quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 1)


Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto

Introdução

Em geral, admite-se que o modelo biomédico da prática clínica baseia-se na teoria de que os sintomas são, potencialmente, causados por enfermidades orgânicas, as quais, por sua vez, são definidas como anormalidades anatômicas, inflamatórias, neoplásicas e/ou bioquímicas. Por esta razão, a responsabilidade do clínico traduz-se na busca do diagnóstico e, quando possível, proporcionar a cura para determinados sinais e/ou sintomas apresentados pelos pacientes. Entretanto, no caso desta pesquisa resultar infrutífera, o diagnóstico proposto passa a ser um transtorno funcional. De qualquer forma, este tipo de abordagem, durante muito tempo, foi desprovido de um critério universalmente consensuado, o que caracterizava uma lacuna que necessitava ser devidamente preenchida, era, portanto, recomendável estabelecer uma validação apropriada. Para tal fim, em 1989, um grupo de investigadores se reuniram em Roma, e desenvolveram um consenso para auxiliar no diagnóstico dos transtornos gastrointestinais funcionais (TGF) para os indivíduos adultos.

Os objetivos dos critérios de Roma foram desenvolver um sistema de classificação baseado em sintomas, estabelecer critérios diagnósticos para pesquisa e assistência, fazer uma revisão sistemática rigorosa da literatura com respeito a essas condições e, finalmente, validar e/ou modificar esses critérios de acordo com um processo baseado em evidências.

Os critérios para crianças e adolescentes, entretanto, somente foram discutidos em 1997, e foram publicados em 1999 sob a denominação de critérios Roma II. Estes critérios forneceram um guia de conduta baseado em sintomas por meio do qual crianças em idade escolar e adolescentes portadores de um TGF podem ter o diagnóstico estabelecido. As experiências baseadas em evidências nestes últimos 10 anos forneceram a base para a maioria das recomendações para o advendo dos critérios de Roma IV. Para aqueles transtornos que ainda apresentam uma falta de dados científicos, o comitê utilizou a experiência clínica e o devido consenso entre os membros do respectivo comitê.

A descrição dos TGFs Roma IV estão apresentados na Tabela 1. Os critérios de Roma III enfatizavam que os sintomas deveriam apresentar uma “não evidencia” de enfermidade orgânica. No Roma IV a frase, “não evidência de um processo inflamatório, anatômico,  metabólico ou neoplásico, para explicar os sintomas apresentados por um determinado paciente”, foi suprimida dos critérios diagnósticos. Ao invés disto, foi incluída a frase “após criteriosa avaliação médica, os sintomas não podem ser atribuídos a qualquer outra condição médica”. Esta alteração permite dar a devida validade, para se estabelecer um diagnóstico de TGF em um determinado paciente, mesmo na ausência de uma investigação laboratorial específica. Além disso, vale enfatizar que um determinado transtorno funcional pode coexistir associado a uma outra condição médica, e, da mesma forma diferentes TGFs frequentemente estão presentes em um mesmo paciente.   


Descrição dos Transtornos Funcionais Gastrointestinais

1-          Náuseas e Vômitos funcionais

1A- Síndrome dos Vômitos Cíclicos (SVC)

Os dados conhecidos sugerem que a prevalência da SVC varia de 0,2% a 1%, a idade mediana dos sintomas varia dos 3,5 aos 7 anos, porém a SVC também pode ocorrer desde os primeiros anos de vida até a idade adulta, sendo que 46% dos sintomas se iniciam aos 3 anos de idade ou mesmo antes. 

No quadro abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da SVC.


Na avaliação clínica há uma alta probabilidade da existência de enfermidades neurometabólicas associadas com essa síndrome particularmente nas crianças que apresentam os sintomas da SVC em idades precoces da vida. Por esta razão, testes metabólicos devem ser realizados durante os episódios de vômitos e antes da administração de fluidos intravenosos para maximizar a detecção das potenciais anormalidades. O uso crônico de cannabis pode estar associado com episódios repetidos de vômitos intensos, náuseas e dores abdominais, e deve ser levada em consideração essas possibilidades em pacientes adolescentes. 

O tratamento recomendado para crianças menores de 5 anos é a ciproheptadina e para os maiores de 5 anos a amitriptilina. Um tratamento de segunda linha inclui a profilaxia com propranolol. Tratamento abortivo pode ser tentado com hidratação e ondansetrona.

1B- Náusea Funcional e Vômito Funcional

Não existem dados disponíveis na literatura para a prevalência destas síndromes, isoladas ou conjuntamente. No quadro abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos desta síndrome.


