASUÍSTICA E MÉTODOS
Casuística

Foram selecionadas aleatoriamente, de forma prospectiva e consecutiva, entre agosto de 1994 e maio de 1995, 11 crianças infectadas pelo HIV, menores de 13 anos, pertencentes às categorias clínicas A, B ou C da classificação proposta pelos Centers for Diseases Control and Prevention (CDC) no Ambulatório de AIDS da Disciplina de Infectologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (UNIFESP – EPM) e na Enfermaria e Ambulatório do Núcleo de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil (NUNADI) do Centro de Referência da Saúde da Mulher da Secretaria da Saúde de São Paulo, em São Paulo, SP. Foram constituídos dois grupos, a saber: grupo I – cinco crianças com história de pelo menos um episódio diarréico nos 30 dias que antecederam sua inclusão no estudo; grupo II - seis crianças, sem relato de ocorrência de diarréia no mesmo período. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP-EPM, sendo obtido consentimento escrito e esclarecido dos pais ou responsáveis legais pelas crianças. Os hemofílicos soropositivos para o HIV só foram incluídos no estudo quando havia indicação clínica absoluta para realização de endoscopia digestiva alta.

Na admissão ao estudo foi preenchido um questionário padronizado com informações clínicas e epidemiológicas, seguido pela aferição do peso e estatura para classificação do estado nutricional segundo os critérios de Gomez modificados por Bengoa e Waterlow modificados por Batista et al., tendo como referência de normalidade as tabelas de percentis do National Center for Health Statistics (NCHS).

INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL
Teste de absorção da D-xilose
Após jejum de 4 horas os pacientes receberam 0,5 g de D-xilose (diluída em solução aquosa a 10%) por kg de peso, até um máximo de 25 g. Uma hora após sua administração, foi coletada amostra de sangue para determinação da D-xilose sérica pelo método colorimétrico, de acordo com técnica descrita por Roe e Rice (26). Valores menores que 25 mg/dL foram considerados como indicativos de má absorção.

Cultura e parasitológico de fezes
As amostras de fezes foram cultivadas nos meios SS, BEM e tetrationato para identificação de Escherichia coli, Salmonella e Shigella e nos meios Lowenstein Jensen e Stonebrink para identificação de micobactérias. A pesquisa de micobactérias também foi realizada por baciloscopia, usando-se a coloração de Ziehl-Nielsen. Rotavírus foi pesquisado pelos métodos imunoenzimático e de aglutinação no látex. A pesquisa de parasitas e helmintos foi realizada pelos métodos de Hoffman, centrífugo de sedimentação em formol-éter e de Rugai. Cryptosporidium foi investigado pelo método de Ziehl-Nielsen.

Biópsia de intestino delgado
A biópsia de intestino delgado foi realizada com utilização de uma sonda flexível de polietileno acoplada a uma cápsula de Watson na extremidade distal ou através de pinça endoscópica, nos casos em que o procedimento por cápsula não foi possível ser realizado ou com indicação clínica prévia de realização de endoscopia digestiva alta. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias em tecido. A interpretação dos fragmentos por microscopia óptica foi baseada na relação entre a altura das vilosidades e a profundidade das criptas e na intensidade do infiltrado inflamatório da lâmina própria, segundo critérios modificados de Shenck e Klipstein. Os parâmetros histológicos avaliados foram os seguintes:

a) altura ou comprimento da vilosidade da abertura da cripta até o topo da vilosidade;

b) comprimento ou profundidade da cripta da abertura até o fundo da cripta que repousa sobre a muscular da mucosa. A relação entre a altura da vilosidade e a profundidade da cripta foi avaliada subjetivamente do seguinte modo: grau I – relação entre 3 a 2 para 1: sem atrofia ou em grau muito leve, praticamente dentro da normalidade; grau II – relação 1 para 1: atrofia leve; grau III - já existe inversão da relação vilosidade/cripta, isto é, cripta pouco mais longa que a vilosidade: atrofia moderada, também chamada atrofia parcial; grau IV – mucosa plana por intensa atrofia das vilosidades, também chamada atrofia subtotal;

c) infiltrado celular da lâmina própria, constituído por linfócitos, plasmócitos e eosinófilos, avaliado em graus leve ou normal, moderado e intenso. Polimorfonucleares neutrófilos, que não existem na mucosa intestinal normal, quando ocorreram, foram também classificados em graus leve, moderado e intenso;

d) linfócitos intra-epiteliais, que ocorrem normalmente no intestino delgado em número de até 30 por 100 enterócitos, foram avaliados em graus de aumento leve (30 a 40 por 100 enterócitos), moderado (entre 40 e 50 por 100 enterócitos) e intenso (acima de 60 por 100 enterócitos).

