segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Insuficiência Pancreática: Etiologia e Tratamento (Parte 2)

Cristiane Boé e Ulysses Fagundes Neto

Diagnóstico

O diagnóstico de FC deve ser suspeitado na presença de uma ou mais manifestações fenotípicas (clínicas) características:
  1. Doença sinusal ou pulmonar crônica e/ou;
  2. Insuficiência exócrina pancreática crônica e/ou;
  3. História familiar de FC confirmada e/ou;
  4. Teste duplamente positivo de triagem neonatal.
Associada(s) à evidência de elevação anormal da concentração de Cloro no suor, em duas ocasiões diferentes ou, em casos especiais, deve-se solicitar a identificação genética de duas mutações da FC.
Figura 9- Esquema do procedimento do teste do suor.

Figura 10- Representação esquemática dos princípios que se baseia o teste do suor.

O teste do suor realizado pelo teste da iontoforese de pilocarpina é o método mais sensível para o diagnóstico da FC. As seguintes definições são recomendadas para a interpretação do teste do suor:
- concentração de Cloro superior a 60 mmol/l dá suporte para o diagnóstico de FC;
- concentração intermediária de Cloro entre 4060 mmol/l é sugestivo, porém não diagnóstico;
- concentração de Cloro inferior a 40 mmol/l, indica teste normal; 
- a concentração de Sódio não deve ser interpretada na ausência da respectiva dosagem do Cloro;
<40 l="" mmol="" normal="" o:p="">
- condutividade inferior a 60mmol/l e superior a <60mmol a="" associada="" e="" estar="" fc="" improv="" l="" valores="" vel="">90mmol/l são sugestivos de FC.
        
Tratamento da insuficiência pancreática exócrina

Recomenda-se a terapia de substituição enzimática, de acordo com cada caso (pancreolipase). A dose de enzimas baseia-se no peso do paciente e deve começar com 1000 unidades de lipase/kg/refeição para crianças com menos de 4 anos de idade, e com 500 unidades de lipase/kg/refeição para crianças com mais de 4 anos;  a dose deve ser ajustada de acordo com a gravidade da doença, o controle da esteatorreia e a manutenção de um bom estado nutricional; de um modo geral, os pacientes não devem exceder a dose de 10.000 unidades de lipase/kg de peso por dia.

As enzimas pancreáticas exógenas devem ser ingeridas antes de cada refeição. A adequação da dose das enzimas ingeridas deve ser realizada através da dosagem da gordura fecal coletada durante 72 horas (Van de Kamer), além da avaliação clínica levando-se em consideração a curva ponderal e a ocorrência ou não de diarreia.

A elastase fecal e a quimiotripsina fecal servem para avaliar a função pancreática, mas não para ajustar a dose de enzimas.

Figura 11- Princípios básicos do tratamento da FC.  

Colonopatia fibrosante:

Trata-se da complicação causada pelo uso crônico de altas doses de enzimas pancreáticas para o controle da má absorção. A dose de enzima associada a esta complicação varia de 24.000 UI a 50.000 UI de lipase/kg/dia. Como resultado, há deposição de colágeno na submucosa do intestino grosso, com consequente fibrose.

Fracasso no tratamento:

No caso de haver um fracasso terapêutico, como primeiro passo deve-se avaliar a aderência ao tratamento, à dieta e à hora de administração da enzima. A primeira opção é aumentar a dose de lipase oferecida e observar a resposta. Caso não houver sucesso, recomenda-se modificar a dieta, em particular reduzindo o consumo de gordura para 50 a 75 g/dia. Deve-se também reduzir o consumo de fibras, álcool, cálcio e magnésio, pois estas substâncias podem contribuir para aumentar a esteatorreia. Quando necessário o próximo passo é administrar medicamentos anti-ácidos, como inibidores do H2 ou inibidores da bomba de prótons. Caso não ocorra diminuição da esteatorreia, é recomendada a investigação de possível infestação por Giardia e, também, a existência de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.

Síndrome Shwachman-Diamond (SSD)

Esta enfermidade foi descrita primeiramente em 1964 e, seguindo a FC, é a causa mais comum de insuficiência pancreática exócrina em crianças. Sua etiologia é desconhecida, porém, tudo indica ser de herança autossômica recessiva. A insuficiência pancreática apresenta gravidade variável e é um achado consistente da síndrome. A lesão pancreática é devida a uma falha do desenvolvimento acinar do pâncreas. Nesta síndrome ocorre um extenso remodelamento gorduroso do tecido do pâncreas com arquitetura ductular normal.

