segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Síndrome Inflamatória Multisistêmica associada ao COVID-19 em Pediatria: apresentação de Pancreatite Aguda

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A revista JPGN de novembro de 2020, publicou um importante artigo de autoria de Stevens J e cols., intitulada “COVID-19 associated multisystem Imflammatory Syndrome in Children Presenting as Acute Pancreatitis” que a seguir passo a abordar seus aspectos de maior relevância.

Introdução

Crianças portadoras de COVID-19 em geral apresentam sintomas majoritariamente gastrointestinais em relação à síndrome respiratória grave, a qual é tipicamente observada em adultos. Recentemente, médicos na Europa e nos EUA têm comprovado um aumento na incidência de sintomas da Doença de Kawasaki (DK) associados com a COVID-19, o que os levou à descrição de uma síndrome caracterizada por inflamação multisistêmica e disfunção orgânica denominada Síndrome Inflamatória Multisistêmica em Pediatria (SIMP). Sabe-se que sintomas gastrointestinais são frequentes na apresentação da SIMP, porém, Pancreatite Aguda (PA) não havia sido descrita em crianças. Neste trabalho é descrito pela primeira vez, o caso de uma criança que apresentou PA como manifestação inicial da SIMP.

Relato de Caso

Menina afro-americana e obesa, 10 anos de idade, apresentou história de asma moderada quando foi atendida no serviço de emergência nos dias iniciais de  abril de 2020. Os sintomas tiveram início 5 dias antes da admissão, caracterizados por dor abdominal difusa, seguidos por episódios diários de febre de 39º a 40ºC, diarreia líquida sem sangue, vômitos não biliosos e anorexia. Outros sintomas referidos incluíam congestão da conjuntiva, edema palpebral, edema das mãos e dos pés e cansaço extremo. A paciente não apresentava queixa respiratória.  Vale ressaltar que ela não havia identificado contato com pessoas enfermas. Nos últimos dias de fevereiro e nos dias iniciais de março, a paciente viajou desde sua cidade natal Atlanta, Georgia,  para Nova York, Nova Jersey e California, todas essas áreas que sabidamente apresentam aumento das taxas de infecção por COVID-19 (Figura 1).


Após o retorno das viagens a paciente permaneceu em sua casa, porém, seus pais trabalharam de forma intermitente em áreas externas.

No momento da primeira consulta, ela apresentava febre, taquicardia e hipertensão. A paciente referia dor no abdome superior com irradiação para o dorso e quadrante inferior direito. Foi estabelecido diagnóstico de PA baseado nos sintomas apresentados, elevação da lipase sérica e alteração na tomografia computadorizada do abdome. Nesta ocasião a paciente foi internada para receber tratamento específico.

Algumas horas após a internação a paciente desenvolveu desconforto respiratório associado a agravamento renal agudo e hipotensão. Nesta ocasião, ela foi transferida com urgência para Unidade de Terapia Intensiva (UTI) posto que a disfunção envolveu múltiplos órgãos. A radiografia de tórax revelou edema pulmonar e derrame pleural moderado; a ecocardiografia mostrou depressão da função biventricular e hipertensão pulmonar moderada (Tabela 1).


A paciente necessitou oxigenioterapia por meio de cânula nasal de alto fluxo 40 l/min, epinefrina e Milrinona. Houve persistência da diarreia e a paciente desenvolveu hipoalbuminemia severa que requereu reposição intravenosa. Os episódios de febre persistiram e uma extensiva investigação para o processo infeccioso e reumatológico mostraram-se negativos, incluindo os testes RT-PRC para COVID-19, em duas amostras independentes de swab nasofaringeo. Considerando-se que as manifestações para DK se revelaram incompletas, a paciente foi tratada com imunoglobulina intravenosa e doses elevadas de aspirina. A despeito de uma resposta inicialmente favorável com o uso da imunoglobulina, os episódios de febre retornaram, e, então, ela recebeu uma segunda dose de imunoglobulina 2 dias mais tarde. Após esta segunda dose de imunoglobulina, a paciente permaneceu afebril, houve melhora da função cardíaca, normalização renal e regressão total do edema. O suporte respiratório foi desativado e os marcadores séricos inflamatórios, transaminases, albumina e lipase normalizaram-se. A paciente recebeu alta com doses baixas de aspirina e no seguimento clínico, verificou-se que o teste sorológico IgG para COVID-19 mostrou-se positivo.     

