terça-feira, 28 de setembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (2)

Histórico

Diarréia Persistente (DP) foi primeiramente descrita por Avery e cols. (Pediatrics 41:712-22, 1968) sob a denominação de Diarréia Intratável, o que conferia a esta entidade clínica uma conotação absolutamente fatalista, indicando um prognóstico praticamente fechado dada a gravidade do quadro clínico, em virtude da extrema limitação dos recursos terapêuticos existentes à época (vale lembrar que o emprego da nutrição parenteral somente passou a estar disponível a partir da década de 1970), em face da inexistência dos conhecimentos fisiopatológicos íntimos do processo diarréico em questão, o que acarretou uma elevada taxa de mortalidade nesta série, em 40% dos casos. Sem dúvida alguma, este trabalho original teve a enorme importância de despertar o interesse dos clínicos e pesquisadores para um grupo de pacientes que pertenciam a uma faixa etária precoce da vida, cujas complicações nutricionais advindas do prolongamento da diarréia e da má absorção dos nutrientes da dieta, mostravam-se extremamente graves com alto risco de morte (Figura 1).
FIgura 1- A triste realidade do resultado final da doença diarréica nos bolsões de miséria que ainda existem no nosso país e nos demais países em desenvolvimento.

Hyman e cols. (J. Pediatrics 78: 17-19, 1971) introduziram o termo Diarréia Protraída (Prolongada) levantando a suspeita de que esta síndrome seria provocada por intolerância à proteína do leite de vaca e relataram a experiência adquirida com a utilização inicial de Nutrição Parenteral Total (NPT), para logo a seguir utilizar dieta à base de Hidrolisado Protéico extensivamente hidrolisado. Lloyd-Still e cols. (Am. J. Dis. Child. 125: 358-64, 1973) descreveram intensas alterações morfológicas do intestino delgado à microscopia óptica comum mas, embora não tenham identificado a etiologia do processo diarréico, demonstraram que estas lesões eram reversíveis quando utilizavam NPT por tempo prolongado, com jejum oral absoluto. Estes achados foram posteriormente confirmados por Banister e cols. (Acta Paediatr. Scand. 64: 732-40, 1975) bem como por Greene e cols. (J. Pediatr. 78: 695-704, 1975) os quais também obtiveram excelentes resultados com o emprego da NPT. Por sua vez, Larcher e cols. (Arch. Dis. Child. 52: 597-605, 1977) descreveram à época a maior casuística de DP dando especial ênfase à etiologia e propuseram medidas dietéticas para o manuseio dos pacientes, eliminando as fórmulas lácteas, e introduziram uma dieta líquida à base de carne de frango, com êxito indiscutível. Este trabalho teve o grande mérito, naquela ocasião, de servir como exemplo de conduta dietética alternativa de sucesso para os mais diversos países do globo terrestre, em especial para os países em desenvolvimento, que não dispunham de fórmulas à base de hidrolisado protéico, pois se tratava de uma fórmula de baixo custo e de fácil elaboração. Fagundes-Neto e cols. (Arquivos de Gastroenterol 16: 205-8, 1975) descreveram o caso de um paciente com DP causada por uma cêpa de Escherichia coli O111 que provocou invasão da mucosa do intestino delgado (Figuras 2 – 3 – 4 & 5) e acarretou intolerância alimentar múltipla inclusive aos monossacarídeos da dieta. O paciente foi submetido à NPT e após 2 semanas de internação voltou a tolerar alimentação por via oral e também demonstrou recuperação da lesão morfológica do intestino delgado (Figura 6).


Figura 2- Microfotografia do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando nítida atrofia vilositária sub-total e aumento do infiltrado inflamatório na lâmina própria.

Figura 3- Microfotografia em maior aumento do material de biópsia do intestino delgado do paciente mostrando a presença de nichos bacterianos firmemente aderidos à superfície epitelial com transformação cuboidal dos enterócitos. Na lâmina própria, logo abaixo da membrana basal nota-se um infiltrado hemorrágico.

Figura 4- Microfotografia em imersão do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando nichos bacterianos firmemente aderidos à superfície dos enterócitos, os quais se acham intensamente alterados quanto a sua morfologia.