Mais de 98% da capacidade acinar exócrina do pâncreas deve estar comprometida para que os sintomas da insuficiência pancreática apareçam. Usualmente a esteatorreia surge nos 6 primeiros meses de vida em 50% dos casos, e em 90% antes de 1 ano de vida. Níveis baixos de tripsinogênio pancreático e isoamilase são marcadores úteis de insuficiência pancreática em pacientes com SSD. Em contraste com a FC, a função pancreática frequentemente melhora com a idade.

Excluir o diagnóstico de FC pelo teste do suor é essencial. O IRT na SSD deve ser normal ou baixo, pois também em contraste com a FC, a insuficiência pancreática é secundária à hipoplasia, não à obstrução/destruição do pâncreas.
A medida da elastase fecal é um bom método para triagem. A Tomografia Computadorizada, a Ressonância Magnética e a Ultrassonografia frequentemente mostram um pâncreas pequeno, com estrutura anormal e composto principalmente por gordura.

Hepatomegalia é encontrada em 15% dos casos e entre 50% e 75% deles apresentam enzimas de avaliação da função hepática em níveis de 2 a 3 vezes acima do valor da normalidade, isto se deve à esteatose hepática.

Além das manifestações de insuficiência pancreática também podem ocorrer inúmeras outras anormalidades extra-pancreáticas conforme as que estão descritas na Figura 12 e no Quadro 2, abaixo.
Figura 12- Principais repercussões clínicas da SSD.

Quadro 2- Relação das diversas possíveis manifestações extra-pancreáticas na SSD.


 O Quadro 3 apresenta um esquema dos critérios diagnósticos da SSD.

Quadro 3- Critérios diagnósticos da SSD.

A maioria dos pacientes requer suplementação de enzimas pancreáticas, entretanto, a esteatorreia desaparece espontaneamente em aproximadamente 50% dos casos.

A reposição de vitaminas lipossolúveis está indicada (A, D, E e K). O tempo de protrombina quando está anormal pode ser útil como marcador para deficiência de vitamina K.

Síndrome Johanson-Blizzard

Trata-se de uma síndrome rara, multissistêmica de herança autossômica recessiva, decorrente de mutação no gene UBR1 no cromossomo 15q15-21, descrita pela primeira vez em 1971. Até 2002, tinham sido relatados 38 pacientes com esta síndrome, sendo a insuficiência pancreática um achado constante em 37 deles. Outros achados frequentes são: aplasia da aleta nasal, surdez, hipotireoidismo, ausência de dentes permanentes, aplasia do couro cabeludo e insuficiência pancreática exócrina (Tabela 1).

A agenesia da cartilagem nasal torna o diagnóstico da síndrome mais fácil, bem como a ausência de anomalias na medula óssea e esqueléticas a diferencia da SSD. A insuficiência pancreática é devida a defeitos primários das células acinares, similar ao que ocorre na SSD. A Tomografia Computadorizada do abdome mostra remodelamento gorduroso do pâncreas. Vale ressaltar que há descrição de evolução para insuficiência pancreática endócrina (Diabetes mellitus).

É importante enfatizar que nos lactentes a morte pode ocorrer em virtude de má absorção grave secundária ao quadro de insuficiência pancreática.

O tratamento é feito com reposição de enzimas pancreáticas.

Síndrome de Pearson

Trata-se de síndrome rara, caracterizada por insuficiência pancreática exócrina associada a anemia sideroblástica refratária ao tratamento. Logo após o nascimento, há anemia macrocítica com graus variáveis de neutropenia e trombocitopenia. O aspirado da medula óssea mostra vacuolização marcante dos precursores eritróides e mieloides, juntamente com grau intenso de sideroblastos em anel e hemossiderose, diferente dos achados descritos na SSD.
Os pacientes evoluem com déficit de crescimento e requerem transfusões sanguíneas frequentes. Os testes da função qualitativa pancreática revelam depressão da função acinar (análises de autópsias mostram atrofia das células acinares e fibrose).

O tratamento da disfunção pancreática também é realizado com reposição enzimática.

Conclusão

As causas de insuficiência pancreática podem ser de natureza variável e muito embora os casos de pancreatite aguda e/ou crônica sejam prevalentes na vida adulta, por outro lado, na infância as principais causas são de origem hereditária, e, portanto, devem chamar a atenção do clínico desde o período neonatal e ao longo do primeiro ano de vida. Deficiência do ganho pondero-estatural associada a diarreia com esteatorreia são as manifestações clínicas mais importantes e que devem levar à suspeição de insuficiência pancreática. Nestas circunstâncias impõem-se que a investigação diagnóstica seja realizada o mais rapidamente possível, visando proporcionar que o tratamento de reposição enzimática seja instituído de forma eficaz, para evitar a evolução para desnutrição e risco de vida.

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