Alguns pacientes com esses transtornos também apresentam sintomas autonômicos, tais como: transpiração, tonturas, palidez e taquicardia. A síndrome da taquicardia postural ortostática pode incluir náusea e vômitos como parte deste complexo sintomatológico, e deve ser diferenciado da náusea funcional e do vômito funcional. Algumas crianças somente apresentam náusea pela manhã e observam que quando elas “dormem tarde”, ou seja, ultrapassam o horário usual de dormir, é quando elas deveriam apresentar náusea, mas isto, na realidade, não ocorre.

A náusea funcional e o vômito funcional devem ser consideradas entidades distintas, mas, pacientes que sofrem de náusea crônica frequentemente relatam episódios leves de vômitos com frequência variada. A presença de vômitos intensos associados à náusea representa uma situação diferente na qual devem-se excluir enfermidades do sistema nervoso central, anormalidades anatômicas do trato digestivo (por exemplo, malrotação), gastroparesia e pseudo obstrução intestinal. A avaliação psicológica está indicada neste grupo de pacientes.  

Não há dados disponíveis para o tratamento isolado da náusea funcional e/ou do vômito funcional, porém, há indicação de intervenção da saúde mental naqueles pacientes que apresentam comorbidades psicológicas evidentes.

1C- Síndrome da Ruminação

Ruminação é a regurgitação do conteúdo recém deglutido seguida da re-mastigação e nova deglutição ou não. Apesar de ser um sintoma funcional, é um transtorno psiquiátrico causado principalmente por privação social. A ruminação pode ocorrer em qualquer idade, porém, adolescentes do sexo feminino parecem ser de maior risco para apresentar este transtorno.

No Quadro 3 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Síndrome da Ruminação.

O ato da ruminação é causado por um aumento da pressão intragástrica devido à contração dos músculos abdominais e está associado com a abertura do esfíncter esofágico inferior, o que causa o retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. A motilidade de jejum e pós-prandial usualmente estão normais. Tem sido reconhecido que quando ocorre aumento da pressão abdominal, a junção gastroesofágica é deslocada para o tórax, e, esta alteração anatômica, mais do que o relaxamento do esfíncter esofágico inferior, é o que explica o mecanismo voluntário da regurgitação presente nesta síndrome.

Geralmente um evento deflagrador ocorre antes da instalação dos sintomas de ruminação. A intercorrência de um processo infeccioso pode causar vômitos e náuseas, os quais podem não desaparecer após a infecção ter sido curada. Em outras ocasiões, um evento psicossocial traumático pode ser identificado com o início dos sintomas. Distúrbios psiquiátricos podem incluir depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo, estresse pós-traumático, transtorno comportamental e transtorno de déficit de atenção-hiperatividade.

Regurgitação repetitiva, desprovida de esforço acompanhada de reingestão e/ou o ato de cuspir o alimento no prazo de alguns minutos após ter iniciado a alimentação, define a ruminação.   Outras queixas comuns incluem dor abdominal, flatulência, náusea, queimação retroesternal, e vários sintomas somáticos tais como, cefaleia, tontura e dificuldades do sono. O diagnóstico diferencial inclui refluxo gastroesofágico, gastroparesia, acalasia, bulimia nervosa e outras enfermidades funcionais ou anatômicas do estômago e do intestino delgado, mas em nenhuma destas entidades a regurgitação ocorre imediatamente após a alimentação.  

Para se alcançar um tratamento bem-sucedido a profunda compreensão da síndrome da ruminação, bem como uma evidente motivação para superá-la, são necessários. Um exitoso modelo terapêutico deve ser composto pela abordagem interdisciplinar envolvendo psicólogo, gastroenterologo e nutrólogo.   

1D- Aerofagia

A aerofagia ao que tudo indica é particularmente comum em pacientes com deficiência neurocognitiva. Quando a ingestão de ar é excessiva o gás preenche o lúmen gastrointestinal, resultando em eructações excessivas, distensão abdominal, eliminação de flatus e dor, presumivelmente como consequência da distensão luminal. É importante assinalar que a distensão abdominal reduz ou desaparece durante o sono.

No Quadro 4 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Aerofagia.


A aerofagia pode ser confundida com gastroparesia ou outros transtornos de motilidade, tal como, a pseudo-obstrução intestinal crônica. Pode ser realizado o teste do Hidrogênio no ar expirado para excluir distúrbio de absorção e/ou sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.

Quanto ao tratamento até o presente momento não há um guia de conduta bem estabelecido e deve-se levar em consideração uma terapia de suporte emocional e comportamental. Além disso, deve-se explicar a existência dos sintomas, comer devagar e evitar o uso de goma de mascar.

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