sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A inédita experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (4)


O retorno de Perón à Argentina e mais transformações na vida do país e também na minha

Logo após a eleição de Campora o humor da população de um modo geral sofreu uma radiante mudança, passaram a ser respirados os ares de uma plena democracia. Antes, as pessoas não se atreviam a emitir qualquer opinião política contra o governo militar por puro medo das possíveis retaliações que poderiam vir a sofrer mas agora, porém, diante da nova realidade de plena liberdade, tudo transpirava política. A partir daí pude me dar conta do alto grau de politização que fazia parte da alma do argentino, desde o mais simples cidadão do ponto de vista educacional e sócio-cultural, passando por todas as estratificações, até o mais refinado intelectual. Em todos os ambientes que eu freqüentava, tanto no hospital quanto no bairro onde eu morava, a política era o tema que predominava em todas as conversas. Como no Brasil vivíamos uma ditadura militar que já durava nove anos, o que muito embora a mim não agradasse para nada, eu não tinha uma participação política ativa contra a ditadura, entendia que minha função era trabalhar como médico atendendo a população e continuar a estudar para manter-me atualizado na minha área de atuação. Na verdade, afora a Medicina meu grande envolvimento era com o esporte, mais particularmente o futebol, minha eterna paixão, a qual perdura até os dias atuais. A política não me entusiasmava e, na verdade, eu não tinha a consciência da importância do exercício da plena cidadania, poderia mesmo me considerar um alienado politicamente falando, o tema até mesmo me aborrecia. Foi o convívio com meus pares no hospital e no bairro onde morava que, pouco a pouco, fui percebendo, quase de forma inconsciente, que a política permeia todas as nossas ações na vida, queiramos ou não ela está intimamente ligada aos nossos destinos. Assim é que no hospital, como que em um passe de mágica, o assunto das conversas que girava, até então, apenas em torno da Medicina, começou a dar lugar, mais e mais, às questões políticas pelos quais o país passava, mas, além disso, vivíamos também a época da plena guerra fria, portanto, a política mundial necessariamente entrava em cena, em particular o antagonismo direita-esquerda, capitalismo-socialismo, democracia-comunismo. Eu me considerava absolutamente neófito neste campo do conhecimento, principalmente porque meus interlocutores conheciam, pelo menos desde meu ponto de vista, profundamente o assunto, e, como eu me sentia um total ignorante, me calava para escutar e aprender. Mas como me referi anteriormente, política também se discutia no bairro, muito embora em nível bem menos elitizado. Eu morava em um prédio de três andares pertencente a um único dono e aí praticamente habitava apenas a sua família que era numerosa. O andar térreo era todo constituído por lojas que o patriarca alugava para o comércio. Dentre as várias lojas existentes havia uma quitanda e um açougue como parte do mesmo negócio que era dirigido por um senhor mais idoso e seus dois filhos que tinham aproximadamente a minha idade, o Negro e o Pepe. Como aí fazíamos as compras do dia a dia, pouco a pouco fomo-nos tornando amigos, no princípio por causa do futebol, mas depois do retorno à democracia a discussão política passou a preponderar. Em alguns dias da semana, depois de chegar do hospital, no começo da noite, como na Argentina não se costuma jantar antes das 21 horas, enquanto minha mulher preparava a comida eu descia para a quitanda para conversar com eles que sempre me esperavam com uma garrafa de vinho e algum aperitivo. Aí passávamos longos minutos divagando sobre os mais variados temas políticos, e, como já havia aprendido algo no hospital com meus colegas médicos, aqui eu me atrevia a dar algumas opiniões, já me sentia seguro para tal. Freqüentemente outras pessoas, geralmente fornecedores de mercadorias, também participavam desses deliciosos encontros. Uma delas, em particular, o fornecedor de cigarros que vinha em seu furgãozinho, também da nossa idade, era um peronista fanático, e por mais que se criticasse Perón, ele apresentava um argumento infalível para defendê-lo. Dizia ele, meu pai era muito pobre, um simples operário, mas foi no governo de Perón que ele conseguiu adquirir a sua casa própria, e, isto tem um valor incalculável, é uma dívida de honra contraída com Perón para todo o sempre. Foi aí que pude entender duas coisas ao mesmo tempo, a primeira delas, foi a razão pela qual praticamente não havia imóveis para serem alugados em Buenos Aires, e, a segunda, foi compreender o real significado da expressão “realizar o sonho de ter a casa própria”, o que a imensa maioria dos meus compatriotas não possuía. Foi assim, paulatinamente que eu fui me politizando e desfrutando com entusiasmo o direito da livre expressão, sem censuras externas ou autocensura, fui sorvendo com enorme alegria esse ambiente de democracia na sua mais pura conceituação. Havia atingido o que se denomina, em algumas situações críticas, “o ponto do não retorno”, não conseguiria mais me calar diante da falta de liberdade de expressão, esta salutar transformação me havia atingido em cheio e me conquistado definitivamente. Havia assumido um compromisso moral comigo mesmo que quando retornasse ao Brasil iria lutar ativamente pela reconquista da democracia. Dito e feito, assim que retornei ao nosso país passei a batalhar de forma incansável, pacificamente, dentro das minhas possibilidades, cotidianamente pela volta ao estado de direito democrático e pelo pleno respeito das liberdades individuais e coletivas. Eu que havia viajado apenas para fazer uma especialização em Gastroenterologia Pediátrica, retornaria com mais uma bagagem no meu currículo pessoal, ter me transformado em um ser político, um defensor incondicional da democracia.

