quarta-feira, 23 de julho de 2025

Mecanismos moleculares da perda da integridade infra vascular e epitelial na Síndrome do Intestino Irritável (SII)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou um artigo, em novembro de 2024, intitulado “Molecular Mechanisms Underlying Loss of Vascular and Epithelial Integrity in Irritable Bowel Syndrome”, de Maria Raffaella Barbaro e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos. 

INTRODUÇÃO 

A Síndrome do Intestino Irritável (SII) trata-se de um transtorno da interação do eixo cérebro-trato digestivo, caracterizada por dor abdominal recorrente associada a alterações nos hábitos intestinais. Ainda que a SII não seja uma enfermidade de risco para a vida, está associada a uma redução na qualidade de vida, com prevalência universal de 4,1%, e importante prejuízo econômico para a sociedade. De acordo com os critérios de Roma IV, a SII pode ser subdividida em: SII com predominância de diarreia (SII-D); SII com predominância de constipação (SII-C); SII com hábito intestinal misto (SII-M) e SII não classificada (SII-N). A fisiopatologia da SII é multifatorial e inclui uma combinação de disfunções que englobam o eixo cérebro-trato digestivo, incluindo a motilidade intestinal, a sensibilidade visceral, o sistema imune da mucosa, a barreira epitelial e a microbiota intestinal.

A barreira da mucosa intestinal é a mais vasta interface entre o meio ambiente e o corpo humano, envolvendo papéis primários da microbiota intestinal, muco e o epitélio. A barreira epitelial contribui para a homeostase humana permitindo a absorção dos nutrientes, água e eletrólitos, porém, ao mesmo tempo, limita a passagem de antígenos e microrganismos prejudiciais à saúde. O aumento da permeabilidade intestinal tem sido descrito entre 37% e 62% dos pacientes portadores de SII-D, ainda que também possa estar presente nos outros subgrupos. Predisposição genética, estresse e reações adversas aos alimentos, como também má absorção dos ácidos biliares e excessiva liberação de mediadores proteolíticos, podem também participar nas alterações da permeabilidade.

Há uma considerável implicação potencial do aumento da permeabilidade intestinal, na geração dos sintomas, nos pacientes portadores de SII. Na verdade, o aumento da permeabilidade intestinal expõe a mucosa a provocações anormais dos antígenos intraluminais e da microbiota e dos seus metabolitos, causando e mantendo uma ativação imune da mucosa e hipersensibilidade visceral, um conceito posteriormente corroborado pela evidência de que na SII o aumento da permeabilidade intestinal se correlaciona com a intensidade da dor abdominal. Por outro lado, ao se corrigir a disfunção da barreira intestinal ocorre diminuição da dor abdominal e da hipersensibilidade visceral. 

Ainda que o defeito da barreira epitelial possa ser suficiente para determinar a disfunção e a lesão tecidual local, efeitos em órgãos distantes requerem a ocorrência da ruptura da barreira endotelial vascular, acarretando a disseminação sistêmica de antígenos luminais nocivos, metabolitos, citocinas, quimosinas e metabolitos da microbiota. Capilares sanguíneos encontram-se estrategicamente localizados imediatamente abaixo da barreira epitelial de modo a receber de forma eficiente os nutrientes e distribui-los em todo o organismo. A manutenção da integridade do epitélio bem como a Barreira Vascular Intestinal (BVI) é essencial para impedir a disseminação sistêmica de antígenos nocivos e partículas bacterianas.  A Caderina Vascular Endotelial (CVE) tem um papel principal na manutenção da integridade da barreira endotelial. Um dos mecanismos envolvidos na disfunção da barreira endotelial e epitelial está relacionada com a ativação do Receptor da Atividade da Protease 2 (RAP2). A RAP2 está largamente expressa na mucosa colônica e nas células epiteliais. RAP2 é ativada por proteases incluindo triptase e tripsina3 que estão significantemente aumentadas na mucosa colônica dos pacientes portadores da SII. Esse fenômeno ocorre por meio da clivagem do domínio extracelular N-terminal, e a subsequente interação da liberação deste novo domínio que age como uma ligação atada a segunda alça extracelular do receptor, desta forma dando início a sinalização de transdução. 

