terça-feira, 11 de março de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (2)



Aspectos Genéticos da Deficiência e da Persistência  de Lactase

Mendel, em 1909, demonstrou nitidamente que a Lactase encontra-se presente, e em grande quantidade, no intestino dos mamíferos (exceção feita à foca) durante o período de amamentação e está ausente ou em menor concentração nos adultos. Somente após 60 anos comprovou-se, por meio da determinação bioquímica, a elevada atividade da Lactase no recém-nascido humano; tal enzima atinge atividade máxima durante o período perinatal e é seguida por uma notável depressão progressiva ou mesmo desaparecimento na vida adulta (Figura 1). 

Na verdade, após o desmame, cerca de 75% (5,25 bilhões) da população mundial sofre um declínio da atividade da Lactase, que é geneticamente determinado, sendo denominado hipolactasia do tipo adulto ou deficiência de Lactase, o qual pode acarretar má digestão e consequentemente má absorção e/ou intolerância à Lactose (Figura 2).

Desconfortos gastrointestinais em adultos após o consumo do leite e derivados foram descritos em antigos textos gregos e romanos, porém, até meados do século XX não eram conhecidos relatos clínicos da deficiência de Lactase; portanto, o problema não tinha sido estudado até o desenvolvimento das novas técnicas para se determinar laboratorialmente a ação enzimática da Lactase no intestino. Consequentemente a alta prevalência da diminuição da atividade da Lactase em adultos saudáveis foi descrita somente na década de 1960 por A. Dahlqvist e cols. A partir das décadas de 1960-70 inúmeras pesquisas em diferentes centros do globo terrestre passaram a demonstrar que o desaparecimento da atividade da Lactase, na vida adulta, é uma condição comum nos seres humanos e nos demais mamíferos. Por outro lado, aqueles adultos que conservam a capacidade de digerir a Lactose representam uma inovação evolutiva “anormal”. Por esta razão, embora o leite continue a ser utilizado em larga escala no mundo ocidental, na vida adulta, na maior parte do globo terrestre, o leite nunca mais é servido como alimento depois do período da amamentação. Esta habilidade que alguns grupos étnicos adquiriram para digerir a Lactose após o período da amamentação e que se prolonga por toda a vida é explicada por uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural”.

  Os mecanismos do controle da produção da Lactase têm sido profundamente debatidos ao longo dos anos por antropólogos, cientistas sociais, historiadores, cientistas e médicos. Alguns pesquisadores, baseados em estudos de regulação genética nas bactérias, argumentavam nos anos 1960 que a Lactase era uma enzima induzível pela presença do substrato, ou seja, que a produção da Lactase acreditava-se ser estimulada pela presença da Lactose. Baseando-se nesta visão, as populações que não utilizavam o leite na vida adulta perdiam a capacidade de produzir a Lactase, enquanto que aqueles grupos que consumiam o leite e seus subprodutos conservavam a capacidade de produzir a Lactase.



Entretanto, estudos bioquímicos colocaram em dúvida esta hipótese, e investigações realizadas com grupos de famílias demonstraram que a persistência da produção da Lactase é controlada por um gene autossômico dominante localizado no cromossoma 2. Os dois alelos para a persistência da produção da Lactase passaram a ser denominados de LAC*P (Figura 3).


 





Por outro lado, os alelos responsáveis pela restrição da produção da Lactase na vida adulta são denominados LAC*R. O lócus LAC é um gene regulador que reduz a síntese da Lactase pela redução da transcrição do RNA mensageiro. Indivíduos que herdam os alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da Lactase na vida adulta, enquanto que aqueles indivíduos que herdam os alelos LAC*R deixam de produzir a Lactase na vida adulta. Os heterozigotos receberão diferentes alelos, LAC*P/LAC*R, mas como LAC*P é um traço dominante, a atividade da Lactase mantém-se ao longo da vida adulta e consequentemente também sua habilidade para digerir a Lactose. Vale ressaltar que o genótipo LAC*P não está necessariamente condicionado ao consumo de produtos lácteos após o desmame. 



Uma nítida demonstração da hipótese genética de que a persistência da produção da Lactase é um traço dominante foi obtida a partir de um estudo realizado na África envolvendo duas populações distintas quanto à capacidade de digerir a Lactose na vida adulta. Foram incluídos no estudo um grupo da etnia Yoruba, reconhecidamente não absorvedores de Lactose, um grupo misto Yoruba-Europeus dos quais 44% eram não absorvedores de Lactose, e um grupo de Europeus com apenas 22% de não absorvedores. Quando ambos os pais eram não absorvedores toda a progênie resultou não absorvedora; entretanto, quando se deu o cruzamento entre um dos pais, absorvedor de Lactose, com um não absorvedor de Lactose, ou quando ambos os pais eram absorvedores de Lactose, obteve-se como resultado final uma progênie mista (Figura 4).

 Na era Paleolítica (superior a 10.000 anos a.C), antes da fase da domesticação dos animais, os lactentes humanos consumiam o leite das suas mães somente durante o período que abrangia desde o nascimento até o desmame. Após o desmame o leite deixava de ser um nutriente da dieta do indivíduo. Os seres humanos somente tiveram a oportunidade de obter regularmente leite quando os animais selvagens foram domesticados. As populações coletoras-caçadoras anteriores à Era Neolítica (Período da Pedra Polida, 10.000 anos a.C, sedentarização e surgimento da agricultura, até 3.000 anos a.C – Período dos Metais), eram intolerantes à Lactose. Estudos genéticos sugerem que as mutações mais antigas associadas com a persistência da Lactase, somente alcançaram níveis apreciáveis nos seres humanos nos últimos 6.000 anos. Vale enfatizar que a persistência da Lactase é um exemplo recente de duas evoluções: a) traço genético e b) domesticação e acasalamento dos animais, traço cultural (Figura 5).

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