As discussões políticas, entretanto, não impediam que eu continuasse a desempenhar ativamente minhas tarefas assistenciais e de pesquisa, mesmo porque, estas conversas ocorriam nos intervalos das nossas atividades, durante o café no meio da manhã e o almoço, como ficou comprovado, conforme está registrado no meu diário:

”...tenho aproveitado muito as seções de Raios-X, uma vez por semana as rotineiras, mas na realidade tenho ido de duas a três vezes por semana para acompanhar os meus pacientes. É muito interessante principalmente acompanhar os exames contrastados visualizando também a radioscopia, o que nos dá uma excelente noção da dinâmica do trato digestivo. Nunca tinha visto tanta chapa de estômago em toda minha vida e mais uma vez a verdade se repete, quem procura acha, e tenho achado úlceras gástricas e duodenais em crianças.

Tenho estudado bastante e procurado muita bibliografia sobre tudo aquilo que diz respeito à gastroenterologia. Fiz, ou melhor, estou terminando de fazer, pelo Current Contents (era a melhor e mais moderna forma de se pesquisar a literatura médica na época, ainda não existia internet nem o Google), uma completa revisão de 1972 e praticamente enchi um caderno com referências bibliográficas. Continuo, porém, angustiado em querer estudar tudo e aprender tudo sobre esse mundo que é a gastroenterologia, e, evidentemente, não consigo dominar nem sobre 1/10 das informações disponíveis. No entanto, continuo buscando coisas novas para estudar.


Meu entendimento com o pessoal aqui é muito bom e já fiz grandes amizades, principalmente com dois especializandos de La Plata. Um deles, Eduardo Cueto Rua (Figura 1), desenvolve um trabalho sobre Balanço Metabólico, que por sinal é uma coisa muito interessante.
Figura 1- Eduardo Cueto Rua cuidando de uma criança colocada em "Balance" (Balanço Metabólico), notar embaixo da cama a proveta volumétrica que era utilizada para mensurar as perdas fecais separadas de urina. Cueto era um dos especializandos de La Plata de quem tornei-me íntimo amigo, amizade que perdura inabalável até os dias atuais. Cueto trabalha no Hospital Soror Ludovica em La Plata aonde é chefe do Serviço de Gastroenterologia; ele tem especial interesse pela Doença Celíaca.


