terça-feira, 25 de abril de 2017

Intolerância à Lactose: História, Genética, Prática Clínica, Diagnóstico e Tratamento (Parte 1)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-Gastroped)

·        História e Genética

O leite é um produto específico e exclusivo da secreção das glândulas mamárias e a principal fonte alimentar dos mamíferos durante o período do aleitamento.


Figura 1- Amostras de leite humano: 1- frasco à esquerda mostra o chamado “leite jovem”, com baixa concentração de gordura, produzido nos primeiros minutos da lactação; 2- frasco à direita mostra o chamado “leite maduro” com elevada concentração de gordura, produzido após alguns minutos da lactação.

O leite é o responsável pelo fornecimento dos macronutrientes: proteínas, gorduras e carboidratos. Além de fornecer energia e matéria plástica, também é fonte rica em micronutrientes, tais como: Cálcio, Potássio, Fósforo, Riboflavina, Vitaminas Lipo e Hidrossolúveis.


Figura 2- Aleitamento natural exclusivo é recomendado durante os 6 primeiros meses de vida do lactente.

O principal carboidrato do leite é a Lactose, a qual lhe confere um sabor levemente adocicado. A Lactose, Saccharum lactis, é um dissacarídeo (ß-galactosil-1,4-glicose) constituído pelos monossacarídeos glicose (-d–glicose) e galactose (ß-d-glicose).


Figura 3- Fórmula química da Lactose.

Lactose somente é encontrada na natureza como produto específico da secreção da glândula mamária e é praticamente a única fonte de carboidratos dos lactentes durante o período de aleitamento natural exclusivo.


Figura 4- Representação esquemática da anatomia da glândula mamária.


CI- Tecido conjuntivo; PS- Porções secretoras; DE- ducto excretor

Figura 5- Desenho da histologia da glândula mamária em microscopia óptica comum, aumento médio e coloração hematoxilina/eosina.

A Lactose desde um ponto de vista evolutivo possui 100 milhões de anos. Foi descoberta por Bartoletus, em 1633, em Bolonha, mas sua síntese química somente foi obtida em 1927 por Haworth e cols., nos EUA.

A concentração de Lactose no leite dos mamíferos apresenta uma considerável variabilidade entre as diferentes espécies, e mantém uma relação inversamente proporcional com as concentrações de proteínas e gorduras.

A maior concentração de Lactose é verificada no leite humano (7g/100ml), enquanto que nos outros mamíferos dos quais se ordenha o leite para consumo humano (vaca, ovelha e cabra) a concentração da Lactose encontra-se ao redor de 5g/100ml.


Figura 6- Composição química do leite de diversos mamíferos.

A Foca, Zalphus californianos, constitui uma exceção entre os mamíferos, posto que seu leite não possui Lactose e nenhum outro carboidrato.


Figura 7- Focas que habitam a cidade de Valdivia, sul do Chile, em píer ao ar livre especialmente construído às margens do rio Valdivia. 


·  Lactose e Lactase: uma relação fundamental substrato/enzima

A Lactose possui uma estrutura química complexa e, portanto, não pode ser absorvida em seu estado natural. A Lactose necessita ser hidrolisada em seus monossacarídeos constituintes: Glicose e Galactose.

Estes monossacarídeos são absorvidos por transporte ativo através dos enterócitos para a corrente sanguínea seguindo até o fígado, onde são devidamente metabolizados. 

Figura 8- Composição química da Lactose e dos seus monossarideos constituintes: Glicose e Galactose.

A digestão da Lactose é realizada por uma enzima específica denominada Lactase, que é uma ß-galactosidase, presente nas microvilosidades dos enterócitos. A produção da Lactase é determinada por um gene regulador autossômico recessivo, localizado no cromossoma 2, de baixa expressão do RNA-m, que reduz a síntese da Lactase, denominado LAC*R.

 
Figura 9- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão evidenciando à esquerda um enterócito e à direita, em maior aumento, o detalhe das microvilosidades, a região mais externa do enterócito, aonde está presente a Lactase.


Figura 10- Representação esquemática da produção da Lactase.

      Elevada Prevalência da Deficiência de Lactase

Até meados do Século XX, a deficiência da Lactase não fazia parte dos conhecimentos médicos, e, portanto, os transtornos gastrointestinais descritos em adultos, após o consumo de leite e derivados, não eram cientificamente compreendidos.

Dahlqvist e cols., na década de 1960, comprovaram a existência da atividade enzimática da Lactase por meio da sua determinação bioquímica na mucosa do intestino delgado.

A partir das décadas de 1960-70 inúmeras pesquisas, em diferentes centros do globo terrestre, passaram a demonstrar que o desaparecimento da atividade da Lactase, na vida adulta, é uma condição comum nos seres humanos e demais mamíferos.

A Lactase atinge atividade máxima durante o período de amamentação e é seguida por uma progressiva diminuição até alcançar níveis muito baixos ou mesmo deixar de existir a partir do 5° ano de vida e que se estende pela vida adulta.

Figura 11- Representação esquemática da atividade da Lactase no intestino do rato durante o período de gestação,  após o nascimento, e seu decréscimo logo após o desmame, que se dá em 2 semanas, até a vida adulta.

A deficiência de Lactase ontogeneticamente determinada está fortemente ligada a grupos étnicos, a saber: 80 a 100% ameríndios, 60 a 100% judeus, afro-americanos, árabes e asiáticos, 70% indianos e, 50 a 80% hispânicos e centro-sul da europeus.  


Figura 12- Nativos Quechuas do altiplano peruano em Cuzco na sua festa anual, são intolerantes à Lactose na vida adulta.


Figura 13- Nativa Maia habitante de Chichicastenango cidade localizada nas montanhas distante cerca de 400 km da cidade de Guatemala, etnia intolerante à Lactose na vida adulta.


Figura 14- Índios brasileiros habitantes do Parque Indígena do Xingu, a despeito da prática do aleitamento natural exclusivo por tempo proplongado de forma universal, são intolerantes à Lactose na vida adulta.

Atualmente está bem estabelecido que cerca de 75% (5,25 bilhões) da população mundial apresenta um declínio da atividade da Lactase na vida adulta, o qual é ontogeneticamente determinado, e é denominado “Hipolactasia do tipo adulto”.

A “Hipolactasia do tipo adulto” pode acarretar má digestão e consequentemente má absorção e/ou intolerância à Lactose.


Figura 15- Mapa mundial do percentual de prevalência da intolerância à Lactose na vida adulta.


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