Discussão

Este é o primeiro caso documentado de PA em Pediatria devido ao COVID-19. A apresentação com febre, marcadores séricos inflamatórios elevados e envolvimento orgânico multisistêmico após a infecção por SARs-Cov-2 revela uma situação inédita. Por outro lado, foram relatados três casos de PA em pacientes adultos associados ao COVID-19, todos eles com testes positivos por meio do RT-PCR.  

As manifestações clínicas da paciente mostraram-se muito semelhantes a aquelas recentemente relatadas em um grupo de crianças italianas portadoras de DK-simile grave e infecção pelo SARs-Cov-2. Os pacientes italianos apresentavam idades mais avançadas do que a esperada para a DK, com aspectos da DK incompletos incluindo elevados marcadores inflamatórios, linfocitopenia, trombocitopenia, manifestações respiratórias, gastrointestinais, disfunção cardíaca e choque.  Deste grupo de 10 pacientes italianos, somente duas revelaram-se positivas para o Sars-Cov-2 pelo teste PCR, enquanto as outras 8 revelaram IgG positivo. Esses resultados reforçam a sugestão de que a SIMP é um achado tardio da doença provocado pelo COVID-19 devido uma resposta imunológica retardada em seguida a uma infecção primária assintomática ou leve.

A associação entre PA e Sars-Cov-2 não está perfeitamente esclarecida. Alguns mecanismos potenciais de lesão são possíveis, posto que infecções virais incluindo a família dos coronavírus são responsáveis por 10% das PA’s idiopáticas. A enzima conversora de angiotensina 2 é um receptor humano para os coronavírus e se expressa intensamente nos tecidos epiteliais incluindo o pâncreas. Desta forma, admite-se que a invasão direta do vírus que possui efeito citopático tenha sido uma causa potencial da injuria pancreática.

Meus Comentários

Como é do conhecimento geral, no âmbito do conjunto das pessoas que utilizam a razão e que creem na importância dos conhecimentos científicos, a despeito da tremenda e nefasta campanha dos militantes do negacionismo, a pandemia da COVID-19, que assola o mundo há 1 ano com efeitos devastadores, particularmente nos indivíduos de idade mais avançada (acima dos 60 anos) associados a comorbidades, vêm causando enormes preocupações quanto ao risco de serem contaminadas e, consequentemente, virem a apresentar quadros graves da enfermidade com alto risco de morte. Sabe-se também que os indivíduos mais jovens, especialmente as crianças, mesmo quando infectados, em geral, são assintomáticos ou paucissintomáticos, não necessitando, portanto, maiores cuidados assistenciais. Entretanto, na faixa etária pediátrica passou-se a descrever, nos mais diversos centros médicos de inúmeros países, um quadro clínico, embora não frequente, de manifestações similares às observadas na Síndrome de Kawasaki, com desfechos sombrios em algumas circunstâncias. Estas manifestações clínicas tardias da infecção pelo COVID-19 recebeu a denominação de Síndrome Multisistêmica Inflamatória em Pediatria devido ao seu aspecto diversificado afetando aleatoriamente os mais variados órgãos, tais como rins, coração, pulmões, fígado, intestino, pâncreas e a pele das crianças pré-adolescentes e adolescentes. Por esta razão, ainda que não seja frequente a prevalência desta nova síndrome, os cuidados de prevenção da infecção pelo COVID-19 também devem se estender de forma rigorosa para a população infantil. Vale enfatizar que a VACINAÇÃO é fundamental para controlar a disseminação do vírus.  

Referências Bibliográficas

1)   Stevens JP e cols. JPGN 2020 ;71: 669-71.

2)   Verdoni L e cols. Lancet 2020;395: 1771-8.

3)   Dong Y e cols. Pediatrics 2020;145: 202-5.

4)   Sun D e cols. World J Pediatr 2020;16: 251-9.

 

                

      

       

 

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