Consiste em colocar a criança (tem que ser do sexo masculino) em uma cama cujo colchão tem um orifício na sua porção central, de tal forma a permitir que sejam coletadas separadamente as fezes da urina. Sabendo-se rigorosamente o que a criança ingeriu de líquidos e nutrientes, pode-se determinar com alto grau de precisão, confrontando-se os ingressos com as excreções urinárias e fecais, bem como medindo-se o volume das excretas e dosando-se a quantidade de gorduras, proteínas e açúcares nas fezes, se as perdas são normais ou anormais, e neste último caso qual a intensidade da anormalidade.

Aqui no hospital meu cartaz com o pessoal médico e da manutenção está grande por causa do futebol, estamos disputando um campeonato inter-hospitalar e temos ganhado todas as partidas, eu sou o artilheiro do torneio (o futebol sempre me ajudou na vida).
Em resumo estou muito feliz aqui e penso que sentirei muita saudade de tudo e de todos quando voltar ao Brasil, e como experiência médica, mas, principalmente de vida, acho que todos deveriam experimentar uma coisa assim. Vale a pena!”
Alguns anos após retornar ao Brasil, depois de inúmeras tentativas frustradas, finalmente, trabalhando no hospital Umberto I como chefe do Serviço de Pediatria, em meados da década de 1980, consegui criar uma Unidade Metabólica com a finalidade de oferecer um ótimo cuidado assistencial aos nossos pacientes portadores de Diarreia Aguda e Diarreia Persistente, à qual, em homenagem ao meu saudoso mestre, foi denominada Unidade Metabólica “Horácio Toccalino”. Para que nosso objetivo fosse atingido a implantação da técnica do Balanço Metabólico passava a ser de fundamental importância. Os Médicos Residentes foram persistentemente conscientizados da suma importância da implantação desta técnica, de tal forma que em pouco tempo passamos a ter a irrestrita colaboração de todo o corpo assistencial de saúde. Entretanto, devido ao insano trabalho para controlar todas as variáveis a cama metabólica recebeu o sugestivo apelido de “cama diabólica”, mas era unânime a opinião de que sua utilidade mostrava-se de inestimável valor para oferecer o melhor cuidado assistencial aos nossos pacientes (Figuras 2-3-4).

Figura 2- Visão da entrada da Unidade Metabólica do Hospital Umberto I inaugurada no final da década de 1980 em homenagem a Dr. Horácio Toccalino.
Figura 3- Paciente portador de diarréia persistente e desnutrição grave colocado em balanço metabólico no Hospital Umberto I.
Figura 4- Visão de uma das salas da Unidade Metabólica Dr. Horácio Toccalino no Hospital Umberto I, observando-se as enfermeiras cuidando de pacientes que se recuperaram do quadro diarréico enquanto um outro paciente encontra-se na cama "diabólica" realizando balanço metabólico.


A implantação do Balanço Metabólico, com sucesso, passou a nos permitir o cálculo, com exatidão, das perdas hidro-eletrolíticas e nutricionais dos pacientes, o que nos trouxe conhecimentos fantásticos a respeito dessas doenças. As taxas de mortalidade intra-hospitalar por Diarreia Aguda caíram a ZERO e as por Diarreia Persistente se mantiveram sempre abaixo dos 5%. Estes resultados espetaculares no tratamento destas enfermidades que, em passado não remoto, haviam sido as principais causas de mortalidade intra-hospitalar no nosso meio, conseqüentemente, possibilitaram a realização de inúmeras publicações em periódicos médicos nacionais e internacionais, nos quais relatávamos os meios pelos quais os êxitos haviam sido alcançados. Elenco, a seguir, a produção dos conhecimentos mais significativos que se originaram a partir da utilização do Balanço Metabólico, e que resultaram em publicações em periódicos indexados, além das teses de Mestrado e Doutorado que eu tive a oportunidade de orientar:
Mestrado:
 1- Aristides Schier da Cruz. Proliferação bacteriana no intestino delgado de lactentes portadores de diarréia aguda e protaída: introdução de técnica simples e rápida de intubação nasoduodenal para coleta de fluído do intestino delgado. 1991. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Orientador: Ulysses Fagundes Neto.
2- Domingos Palma. Diarréia aguda: perdas hídricas fecais em lactentes hospitalizados e sua correlação. 1993. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Orientador: Ulysses Fagundes Neto.
3- Jacira Omena Torres de Oliveira. Mortalidade em crianças hospitalizadas com diarréia aguda: fatores de risco associados ao óbito. 1994. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.
4- Cleide de Holanda Fernandes. Fatores de risco associados à persistência da diarréia por Escherichia coli enteropatogênica clássica - EPEC. 1997. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


