segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A inédita experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria, em Buenos Aires (1)


As motivações, os preâmbulos e as tratativas para a viagem de especialização
Residência Médica
Corria o ano de 1970, eu estava cursando o último ano de Medicina (naquela época já era denominado internato), na Escola Paulista de Medicina (EPM). Havia muito tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha uma meta obsessiva que era fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo, posto que tinha absoluta consciência de que não me sentiria seguro em exercer a profissão sem ter passado por esta extraordinária vivência de treinamento em serviço. A instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio, representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que tornava o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas disponíveis para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental importância aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de internato para obter tão almejado êxito. Naquele tempo, tudo o que meu pensamento alcançava, até então, em termos futuros, era tornar-me um médico competente e, concomitantemente, se possível seguir a carreira acadêmica e vir a ser um professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico prestei o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui aprovado, e assim, consequentemente, um novo horizonte surgia na minha vida profissional. Iniciava-se assim, nos três anos seguintes, a perspectiva de concretizar o ambicionado desejo e, também, passaria a me preparar para os próximos desafios a serem enfrentados.
Mas, antes de seguir o relato das atividades com o decorrer da Residência Médica, torna-se importante voltar um pouco no tempo para que se possa melhor entender os acontecimentos que o futuro me reservaria. Durante o internato, quando eu estava fazendo o estágio na Pediatria, por coincidência, concomitantemente como parte dos eventos comemorativos dos 50 anos de fundação da Associação Paulista de Medicina, foi organizado um curso de atualização em várias especialidades médicas, inclusive em Pediatria. Convidado pelo preceptor do internato e residência naquela época, professor Jamal Wehba, fui assistir às aulas que eram ministradas por três professores convidados do exterior. Dois deles eram professores seniores, Svoboda, alemão, especialista em ortopedia e o outro Fred Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas magistrais. Mas quem mais me chamou a atenção foi um jovem professor argentino, Horácio Nestor Toccalino, gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas extremamente práticos condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles tempos. Abordava, sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarréia aguda e diarréia crônica, demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos tão freqüentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de morbidade e mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes às famílias sócio-economicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou também uma enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida a Doença Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que aprendi naqueles dias e, sem qualquer sombra de dúvida, foi a partir desta fantástica experiência que começou minha inclinação pela Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria, a qual se tornou irreversível.
Os dois primeiros anos da Residência Médica reforçaram a ideia da necessidade imperiosa de escolher uma super-especialidade dentro da Pediatria, porém sem jamais negar a formação generalista. Naquela época eram raras as especialidades pediátricas reconhecidas, tais como, neonatologia, neurologia, cirurgia pediátrica, genética para citar as mais consolidadas, enquanto que as potenciais outras futuras especialidades encontravam-se em estágio ainda muito incipiente de implantação. O Pediatra tinha uma formação de generalista e quando necessitava a opinião de um especialista era chamado um clínico de adultos, o que não trazia na prática, na maioria das vezes, grande contribuição para a solução dos problemas. Esta situação associada ao fato de que eu não conseguia dominar com segurança todas as diversas patologias que tinha que enfrentar no dia a dia me gerava grande angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um pouco de tudo, mas apenas na superficialidade, o que me deixava profundamente frustrado, queria conhecer as patologias mais profundamente, queria entender as causas dos processos, não apenas as consequências, ou seja, simplesmente as manifestações clínicas (sinais e sintomas). Além disso, as principais causas de internação nas nossas enfermarias eram devidas a Diarreia aguda e Diarreia crônica as quais inevitavelmente vinham associadas à Desnutrição, e, acarretavam altíssimas taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era freqüente deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários pacientes com diarreia e ao voltar na manhã seguinte encontrava estes mesmos leitos vazios porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela situação me deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução para estes problemas tão freqüentes e tão graves, era preciso conhecer mais a fundo os mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente agressor e o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental enveredar para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que vinha cercada de conflitos, posto que as resistências contra a especialização no campo da Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e justificado orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do médico generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam, pois, a perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da época provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo que havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu grande sonho era encaminhar-me para a vida universitária, com o objetivo de enveredar-me na pesquisa, produzir e difundir conhecimentos em benefício da sociedade e dos futuros discípulos. Entretanto, para ter êxito neste desejo era imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico. Este foi o desafio que lancei para mim, e, ao longo dos anos, foi o que tratei incessantemente de perseguir.
O Grupo de Estudo

No início do segundo ano da Residência, como conseqüência de todas as angústias e frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente observados no manejo dos pacientes portadores de diarréia e desnutrição, resolvemos constituir um grupo de estudo. Era pequeno, mas muito aplicado e eficiente, composto pelo nosso preceptor Prof. Jamal e, por um grande amigo desde os bancos do curso médico e agora colega na Residência, Dr. Fernando Fernandes. Tinha basicamente o objetivo de aprimorarmos nos novos conhecimentos que se avolumavam na literatura a respeito deste terrível binômio Diarreia-Desnutrição. Passamos, então, a nos reunir semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal para ler e discutir criticamente os artigos mais recentemente publicados na literatura médica sobre os principais aspectos relacionados com a fisiologia dos processos digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que envolviam a interação dos diferentes agentes enteropatogênicos com o hospedeiro, e suas conseqüentes intolerâncias alimentares. À medida que avançávamos em nossos estudos mais e mais nos conscientizávamos do quanto ignorávamos sobre o tema; isto, no entanto, não nos abalou negativamente, ao contrário, serviu sempre de estímulo desafiador para que nos mantivéssemos em permanentes encontros de estudo. Entrávamos, assim, no mundo recentemente descrito das intolerâncias aos carboidratos da dieta, em especial da lactose, fatores perpetuadores da diarréia e agravantes da desnutrição. Começava a surgir uma nova luz na perspectiva de oferecermos uma melhor conduta nutricional aos nossos pacientes, porém, ainda eram apenas conhecimentos teóricos, faltava-nos uma experiência prática para podermos ter mais segurança nas nossas propostas diagnósticas, de investigações laboratoriais, e terapêuticas (Figura 1).
Figura 1- Este paciente sofria de diarreia persistente e intolerância à lactose e recebeu alta curado do Hospital São Paulo; foi um dos primeiros, dentre inúmeros que viriam a seguir, a se beneficiar dos novos conhecimentos adquiridos do grupo de estudo a respeito das intolerâncias alimentares tão pouco conhecidas à época (1972).


Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a ideia de buscar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.
As barreiras a serem vencidas e a exitosa viagem a Córdoba
Diante da potencial situação de imobilismo que se nos apresentava, para tentarmos dar uma solução prática para tal impasse, eu me dispus a tentar um contato com Dr. Toccalino  com o intuito de solicitar a realização do treinamento na especialidade em seu pioneiro e prestigioso Serviço, em Buenos Aires, posto que no terceiro ano da Residência tínhamos a permissão para realizar um estágio eletivo. Havia, no entanto, dois problemas a serem enfrentados e vencidos, a saber: o primeiro deles dizia respeito a realizar um estágio no exterior, coisa que era absolutamente inédita, até então, nos programas da Residência Médica da EPM, e por esta razão, não sabíamos como reagiriam nossos dirigentes a esta proposta. O segundo problema era saber se Dr. Toccalino me aceitaria como especializando em seu serviço, posto que não o conhecia pessoalmente e tampouco tinha qualquer informação da possível existência deste tipo de programa em seu Serviço. Felizmente, no entanto, as soluções foram pouco a pouco aparecendo e as barreiras foram sendo derrubadas. Em relação ao primeiro problema, decidi conversar com o Prof. Azarias Andrade de Carvalho, chefe do Departamento de Pediatria da EPM, e, portanto, a pessoa responsável pelas decisões a serem tomadas. Nesta conversa Prof. Azarias não somente vislumbrou com grande entusiasmo esta possibilidade, como mais ainda assumia total responsabilidade, perante os outros dirigentes do Programa de Residência Médica da EPM, pela autorização da possível e inédita viagem. Em relação ao segundo problema recebemos uma notícia alvissareira da parte do Prof. Fernando Nóbrega, naquela época chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que nos informou que uma residente de terceiro ano da sua Faculdade estava estagiando no serviço do Dr. Toccalino, portanto, a porta começava a se abrir.


Estávamos em meados do ano de 1972 e em outubro realizar-se-ia o Congresso Pan-americano de Pediatria, por coincidência, em Córdoba, Argentina, e, imaginávamos que muito provavelmente Dr. Toccalino deveria estar presente no aludido evento; seria, portanto, a oportunidade ideal para contatá-lo para solicitar a permissão para trabalhar em seu Serviço em 1973. Como Prof. Jamal tivesse aprovado um trabalho de pesquisa para ser apresentado no Congresso e dispunha de duas passagens aéreas, com a autorização do Prof. Azarias, viajamos os dois para Córdoba esperançosos em alcançar nossos objetivos, ou seja, encontrar Dr. Toccalino e dele receber a aprovação sobre a minha especialização em seu Serviço, em Buenos Aires.

Como era esperado Dr. Toccalino estava em Córdoba, em determinado momento nos recebeu com toda gentileza e para nossa agradabilíssima surpresa disse que me receberia em seu Serviço com a maior satisfação a partir de janeiro de 1973. A alegria foi tamanha que antes de voltarmos ao Brasil, como era um fim de semana, decidimos comemorar o êxito da nossa missão visitando Buenos Aires, cidade que viria a ser a minha morada no ano vindouro (Figuras  2 – 3 - 4 - 5).
Figura 2- Imagem ao fundo da tradicional Casa Rosada, sede do Governo da Argentina.


Figura 3- Prof. Jamal e eu à beira o rio da Prata, famoso local turístico portenho.
Figura 4- Vista do famoso Parque Palermo.
Figura 5- Visita a Ciudad de Niños no caminho a La Plata

A viagem com destino a Buenos Aires
Finalmente, ambos os problemas foram devidamente superados, e, a tênue e nebulosa idéia inicial havia definitivamente se materializado, surgia límpida e cristalina, totalmente delineável e palpável. Agora eu e minha família (mulher e filho) estávamos prontos e ansiosos para partir rumo ao desconhecido, para os braços da nossa primeira aventura no exterior.
No nosso próximo encontro já estaremos a caminho do nosso destino, vencendo os 2.000 km que separam São Paulo de Buenos Aires, em nossa valorosa Variant, mas antes, porém, passaremos por Punta Del Este e Colônia de Sacramento (Figuras 6 - 7 - 8 - 9 - 10) aonde tomaremos o ferry-boat Nicolas Mianovich (atualmente este barco está ancorado no bairro da Boca e tornou-se um museu náutico) para cruzar o rio da Prata e chegarmos, por fim, à capital portenha.
 
Figura 6- Uma das conhecidas praias de Punta del Este, a Playa Brava. Ao fundo vê-se o centro da cidade.

Figura 7- Vista da Praia Brava.

Figura 8-Vista de uma das inúmeras mansões de veraneio dos milionários argentinos e uruguaios na região do Country Grill, em Punta del Este.
Figura 9- Visão do centro histórico de Colônia do Sacramento.

 Figura 10- Nossa valorosa Variant antes de cruzar o rio da Prata, ainda em Colônia do Sacramento.

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