quarta-feira, 12 de maio de 2021

A Vertiginosa Expansão da UNIFESP: 2003-08 (Parte 1)

Reitor: Ulysses Fagundes Neto

Preâmbulo

 A história que a seguir será contada, deveria na verdade, já de há muito tempo ter sido relatada, a partir da data referida no título do presente trabalho. Entretanto, devido a inúmeros fatores que interferiram na minha vida e que fugiram ao meu controle, este relato foi sendo postergado no tempo, e, assim, permaneceu praticamente relegado a um plano secundário. Por outro lado, apesar desta aparente negligência pelos fatos por mim vivenciados nestes últimos anos, desde 2008, sempre foi mantida na minha memória uma centelha que me acalentava, me instigando para reviver momentos tão marcantes na minha vida pessoal e como gestor de uma universidade pública federal da grandeza da UNIFESP. O despertar para esta realidade se deu de forma repentina e mostrou-se incontida, quando por mera casualidade do destino, tomei conhecimento, em 4 de fevereiro de 2021, da dissertação da servidora federal da UNIFESP, sra. Maria Bernadete de Noronha Dantas Rossetto, intitulada “A EXPANSÃO DA GRADUAÇÃO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO NO PERÍODO DE 2003 A 2012”, apresentada para a obtenção do título de Mestre Profissional em Ensino, em Ciências da Saúde, do Programa de Mestrado, em Ensino em Ciências da Saúde, do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS), cujos Orientadores foram Prof. Dr. Nildo Alves Batista e Paulete Goldenberg. Este trabalho de dissertação foi apresentado em 2017 e recebeu aprovação unânime da Banca Examinadora.

Durante a leitura do trabalho de 156 páginas, que o fiz de uma sentada, sem interrupção, vi como um filme sendo projetado diante dos meus olhos, em uma tela por mim imaginada, os quais se tornavam muitas vezes úmidos pelas lágrimas incontroláveis que insistiam em rolar pela minha face, pela emoção incontida, à medida que avançava nas páginas da referida tese, o desenrolar daqueles fantásticos e inesquecíveis acontecimentos. Sentia como se estivessem acontecendo naqueles meros momentos, as vibrações de grande euforia, na ampla maioria do tempo, e, em outros momentos, felizmente bem menos frequentes, de frustrações, as quais também fizeram parte desta verdadeira epopeia, cujos sentimentos a seguir irão se constituir no conteúdo desta narrativa.

A minha relação visceral com a Escola Paulista de Medicina

“De armas vencidas e almas vencedoras, mal saía São Paulo de um desastre heroico que o deveria abater se fosse fraco, mas que só o exaltou porque é forte, já sua terra – terra ainda morna dos corpos que se esfriaram sobre ela, beijando-a, lançava-se há pouco mais de três anos uma semente milagrosa: a da Escola Paulista de Medicina”  Discurso do poeta  Guilherme de Almeida no lançamento da estaca fundamental do HSP em 30 de setembro de 1936

Transcrição da entrevista, editada, revista e ampliada, com o reitor Ulysses Fagundes Neto – Unifesp (dezembro de 2007)

Meu nome é Ulysses Fagundes Neto, nasci em São Paulo, em 16 de setembro de 1944. Naquela época a segunda guerra mundial ainda estava vigente, porém, já em seus últimos estertores. Meu pai, Ulysses Fagundes Filho, era advogado, mas como na sua juventude havia servido o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), devido à sua formação pelo CPOR, ele foi convocado para servir o exército durante a segunda guerra mundial, e permaneceu baseado em Pirassununga. Em decorrência da convocação do meu pai, logo após meu nascimento, fui com minha mãe Walkyria Lobo Fagundes para Pirassununga, onde lá morei até o fim da guerra, em meados de 1945 (Figuras 1-2).


Figuras 1–2: Meu pai e minha mãe comigo no colo em Pirassununga.

 

Nasci na Vila Mariana, em frente ao Instituto Biológico, na casa de meu avô, onde moro hoje (2007). Já morei lá cinco vezes, essa é a passagem mais longa, estou lá desde 93. Essa casa é muito, muito antiga, é de 1927, foi construída pelos irmãos Rossi, dois arquitetos italianos, que trabalhavam naquela época no escritório do engenheiro Ramos de Azevedo (Figuras 3-4-5-6-7).


Figura 3- Foto da casa em 1935, meus avós estão na varanda.

 



Figuras 4-5: Fotos da casa em 1992 antes de eu fazer a reforma que durou um ano.



