sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Alergia Alimentar em Pediatria: atualização diagnóstica e tratamento (Parte 2)


Prof. Dr.  Ulysses Fagundes Neto


A Revista Journal of Allergy and Clinical Immunology 2018;141:41-58, na sua edição de Janeiro, publicou um excelente artigo de revisão sobre Alergia Alimentar, principalmente voltada para reação alérgica de hipersensibilidade imediata (IgE mediada) escrita pelos autores Scott H. Sicherer e Hugh A., Sampson intitulado: Food Allergy: a review and update on epidemiology, pathogenesis, diagnosis, prevention, and management. A seguir passo a resumir os principais aspectos do artigo e, também, no final, agrego minha experiência pessoal, principalmente no que diz respeito aos casos de Proctocolite Alérgica.      


TRATAMENTO

Considerando-se que não há cura para a AA, o manejo eficaz requer a eliminação da ingestão do suposto alergeno, e, com isso, ocorrerá o pronto desaparecimento da reação alérgica. O alcance da eliminação exitosa e a consequente reação apropriada ao tratamento, pode ser complexa e envolve uma grande variedade de atores que se encontram além do paciente e sua família, incluindo escola, local de trabalho, indústria de alimentos, agências governamentais, autoridades de saúde pública e outros. A Tabela 3 fornece uma ampla variedade de exemplos relacionadas ao manejo da AA. No que diz respeito a se evitar o alergeno, é necessário um alto grau de educação para se manter seguro, posto que, uma revisão sistemática confirmou a preocupação a respeito de erros  nos rótulos ou nomes fantasia nos alimentos, as alimentações em restaurantes, nas alimentações em casa e fora dela. Comportamentos de risco podem levar a reações inesperadas, como por exemplo, a ingestão de produtos alimentares industrializados cujos rótulos descrevem os ingredientes de uma forma não regulamentada, tais como “pode conter”, e que causam dúvida e confusão.

Tabela 3- Considerações a respeito do manejo da AA.

No que diz respeito ao manejo dietético, a isenção restrita é usualmente recomendada.  Entretanto, aproximadamente 70% das crianças com AA ao leite e ao ovo, podem tolerar esses alimentos quando eles são extensivamente aquecidos, como componentes de panificação ou de confeitaria. Pacientes com restrição estrita de leite e ovo devem ser cuidadosamente avaliados, tal como na supervisão da provocação oral para aquilatar se eles poderão tolerar as formas cozidas, posto que, reações alérgicas graves podem ocorrer. Quando a ingestão de formas cozidas desses alimentos é tolerada, pode-se prever uma mais rápida resolução da alergia, embora a evidência não seja absoluta.

O tratamento emergencial das reações alérgicas graves com epinefrina é uma pedra angular na terapia da AA. Porém, inúmeras barreiras podem estar presentes. Adolescentes e adultos jovens são considerados pacientes de alto risco para reações fatais, baseado nos comportamentos de assumir riscos e a falta de um tratamento rápido.  


Tabela 4- Guias de conduta para a introdução do amendoim na dieta dos pacientes com alergia ao amendoim.

Tabela 5- Estratégias terapêuticas nos ensaios terapêuticos.

MEUS COMENTÁRIOS 

No passado, praticamente até meados do século XX, nas mais diversas formas de sociedades e culturas existentes (Figuras 5-6 e 7), salvo raríssimas exceções, as crianças eram rotineiramente amamentadas ao seio materno de forma exclusiva e por tempo prolongado.

Figura 5- Lactente de sociedade dita de "cultura primitiva" mamando com total naturalidade.


Figura 6- Lactente da sociedade dita "moderna" que recebeu aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, seguindo, assim, um hábito cultural tradicional.

Figura 7- Lactente pertencente à família moradora da favela Cidade Leonor cuja mãe se incorporou ao programa de promoção do aleitamento natural exclusivo e venceu mitos e tabus negativos em relação ao aleitamento natural.

Entretanto, como é do conhecimento geral, as mudanças ocasionadas pelo desenvolvimento tecnológico industrial, em meados do século XIX e definitivamente consolidadas no século XX, entre as sociedades ditas “modernas”, nas quais as mulheres passaram a ocupar um espaço significativo no mercado de trabalho, associadas ao amplo e contínuo desenvolvimento da indústria de alimentos, levaram, em consequência, a uma drástica redução da prática do aleitamento materno. Outros tipos de leite, distintos do materno, foram sendo, então, progressivamente introduzidos em idades cada vez mais precoces na alimentação dos lactentes; a partir dessa mudança de hábitos e costumes começaram a aflorar os problemas dessa nova prática nutricional e, assim, passaram a surgir as AAs em escala cada vez mais crescente.

Vale a pena lembrar que os efeitos adversos dos alimentos são reconhecidos desde épocas imemoriais. Hipócrates já havia observado, há 2.000 anos, que a ingestão de leite de vaca pode provocar problemas gastrointestinais e urticária, mas hipersensibilidade aos alimentos foi poucas vezes descrita até que Von Pirquet, em 1906, introduziu o conceito de Alergia. O primeiro caso de APLV foi descrito na literatura médica da Alemanha, em 1901, nos EUA a primeira referência ao problema data de 1916, enquanto na Inglaterra verifica-se apenas uma descrição de APLV antes de 1958. 