5- Célia Regina Moreira. Intolerância à lactose em lactentes hospitalizados com diarréia aguda por Escherichia coli enteropatogênica clássica. 1996. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


6- Sandra de Martini Costa. Ultra-estrutura do intestino delgado na diarréia persistente. 1996. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


7- Rose Terezinha Marcelino. Teste do H2 no ar expirado no diagnóstico do sobrecrescimento bacteriano do intestino delgado. 1995. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


8- Jacy Alves Braga de Andrade. Letalidade em lactentes com diarréia persistente: fatores de risco associados ao óbito. 1995. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


9- Carlos Alberto Garcia Oliva. Diarréia aguda associada à Escherichia coli enteropatogênica clássica: estudo clínico e metabólico. 1994. Dissertação (Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Orientador: Ulysses Fagundes Neto.

Doutorado:
 1- Jacy Alves Braga de Andrade. Estudo ultraestrutural da interação de amostras de Escherichia coli entreroagregativa (EAEC) com mucosa intestinal humana preservada in vitro: sugestão de invasão como fator de virulência. 2001. Tese (Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.

2- Célia Regina Moreira. ESTUDO DA INTERAÇÃO DE AMOSTRAS DE ESCHERICHIA COLI ENTEROAGREGATIVA COM MUCOSA INTESTINAL DE COELHO IN VIVO. 2001. Tese (Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.

3- Carlos Alberto Garcia Oliva. Balanços metabólicos de lactentes hospitalizados com diarreia aguda: comparações entre fórmulas com e sem lactose na realimentação. 1997. Tese (Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria) - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.

Artigos Publicados em Periódicos:

1- FAGUNDES NETO, U; LIFSHITZ, F; OLIVA, CAG; CORDANO, A; FRIEDMAN, S. Refeeding of infants with acute diarrheal disease. The Journal of Pediatrics, 118; 899-899, 1991.
2- FAGUNDES NETO, U; CORDANO, A; LIFSHITZ, F; TRABULSI, L. R. Protracted diarrhea: the importance of the enteropathogenic Escherichia coli strains and Salmonella in its genesis. Malnutrition Chronic Diet Associated Infantile Diarrhea 37;367-367, 1990.

3- FAGUNDES NETO, U; LIFSHITZ, F; FERREIRA, VC; CORDANO, A; RIBEIRO, HC. The response to dietary treatment of patients with chronic diarrhea post-infectious diarrhea and lactose intolerance. Journal of the American College of Nutrition, 9; 231-231, 1990.

4- FAGUNDES NETO, U; FERREIRA, VC; PATRICIO, FRS; MOSTACO, VL; TRABULSI, LR. Protracted Diarrhea: The Importance of The Enteropathogenic E. coli (EPEC) Strains And Salmonella In Its Genesis. J Pediatr Gastroenterol Nutr, 8; 207-211, 1989.

5- FAGUNDES NETO, U; REIS, JC; SABBAG, N; OLIVA, CAG. Diarréia aguda: evolução clínica em crianças. Revista Paulista de Pediatria, 7; 27-34, 1989.

6- FERREIRA, VC; FAGUNDES NETO, U. Diarreia Protraida: Tratamento Dietético e Intolerância Alimentar. JORNAL DE PEDIATRIA, 64; 375-383, 1988.