Figura 5- Microfotografia em imersão do material de biópsia do intestino delgado do paciente evidenciando arrancamento dos enterócitos que se acham totalmente distorcidos e a presença de nichos bacterianos em sua superfície.


Figura 6- Microfotografia do material de biópsia do intestino delgado do paciente após ter cessado a diarréia e normalização da aceitação da dieta por via oral mostrando recuperação morfológica. As vilosidades intestinais ainda se encontram encurtadas evidenciando uma atrofia vilositária parcial mas em nítido processo de recuperação da estrutura morfológica.
Rothbaum e cols. (Gastroenterology 83: 441-54, 1982) demonstraram, por meio da microscopia eletrônica de transmissão, a clássica lesão em pedestal provocada por uma cêpa de Escherichia coli O119 em um grupo de lactentes com DP (Figuras 7 - 8 – 9 & 10).

Figura 7- Vide legenda acima.

Figura 8- Nichos bacterianos de Escherichia coli O 119 firmemente aderidos à superfície dos enterócitos. Nota-se a mesma anormalidade descrita em nossso paciente.

Figura 9- Ultramicrofotgrafia do material de biópsia do intestino delgado evidenciando destruição das microvilosidades e a formação da lesão em pedestal pela bactéria.

Figura 10- Vide legenda acima.

Fagundes-Neto e cols. (J. Pediatr. Gastroenterol. Nutr. 4: 714-22, 1985) descreveram aspectos clínicos e ultraestruturais do epitélio do intestino delgado de lactentes portadores de DP (Figuras 11 – 12 & 13).


Figura 11- Ultramicrofotografia de material de biópsia do intestino delgado de um paciente nosso portador de DP evidenciando profundas alterações estruturais dos enterócitos. As microvilosidades estão achatadas e diminuidas em número; as mitocôndrias estão inchadas e distorcidas e há um aumento significativo dos corpos multivesiculares (mvb) no interior do citoplasma denotando a penetração maciça de proteínas intactas.
Figura 12- Ultramicrofotografia do material de biópsia do intestino delgado de um paciente nosso portador de DP evidenciando as microvilosidades tendendo a formar tufos (setas); no interior do citoplasma observam-se retículos endoplasmáticos preservados (er), bem como as mitocôndrias e inúmeros corpos multivesiculares (mvb).


Figura 13- Ultramicrofotografia do material de biópsia do intestino delgado de um nosso paciente portador de DP em 2 momentos distintos da sua evolução: 1- à esquerda durante o período de estado da doença podem-se observar profundas anormalidades na morfologia do enterócito, havendo destruição das microvilosidades, e no interior do citoplasma não se pode identificar as organelas devido a intensa vacuolização das mesmas; 2- à direita após a recuperação clínica e nutricional evidenciando normalização da estrutura morfológica do enterócito; as microvilosidades se mostram íntegras e as organelas intracitoplasmáticas totalmente identificadas e normalizadas.

Considerando a importância global desta síndrome a Organização Mundial da Saúde, em 1987, após extensa discussão sobre o tema, decidiu expedir um memorando, dando um rótulo diagnóstico para esta síndrome, ao mesmo tempo em que chamava especial atenção para aquelas situações clínicas, as quais presumivelmente tivessem tido uma origem infecciosa e que se perpetuaram por diferentes razões, causando desnutrição e altas taxas de mortalidade.

Enquanto continuo discorrendo sobre a potencial gravidade da DP, nosso sofrido paciente A ainda se encontra na Unidade de Cuidados Intensivos, monitorado em seus sinais vitais e recebendo as reposições hidroeletrolíticas necessárias, para a preservação da sobrevivência, posto que o processo diarréico secretor ainda se mantivesse intenso, devido à infecção causada pela cepa de Escherichia coli O111, associado a um fator osmótico em decorrência a intolerâncias alimentares múltiplas, o que nos obrigou a empregar a NPT por um tempo prolongado (Figuras 14 & 15).

Figura 14- Nosso paciente A lutando pela sobrevivência durante o período de estado da doença sendo monitorado em suas funções vitais.

Figura 15- Nosso paciente A recebendo a atenção médica na UCI ainda em estado crítico de saúde.

No nosso próximo encontro continuarei a descrever os mais diversos aspectos etiológicos, clínicos e laboratoriais desta tão importante síndrome.

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