Na busca de substitutos do leite de vaca, para o tratamento de crianças com sintomas de alergia, passaram a ser desenvolvidas fórmulas preparadas industrialmente a partir da proteína vegetal da soja, introduzidas em 1929, ainda que tais preparações já fossem conhecidas e utilizadas desde 1909, porém em pequena escala. Posteriormente, já na década de 1940, surgiram os preparados de hidrolisados da caseína e do soro leite como alternativa no tratamento das alergias alimentares múltiplas. Mais recentemente, no fim do século XX, passaram a ser elaboradas as fórmulas à base de mistura de aminoácidos, as quais são praticamente desprovidas de quaisquer estímulos antigênicos. Elas são indicadas naqueles casos de comprovada intolerância aos hidrolisados proteicos extensivamente hidrolisados.

Colite alérgica é a manifestação clínica mais comum de alergia alimentar, em especial à proteína do leite de vaca, entre os lactentes no primeiro semestre de vida; sangramento retal é a queixa mais frequente, usualmente acompanhada por irritabilidade intensa e desconforto durante a amamentação (Figuras 8-9-10-11-12-13-14).

Figura 8- Lactente portador de Colite Alérgica em atividade.


Figura 9- Fezes misturadas com sangue características da Colite Alérgica.


Figura 10- Lesões aftosas colônicas visualizadas em um paciente portador de Colite Alérgica.

Figura 11- Lesões inflamatórias colônicas com friabilidade da mucosa em paciente portador de Colite Alérgica.



Figura 12- Microfotografia em microscopia óptica comum da mucosa colônica evidenciando intenso processo inflamatório, inclusive com a presença de abcesso críptico.

Figura 13- - Microfotografia em microscopia óptica comum da mucosa colônica evidenciando restituição morfológica após tratamento com fórmula à base de hidrolisado proteico.

Figura 14- Paciente mostrado na figura 8, após total recuperação clínica e nutricional.

Está bem estabelecido que o principal alérgeno da dieta nos primeiros meses de vida é o leite de vaca secundado pela soja, porém outros alimentos também podem desencadear AA, tais como: leite de outros mamíferos, ovos, trigo, peixe, frutos do mar, nozes e amêndoas, amendoim e coco. Estes reconhecidos alérgenos alimentares ao fazerem parte da dieta da nutriz podem ser veiculados pelo leite humano. Por esta razão, lactentes que estejam recebendo aleitamento natural exclusivo e que apresentem predisposição genética para alergia, também podem apresentar sintomas de colite alérgica, ainda que muitas vezes de forma não florida. Kilshaw e Cant demonstraram que a beta-lactoglobulina do leite de vaca pode ser detectada em amostras de leite humano entre 4 e 6 horas após a nutriz ter ingerido leite de vaca.

Vale enfatizar que todos os nossos 5 pacientes receberam aleitamento natural durante um período de suas vidas e que 4 deles ainda estavam recebendo aleitamento natural exclusivo quando os sinais de colite surgiram. No presente estudo foi possível demonstrar claramente que esta manifestação de alergia é transitória conforme é referido por outros autores. Neste estudo tivemos a oportunidade de acompanhar os 5 pacientes desde o diagnóstico inicial até o momento em que foi realizado o desencadeamento com sucesso após período de evolução entre os 11 e os 18 meses de idade dos nossos pacientes. Diferentemente de Arvola e cols. optamos por não realizar o desencadeamento precoce devido à natureza dos nossos diferir daquela relatada pelos supra-referidos autores, que em sua experiência englobaram pacientes com hematoquezia com manifestações não homogêneas e, portanto, conseguiram caracterizar proctocolite alérgica em apenas 18% dos pacientes.

Atualmente é do reconhecimento geral que existe uma predisposição genética para alergia a qual age em associação com um ou mais fatores desencadeantes. Particularmente, no caso da AA alguns fatores que desempenham papel de importância no seu desencadeamento têm sido descritos, tais como, dieta materna, dieta do lactente, prematuridade, ausência de aleitamento natural exclusivo, deficiência de IgA secretora, deficiência da barreira de permeabilidade intestinal, entre outros. Entretanto, a ocorrência de colite alérgica em grupos familiares, como o verificado no presente estudo, parece sugerir uma forte evidência de predisposição genética familiar. Casos de colite alérgica têm sido raramente descritos entre irmãos ou parentes próximos. Nossos achados confirmam os de Nowak-Wegrzyn, em 2009, que descreveu caso de colite alérgica provocada pela proteína da soja em um par de gêmeos, bem como, os de Behjati e cols., em 2009, que descreveram quadro de colite alérgica em 3 irmãos, em um grupo de 13 pacientes com história de atopia em parentes de primeiro grau.

Em conclusão, pode-se afirmar que a proctocolite alérgica manifesta-se mesmo na vigência de aleitamento natural exclusiva, na qual a manifestação predominante é a presença de hematoquezia. Outra característica é a infiltração eosinofílica da mucosa colônica inflamada, e cujo tratamento deve ser unicamente a utilização de fórmulas hipoalergênicas com total exclusão da proteína agressora, até então, presente na dieta alimentar. Vale ressaltar que na presente experiência a tolerância à proteína do leite de vaca ocorreu até a idade de 18 meses.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1)  Gupta RS e cols. Pediatrics 2011; 128: 9-17.
2)  Santos AF e cols. J Allergy Clin Immunol 2014;134: 645-52.
3)  Lduc V e cols. Allergy 2016;61: 349-56.
4)  Blankestijn MA e cols. J Allergy Clin Immunol 2017;139: 688-90.

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