7- FAGUNDES NETO, UPATRÍCIO, FRS; TRABULSI, LR. Diarréia Protraida: a importância dos agentes enteropatogênicos na sua gênese e fisiopatologia. Revista Paulista de Pediatria, 20; 28-32, 1988.

8- FAGUNDES NETO, U; VIARO, T; WEHBA, J; PATRICIO, FRS; MACHADO, NL. Diarreia Protraida / I / Aspectos Clinicos e Funcionais do Intestino Delgado. Jornal de Pediatria, 57; 39-44, 1987.

9- FAGUNDES NETO, U; TRABULSI, LR. Agentes enteropatogênicos isolados no suco entérico em crianças com diarréia aguda e protraida. Jornal de Pediatria, 105; 123-127, 1987.

10- MOSTACO, VL; TRABULSI, LR; FAGUNDES NETO, U. Enteropathogenic agents isolated from intestinal juice in children with acute and protracted diarrhea. Revista Paulista de Medicina, 105; 123-127, 1987.


Retornemos novamente aos acontecimentos cotidianos da minha vida social. Morávamos em um bairro tipicamente de classe média, muito tranquilo e totalmente seguro, tudo se assemelhava aos idos dos anos 1950 em São Paulo, as compras eram feitas diariamente na quitanda, no empório, localizados no mesmo quarteirão do nosso apartamento, não havia qualquer supermercado por perto, caminhava-se pelas ruas com absoluta segurança a qualquer hora do dia ou da noite. Assim que nos instalamos começamos a travar relações sociais com nossos vizinhos e comerciantes; como se tratava de um bairro predominantemente de origem judaica, nós éramos vistos como seres um tanto exóticos, primeiro por não sermos judeus e segundo porque éramos brasileiros, o que se constituía, naquela época, algo extremamente inusitado de se observar. Apesar de haver a barreira do idioma que pouco a pouco foi sendo vencida, éramos tratados com muita gentileza e também curiosidade por toda a vizinhança, e ao tomarem conhecimento que eu era médico passou a haver até mesmo certa reverência no tratamento pessoal. Conversando com as pessoas, ao saberem que eu era fanático por futebol houve uma mobilização no bairro para se formar um time, o que rapidamente aconteceu, e em pouco tempo já estávamos disputando algumas partidas amistosas contra outros times das proximidades, nos fins de semana, inicialmente no Parque Palermo, em campos improvisados (Figura 5).
Figura 5- Uly e eu brincando no Parque Palermo antes de uma das partidas amistosas do time do bairro.

Posteriormente, em virtude do sucesso da empreitada, pois vencíamos quase todas as partidas, tornamo-nos mais organizados e ambiciosos. Meus entusiasmados companheiros começaram a se movimentar em busca de adversários mais qualificados e aí passamos a jogar em campos de várzea contra equipes bem formadas, e com isso os desafios foram aumentando, era necessário reforçar nosso time para seguirmos vencendo. Foi em uma dessas buscas por reforços que surgiram 2 novos jogadores de alta qualidade e que ao me virem jogando fizeram-me um convite extremamente excitante, disputar pela equipe à qual eles estavam oficialmente vinculados o Campeonato Amador de Buenos-Aires, no Parque Saavedra. Tive um momento de grande hesitação porque se aceitasse este convite teria obrigatoriamente que abandonar o compromisso anteriormente assumido com meus companheiros do bairro, porém tudo ficou resolvido a contento, porque foram os próprios companheiros que se sentiram altamente orgulhosos pelo convite por mim recebido, e assim a decisão de disputar o campeonato tornou-se automática. A equipe pela qual passei a jogar era do bairro Belgrano, ficava a uns poucos quilômetros da minha casa, e se chamava El Faro, posto que sua sede se localizasse em uma linda confeitaria de mesmo nome. Passei assim a satisfazer minha eterna paixão, o esporte competitivo, era uma alegria imensa ir aos domingos pela manhã jogar, pelo time que me adotou de imediato, um campeonato da cidade. Naquela ocasião o Brasil ainda desfrutava um extraordinário prestigio em decorrência da conquista do tricampeonato mundial no México em 1970, e o apelido mais elogioso que se podia aplicar para um bom jogador brasileiro era Pelé, que naquela época se encontrava no auge da sua carreira. Pois bem, El Faro tinha a tradição de ser um time intermediário neste campeonato que reunia os melhores times amadores de Buenos Aires, e pela primeira vez em sua estória tinha um jogador brasileiro em suas fileiras e, além disso, um centro-avante. Domingo após domingo o El Faro ia colecionando vitórias e eu marcando muitos gols, para surpresa geral nos mantínhamos na liderança do campeonato, e o comentário geral era que isso se devia graças aos inúmeros gols marcados pelo “brasileño”, que agora recebeu o apelido que me encheu de orgulho: “Pelé Blanco” (Figuras 6-7).