A presente investigação tem por objetivo caracterizar as barreiras epitelial intestinal e endotelial vascular na SII usando análises in vitro e in vivo; investigar os subjacentes mecanismos moleculares causadores das disfunções das barreiras nos pacientes portadores de SII, em comparação com controles assintomáticos; e avaliar a relação entre os dados experimentais e os sintomas clínicos. 

MATERIAL e MÉTODOS 

O desenho do estudo encontra-se materializado na Figura 1.

Figura 1- Desenho do estudo. Todos os indivíduos participantes do estudo foram submetidos à fenotipagem por meio da utilização de questionários devidamente validados. Análises experimentais foram realizadas na urina (teste de permeabilidade in vivo), biópsias (experimentos translacionais e análises morfológicas), testes sorológicos para avaliar translocação bacteriana, ativação imune, e função hepática. EM – microscopia eletrônica; IF – imunofluorescência; IHC imunohistoquímica; WB – Western blot.   

Foram envolvidos no estudo 78 indivíduos assintomáticos (controles) e 223 pacientes portadores de SII. A Avaliação da permeabilidade gastrointestinal foi realizada por meio do teste multissacarídeo. A barreira vascular foi avaliada por meio da imuno histoquímica e da microscopia eletrônica. A permeabilidade vascular foi avaliada por meio da expressão do plasmalema da mucosa e da caderina endotelial vascular. A alteração da permeabilidade endotelial foi realizada por meio da incubação de biópsias da mucosa intestinal em células Caco2.

RESULTADOS

A barreira epitelial intestinal mostrou-se alterada nos pacientes portadores de SII ao longo de todo trato intestinal. Mediadores solúveis da SII revelaram aumento da permeabilidade da Caco2 e por meio da disfunção da expressão das junções firmes. A densidade dos vasos sanguíneos e a permeabilidade vascular mostraram-se aumentadas na mucosa colônica dos portadores de SII. Os mediadores da mucosa dos pacientes portadores de SII apresentaram aumento da permeabilidade das células endoteliais de monocamadas de veias umbilicais humanas por meio da ativação do receptor-2 e da deacetilase 11, resultando em uma regulação anormalmente alterada da caderina do endotélio vascular. Aa alterações da permeabilidade se correlacionam com os sintomas intestinais e comportamentais, e, na baixa qualidade de vida dos pacientes portadores da SII.   

CONCLUSÕES 

Neste estudo, ficou demonstrado o comprometimento da integridade da barreira epitelial ao longo de todo o trato gastrointestinal, particularmente nos pacientes portadores de SII-D. A barreira vascular intestinal está afetada pela via da ativação do receptor 2 da protease ativada, que potencialmente acarreta a disseminação sistêmica de substâncias luminais potencialmente prejudiciais, incluindo elementos bacterianos, como demonstrado pelo aumento sanguíneo do ribossomo bacteriano RNA e o aumento dos níveis de um marcador de ativação do sistema imune inato. Um aumento moderado do nível das transaminases também pode sugerir um aumento do fluxo portal do fígado por meio de substâncias intestinais que escaparam do filtro da barreira intestinal. Um dos achados mais interessantes foi a correlação dos marcadores de disfunção epitelial e vascular com a intensidade da dor abdominal, flatulência, ansiedade e depressão, e o rebaixamento da qualidade de vida. Levando-se em consideração o conjunto dos achados, esses dados sugerem que o defeito das barreiras epitelial e vascular podem participar na disfunção do eixo cérebro-trato digestivo na SII. 

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS 

  1. MR Barbaro e cols. – Gastroenterology 2024;167:1152-1166
  2. Sperber AD e cols. – Gastroenterology 2021;160:99-114
  3. Sharygin D e cols. – Immunology 2023;169:260-270
  4. Le Berre C e cols. – Lancet 2023;402:571-584