Figuras 6-7: Fotos da casa em 1993 depois da reforma.

 

Fui praticamente criado por esse meu avô paterno, ele é do lado dos Fagundes (Figura 8).  


Figura 8: Meu avô Ulysses e eu com menos de 1 ano de idade no jardim da casa. Do lado direito vê-se a jabuticabeira florida.

 

Ele tinha uma grande afeição pela família, teve dois filhos, meu pai e minha tia Yvonne. A minha tia é a mais velha, meu pai teve dois filhos, eu e minha irmã Tânia, minha tia teve três filhos, todos com idades próximas, estou situado no meio, sou o terceiro e carrego o nome do meu avô, Ulysses Fagundes, o que sempre foi uma grande responsabilidade. Meu avô era casado com minha avó Juventina de Sousa Fagundes (Figuras 9-10-11-12-13).


Figura 9: Meus avós Ulysses e Juventina quando jovens recém-casados em 1916.

 


Figura 10: Meus avós 19 anos mais tarde.

 


Figura 11: Meus avós com minha tia Yvonne e meu pai em Santos em 1940.

 


Figura 12: Meus avós com os netos Cláudio e Tânia sentados no banco e Ruy, eu e Américo sentados na grama, em Santos.


Figura 13: Meus avós com os netos alguns anos mais tarde, em 1953.

 

Nós cinco fomos criados na Vila Mariana, era uma relação muito próxima, pois morávamos a pequena distância uns dos outros. Meu avô era seguramente uma pessoa 50 anos à frente do seu tempo, formou–se médico no Rio de Janeiro, em 1913, naquela época ainda não havia nenhuma Faculdade de Medicina no estado de São Paulo, a da USP, que foi a primeira, foi fundada em 1913. Ele nasceu em 1887, eu até brincava com ele dizendo que ele era tão antigo que havia nascido antes da abolição da escravatura.

 

Desde que nasci, ficou praticamente decidido que quando crescesse seria médico, da mesma forma que o filho do meio da minha tia, foi uma decisão familiar. Como meu avô tinha uma grande influência, carisma, era amado por todos, ninguém se contrapôs a essa ideia. Ele era uma figura muito popular, morávamos em frente ao Instituto Biológico, como ele já havia se aposentado, atendia todo o pessoal do Biológico. Minha mãe trabalhava no Biológico, tínhamos uma convivência muito grande com os funcionários, era só atravessar a rua. Naquele tempo o Biológico não era cercado por grades, minha infância passei praticamente dentro do Biológico, conhecíamos todo mundo lá.  

Na minha infância também tentaram me fazer pianista, durante algum tempo estudei piano, mas não saía da escala, não tinha talento, mas, para agradar à família ia religiosamente à aula, a professora morava perto de casa, ia lá, tocava a escala, realmente não tinha talento para isso, até que um dia desisti desta arte. Também estudei inglês, esse com mais dedicação, meu pai já achava importante falar outro idioma, isso lá nos idos anos 50, estudei inglês e me tornei fluente no idioma, o que muito me ajudou no futuro, pessoal e profissionalmente.

 

No colégio já era atraído por matérias ligadas à Medicina, afinal, estava decidido que seria esse o meu caminho, eu gostava bastante dessas matérias. Creio que também foi uma transmissão de algum gene que me trouxe para essa atividade, tanto que fui muito bom aluno em Física, Biologia, Botânica, Química Orgânica e Inorgânica, coisas que domino até hoje em minha atividade. Eu não era bom aluno em Matemática, mas era em Português.

 

A minha educação, teve um misto de tradicional e despojada, porque meu avô paterno era muito popular, desprovido de qualquer vaidade e preconceitos, inclusive tenho comigo a tese de formatura dele, de 1917, que ele dedicou à sociedade humanitária e ao humanismo, nós fomos criados com esse espírito, o humanismo.

 

Estudei no Liceu Pasteur do jardim de infância até o primário, depois fui para o Colégio Bandeirantes, lá fiz o ginasial e o científico.

 

Meus pais eram sócios do Esporte Clube Banespa, foi lá que eles se conheceram, depois de casados continuaram a frequentar o clube, e, portanto, desde pequeno eu também ia para o clube (Figuras 14-15).

 


Figura 14: Meus pais quando jovens no Esporte Clube Banespa onde se conheceram.


Figura 15: Meus pais e eu no colo da minha mãe, já começando a frequentar o clube, que mais tarde e durante muitos anos, viria a ser meu local favorito de lazer e da prática esportiva.