Figura 6- Meu time El Faro antes de uma partida do campeonato amador de Buenos Aires.

Figura 7- Meu amigo Cazon, aquele que me convidou a jogar pelo EL Faro, e eu.

Infelizmente, na parte final do campeonato eu sofri minha primeira e única distensão muscular, na parte posterior da coxa direita, e não pude mais jogar. O El Faro já não fazia tantos gols como havia se acostumado a fazer, perdeu algumas partidas, e terminou o campeonato em um honroso terceiro lugar, sua melhor colocação até então, o que me deixou um tanto frustrado. Por outro lado, restou o enorme prazer de ter disputado um campeonato de alto nível, ter sido reconhecido pelos meus pares como excelente jogador de futebol e acima de tudo ter aprendido muito com a escola argentina de futebol, o que trouxe grandes benefícios posteriores na minha longa e apaixonante vida de jogador de bola, tudo isso enfim, permaneceram, por todo o sempre, como reminiscências inesquecíveis.
   

No tocante às questões sociais a vida na Argentina, naquela época, era bastante barata, praticamente não havia inflação, e o câmbio nos favorecia significativamente, de tal forma que embora o salário de residente, que eu percebia, fosse apenas simbólico, como eu recebia o aluguel de uma casa em São Paulo, podíamos manter um nível de vida modesto, porém sem penúria. Como nossos amigos mais próximos eram os especializandos de La Plata, Eduardo Cueto Rua, Jorge Donatone, Luis Guimarey e “Negro” Rodrigues (Figuras 8-9-10-11-12) e que também levavam uma vida muito modesta porque os salários eram baixos, costumávamos com freqüência nos reunir nos fins de semana, no nosso apartamento em Buenos Aires ou viajávamos a La Plata, para longas conversas regadas com um vinho nacional barato, porém decente, e comer fantásticos “asados” (churrascos), porque a carne deles é realmente imbatível, além de barata.
Figura 8- Nosso filho Uly passeando em pleno inverno portenho no parque Centenário em um fim de semana. Neste parque que se localizava próximo ao nosso apartamento eu costumava dar minhas corridas na volta do hospital.



Figura 9- Desfrutando com os amigos de la Plata um "Asado" na casa quinta do sogro de Cueto, o advogado Dr. Carrera.
Figura 10- Mais uma visão do galpão aonde se comiam os "Asados", na casa quinta em Villa Eliza próximo de La Plata.

Figura 11- Nosso filho Uly brincando com Mercedita, filha de Cueto, na casa quinta de Dr. Carrera.
Figura 12- Uma foto histórica, que nunca mais pode ser repetida, com os quatro amigos "Platenses", da esquerda para a direita, Guimarey, Donatone, Cueto, eu e "Negro" Rodrigues.
Vivíamos modestamente, mas a família estava profundamente unida e feliz, tamanha era a felicidade que em Buenos Aires, como uma homenagem a quem nos acolheu com tanto carinho, foi gerada nossa segunda filha, Juliana, a “porteña”, hoje professora de inglês e atriz de enorme talento.

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