Biópsia retal
A biópsia retal foi realizada com a utilização da cápsula de Rubin. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias no tecido. A avaliação morfológica dos fragmentos de intestino grosso foi realizada por microscopia óptica, de acordo com os critérios de Morson, considerando-se a análise da integridade do epitélio superficial (erosões), das glândulas e o infiltrado de linfócitos, plasmócitos e eosinófilos nos graus de intensidade leve, moderado e intenso.

RESULTADOS

A idade das crianças variou de 5 a 149 meses (mediana de 24 meses), sendo seis do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Nos 30 dias que antecederam a inclusão no estudo, cinco crianças haviam apresentado diarréia, das quais três já assim se mostravam desde o início da investigação. Outros sintomas digestivos referidos foram vômitos (4/11), disfagia (1/11) e dor abdominal (1/11). Os medicamentos usados foram: zidovudina (9/11), didanosina (3/11), sulfametoxazol-trimetoprim (10/11), imunoglobulina intravenosa (2/11), nistatina (2/11), azitromicina (1/11) e associação de rifampicina, isoniazida e pirazinamida (1/11). Das 11 crianças, 9 foram infectadas pelo HIV por transmissão vertical, 1 por transfusão de hemoderivados (hemofílico) e 1 permanecia com modo de transmissão não esclarecido.

Todas as 11 crianças apresentavam algum grau de desnutrição energético-protéica, sendo 6 de III grau, 2 de II grau e 1 de I grau. Pelos critérios de Waterlow modificados por Batista et al. aplicado para as duas crianças maiores de 5 anos, houve um caso de desnutrição pregressa e um de desnutrição crônica.

A coprocultura, realizada em 7 dos 11 pacientes, não identificou bactérias enteropatogênicas. Pesquisa de Rotavírus foi negativa nas seis crianças em que foi realizada, e o exame protoparasitológico também foi negativo nas oito crianças das quais foram obtidas amostras adequadas de fezes. Cryptosporidium foi identificado em 1 e o resultado foi duvidoso em outro dos 10 exames realizados. Dos cinco casos em que foi possível pesquisar, Mycobacterium avium intracellulare foi identificado em apenas uma amostra de fezes. A pesquisa de Mycobacterium avium intracellulare nos fragmentos de biópsia resultou negativa nas seis amostras investigadas, inclusive na do paciente em que este microorganismo foi identificado nas fezes.

A prova de absorção da D-xilose foi realizada em 9 dos 11 pacientes, com valores variando de 8,9 a 24,4 mg/dL, média de 15,6 mg/dL, mediana de 14,2 mg/dL e desvio padrão de 5 mg/dL.

Dos 11 fragmentos de biópsias de intestino delgado obtidos, 1 foi excluído da análise por ser tecnicamente inadequado para exame (Tabela 1).


Quanto à relação entre altura das vilosidades e profundidade das criptas, os resultados foram os seguintes: três com atrofia de vilosidades grau I (Figura 1), dois com grau I/II, um com grau II, um com grau II/III e um com grau III/IV. Em dois casos não foi possível a análise deste parâmetro, pois as amostras eram superficiais. Linfócitos intra-epiteliais foram observados nos 10 fragmentos analisados (Figura 1), estando aumentados em 5, sendo 2 em quantidade leve, 2 em quantidade moderada e 1 em quantidade intensa.


O infiltrado linfoplasmocitário da lâmina própria estava aumentado em 100% das amostras analisadas (10/10) e foi graduado em moderado (4/10), intenso (5/10), como se pode observar na Figura 2-A, e leve (1/10).



O infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos da lâmina própria estava aumentado em 7 das 10 amostras analisadas. Destas, três em grau leve, quatro em grau moderado e um em grau intenso. Em apenas um caso foi observada presença de microorganismos em forma de bastões, similares a bactérias, em meio ao muco que recobria o epitélio. Nesta amostra, uma crosta fibrino-leucocitária no topo da vilosidade fez supor lesão ulcerada.

Foram realizadas oito biópsias retais e, destas, seis se prestaram à análise histopatológica. Quanto à integridade epitelial, em 100% (6/6) dos casos mostrava-se íntegra. O infiltrado linfoplasmocitário estava aumentado em todos os casos, variando de grau leve (3/6), como se observa na Figura 2-B, moderado (2/6) e intenso (1/6).

A presença de infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos foi observada em quatro casos, sendo de grau leve em três e intenso em um (Tabela 2 e Figura 3).

No nosso próximo encontro apresentarei a rica discussão deste excelente trabalho de pesquisa.

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