segunda-feira, 3 de maio de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (3)

Tese de Doutorado em Pediatria
Estávamos nos meados de Dezembro de 1970, eu juntamente com meus colegas de turma comemorávamos o fim do nosso curso de Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) com uma chopada e música, em frente ao Hospital São Paulo, quando veio um comunicado urgente do Parque Indígena do Xingu (PIX) informando que havia uma grave epidemia de gripe afetando a população indígena das tribos do Alto Xingu, e solicitando o envio imediato de médicos para prestar assistência aos enfermos. Dr. Roberto Baruzzi, coordenador das atividades de atenção à saúde da EPM no PIX, buscava desesperadamente médicos que pudessem atender este pedido de urgência, e como não houvesse encontrado auxílio disponível naquele momento decidiu lançar mão dos recém formados que estavam festejando o término de um longo percurso de 6 anos como acadêmicos do curso médico. Eu fui contatado e de pronto aceitei aquele que seria meu primeiro desafio como médico, o qual vinha acumulado com alguns agravantes, tais como, trabalhar em um local fora dos meus domínios corriqueiros, com uma população de cultura e idioma totalmente diferentes daquela que eu estava acostumado a lidar até então, e, mais ainda, não teria a supervisão de meus tutores para discutir minhas prováveis dúvidas de conduta. De fato quando lá chegamos eu e Rubens Belfort (Figura 1), meu colega de turma, éramos apenas os dois para cuidar da população das 9 aldeias que compõe a região do Alto Xingu, a situação era dramática.


Figura 1- Rubens Belfort e eu em um momento de descanso das atividades assistenciais saboreando um delicioso beiju recém assado.

Havia um grande número de crianças e adultos atingidos pela epidemia, a maioria de forma leve, porém alguns mais gravemente enfermos necessitavam de assistência mais cuidadosa. Adaptamos no Posto Leonardo uma grande enfermaria em um dos galpões que serviam de alojamento para os visitantes e ali internávamos os casos mais graves que necessitavam medicação intra-venosa (Figura 2 - 3 & 4).



Figura 2- Vista panorâmica do Posto Leonardo, ressaltando os grandes pequiseiros, à direita o galpão da enfermaria improvisada e ao fundo a cedificação da farmácia, local do primeiro atendimento médico.


Figura 3- Vista aérea do galpão que foi improvisado como enfermaria para atendimento dos casos mais graves.
Figura 4- Vista geral da enfermaria improvisada para atender os casos de gripe mais graves.

Os casos mais leves eram cuidados nas próprias aldeias que visitávamos duas vezes por dia (Figura 5 & 6).

Figura 5- Visão geral de um atendimento dos casos leves de gripe na aldeia Uaura.

Figura 6- Cena de atendimento na aldeia Iualapiti.

Foi uma experiência fantástica, heróica mesmo, e ao cabo de 2 semanas de trabalhos ininterruptos pudemos celebrar uma grande vitória, pois não havíamos perdido nenhum paciente, a epidemia foi superada com mortalidade zero. Pudemos assim voltar a São Paulo para participar das cerimônias de formatura com as glórias de havermos vencido nosso primeiro grande desafio como médicos.
À parte desta experiência assistencial durante todo o tempo que lá estive, cada vez mais me impressionavam alguns aspectos sócio-culturais daquela gente. Aprendi que o aleitamento natural é verdadeiramente “natural”, pois era prática universal naquela comunidade, não havia outro tipo de alimentação (os índios não tem atividade pecuária) para os lactentes e, além disso, era realmente prolongado porque havia visto inúmeras crianças que já caminhavam e ainda mamavam no seio materno (Figuras 7 & 8).

Figura 7- Lactente evidentemente eutrófico no momento da amamentação.

FIgura 8- Criança pré-escolar ainda recebendo aleitamento natural.

Como me especializaria em Pediatria, prestava muita atenção nas crianças e percebia o quanto elas transmitiam um ar de rara e constante felicidade, viviam aos bandos brincando o dia inteiro, fosse no pátio ou nos lagos próximos da aldeia, não havia brigas, riam o tempo todo, desfrutavam de plena liberdade de ir e vir (Figura 9).

Figura 9- Crianças índias nos recebendo em aldeia Coicuro.

Aprendi também que as crianças eram o centro das atenções de toda a comunidade, eram tratadas com enorme carinho e compreensão pelos adultos, nunca vi uma criança ser espancada por seus pais (Figura 10).


Figura 10- Pai pintando filho para participar da festa do Jawari, manifestação cultural das mais tradicionais na região do Alto Xingu.
A olho nu a impressão que me era transmitida transbordava o bem estar e o aspecto saudável das crianças desde tenra idade até os maiores. Percebia que o tipo de alimentação embora monótona quanto à variedade era altamente nutritiva e salutar, composta por mandioca, peixe e frutas silvestres, dentre estas destacando o pequi (fonte rica de vitamina A), havia abundância de comida mas não havia desperdício (Figuras 11 - 12 - 13 & 14) .
Figura 11- Pescaria altamente bem sucedida para uma festa tribal.

Figura 12- Índia preparando a mandioca para extração do ácido cianídrico, potente veneno presente neste vegetal plantado na região do Alto Xingu.


Figura 13- Índia fazendo a lavagem e peneirando a massa da mandioca para extração do ácido cianídrico.
Figura 14- Beiju sendo assado diretamente sobre o fogo.

Na verdade, eu que havia viajado para cuidar de uma população enferma e pretensiosamente acreditava que iria ensinar coisas a uma população de cultura primitiva, acabei aprendendo uma lição de vida que me serviu como um grande ensinamento pessoal e profissional futuro. Enfim, eu definitivamente me apaixonei por aquela “civilização” que veio desmitificar todos os ensinamentos preconceituosos que eu havia aprendido nos livros de História do Brasil nos bancos escolares. Eles conquistaram meu coração e minha mente (Figura 15).


Figura 15- Índia com sua prole e eu, após meu coração e mente terem sidos conquistados por essa gente.

Nos anos seguintes, ainda durante a minha formação na Residência Médica, voltei ao PIX como parte integrante da caravana EPM que rotineiramente para lá se dirigia com o intuito de vacinar a população e cuidar das possíveis intercorrências médicas. Aquela primeira impressão se reafirmava agora ainda com maior intensidade, visto que já havia adquirido alguma experiência clínica e, assim, podia ter um melhor juízo de valores quanto às condições de saúde das crianças índias. Foi a partir desta vivência clínica de que Eutrofia era o padrão nutricional vigente nesta comunidade é que desenhamos um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva e cientificamente comprovada esta sensação subjetiva que tanto nos chamava a atenção.

No próximo encontro irei relatar detalhadamente o projeto de avaliação do estado nutricional das crianças índias do Alto Xingu.

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