 

Na adolescência boa parte minha vida eu passava no Banespa, chegava do colégio, almoçava e ia para o Banespa. Eu pegava o bonde em frente ao Biológico, ali começava a linha férrea que ia até Santo Amaro, e descia na parada Petrópolis, ia para o Banespa fazer algum esporte, de preferência futebol e vôlei, também socializar com meus amigos, voltava de noite para jantar em casa.

 

Sempre joguei vôlei, futsal e futebol, lá no Banespa tínhamos o time juvenil de futebol, o time juvenil de futsal, disputava o campeonato paulista, fomos campeões paulistas, e o time juvenil de vôlei, que também disputava o campeonato paulista da categoria (Figura 16).

 


Figura 16: Nosso time de futsal campeão paulista juvenil em 1961.

 

Fui duas vezes convocado para a seleção paulista juvenil de vôlei para disputar os campeonatos brasileiros (1961-62) da modalidade (Figura 17).

 

 

 Figura 17: A seleção paulista juvenil que disputou o campeonato brasileiro em 1962, em Ribeirão Preto. Estou em pé com a bola na mão. Ficamos em terceiro lugar.

 

O meu primeiro time oficial de futebol foi o juvenil do Banespa, onde comecei, quando tinha 14 anos (Figura 18).

 


Figura 18: Meu primeiro time oficial, o juvenil do Banespa, jogávamos aos domingos à tarde. Sou o número 10.

 

Meu avô materno Valdomiro da Cunha Lobo, o Lobo, foi um grande jogador de futebol, foi ele quem me ensinou a jogar (Figura 19).

 

 

Figura 19: Meu avô Lobo e eu ainda lactente. Foi ele que me iniciou na prática do futebol em sua chácara no Guarapiranga.

 

Ele era casado com minha avó Zizinha Machado da Cunha Lobo que era de Santo Amaro, a família da minha avó era tradicional em Santo Amaro, fazia parte dos Botinas Amarelas, na época que Santo Amaro era um município independente da cidade de São Paulo. Meu avô Lobo tinha uma chácara no caminho de Guarapiranga, e, em frente tinha um campo de futebol, foi lá que aprendi a jogar bola com ele desde pequeno. Quando tinha 16 anos, fui promovido ao time principal do Banespa, foi um grande acontecimento para mim, jogávamos aos domingos de manhã, o campo, que era oficial de dimensões máximas, ficava lotado de torcedores da região do Brooklin. Como me destacasse muito desde a estreia, fazia muitos gols, fui convidado para jogar no São Paulo Futebol Clube, o que muito me honrou, mas acabei não indo, sem saber ao certo o porquê.  Somente muitos anos depois, já adulto, descobri que meu pai havia feito um complô, não permitiu que eu assinasse o contrato, não queria que eu fosse ser jogador de futebol, queria que a minha atividade futebolística fosse apenas em nível amador. Mas como eu era insistente, lá em Santo Amaro joguei num time de futebol profissional, chamava-se Minister, que disputou o campeonato paulista da terceira divisão, posteriormente da segunda divisão, ganhamos as duas, mas quando chegamos à primeira divisão, não pude mais jogar por causa da faculdade. Já como estudante de medicina joguei por uma fábrica em Mauá, ganhava uns trocados para o fim–de–semana, e, também joguei na várzea, em vários lugares.

 

Posteriormente, depois dos 18 anos minha grande atividade como jogador de futebol foi no Clube Atlético Indiano (CAI), disputando os campeonatos internos, que eram altamente competitivos porque muitos ex-profissionais também participavam daqueles campeonatos. Joguei também pela seleção do CAI, disputamos os campeonatos interclubes de São Paulo, onde nos sagramos bicampeões (Figura 20).

 


Figura 20: Seleção do Clube Atlético Indiano que disputou os campeonatos interclubes da cidade de São Paulo. Estou agachado, sou o antepenúltimo à esquerda.

 

Cheguei mesmo a jogar contra a Seleção Olímpica Brasileira que disputou os Jogos Panamericanos de 1963, empatamos em 2x2, eu fiz os gols do CAI. Por todos esses fatos anteriormente narrados, eu considero que o futebol foi uma grande paixão na minha vida.

 

Na hora de escolher a faculdade que iria cursar, não era tão difícil essa escolha, naquela época não havia muitas opções, existiam poucas Faculdades de Medicina no estado de São Paulo. O primeiro vestibular que prestei foi em 1963-64, logo após haver terminado o científico, os exames eram independentes, separados, fiz alguns, mas era uma maratona, prestei exames em Campinas, Sorocaba, USP, Santa Casa e Paulista, começavam em dezembro e iam até março, uma verdadeira maratona. Como era recém-saído do científico, não consegui nenhuma vaga. Em 1964, frequentei o Curso Vestibular Nove de Julho, localizado no bairro da Liberdade, em frente ao largo. Desta vez fui muito bem, logo no primeiro exame vestibular daquele ano, o da Santa Casa, que era isolado, entrei em décimo–terceiro lugar, depois foi a primeira vez do exame unificado, o CECEM, que prestei em 1964-65. Minha primeira opção foi a USP, a segunda foi a Paulista. Como minha colocação foi entre 100 e 200, 112, coisa assim, entrei na EPM. Foi até certo ponto frustrante não ter conseguido entrar na USP, pois era a maior referência no estado, posto que no primeiro exame havia entrado na Santa Casa, em décimo–terceiro lugar.

 

Apesar disso, acho que acabei entrando na EPM porque, mesmo sem referências especiais, as minhas relações com ela são antigas. Como morava em frente ao Biológico, o trote dos calouros era feito nas piscinas de lá, uma vez por ano eu via um bando de gente pintada, seminua, acompanhada por outro grupo que vestia avental branco, os veteranos, que traziam os calouros para mergulhar nas piscinas do Biológico. Depois de mergulhar nas piscinas alguns calouros vinham se lavar na minha casa, pois havia uma torneira no portão de entrada, eu ficava olhando do terraço, mas não entendia bem o que representava todo aquele movimento, que coisa mais estranha era aquela. Além disso, muitos veteranos iam até o Liceu Pasteur, levavam os calouros até lá atados a uma coleira, como se pode perceber esta é uma relação antiga, eu tinha aproximadamente sete anos de idade. Outro acontecimento que me conectou com a EPM, na verdade com o Hospital São Paulo, foi decorrente de um verdadeiro um acidente doméstico, quando eu devia ter uns 10 anos de idade, que envolveu minha irmã Tânia. Em uma determinada noite, nossos pais haviam saído para jantar fora de casa, nós estávamos sós e minha irmã propôs uma brincadeira de mão, para ver quem conseguiria torcer o dedo do outro primeiro. Infelizmente, na primeira tentativa eu quebrei o dedo polegar dela, e, então, tivemos que ir com urgência para o Hospital São Paulo. Fiquei com um grande sentimento de culpa e fui acompanhá-la até o hospital. Em lá chegando ela foi atendida por um jovem ortopedista chamado Dr. Valdemar Carvalho Pinto, que posteriormente se tornou um renomado profissional e depois, por muito tempo, foi Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.

 

Outra relação com a EPM é que essa região onde ela está localizada, uma grande área fazia parte das terras da família, dos Fagundes. Inclusive reza a história que essa igreja que tem aqui perto, na Domingos de Morais, o terreno foi doado pelo meu bisavô, pois fazia parte das terras dele. Os Fagundes estavam aqui havia muito tempo. Outro dia, indo ao museu Afro–Brasil, casualmente vi um mapa da cidade de São Paulo do século XIX, e aí pude identificar nitidamente os sítios dos Fagundes, que iam desde a Liberdade até o Jabaquara, um deles era do meu bisavô Alfredo (Figuras 21-22-23).

  

Figuras 21-22-23: Mapas da cidade de São Paulo em 1888 onde se pode identificar os sítios dos Fagundes (Arthur, Alfredo e Felício) na região da Vila Mariana. Alfredo foi meu bisavô.

 

Quando entrei na Paulista, o trote foi suave, porque sabiam que eu era esportista, era uma Escola pequena, só 600 alunos, nós disputávamos competições importantes, então, quando entrava um esportista ele era muito celebrado. Além disso, eu praticava três esportes, futebol, vôlei e futsal, o que representava um valor agregado muito grande para as disputas dos eventos esportivos. Estas habilidades tinham um grande valor na vida da Escola.

 

Defendendo a nossa Atlética Pereira Barreto disputei as Pauli-Polis, as Pauli-Meds, as Intermeds que envolviam todas as faculdades de Medicina do estado de São Paulo, e os campeonatos universitários paulistas da Federação Universitária Paulista de Esportes (FUPE). No meu último ano do curso, em 1970, nos sagramos campeões, e, para minha imensa alegria fui eleito o atleta do ano da FUPE na modalidade futebol (Figura 24).

 


Figura 24: Time de futebol da EPM campeão da FUPE de 1970. Estou agachado penúltimo à esquerda.

 

Na universidade também fui campeão brasileiro universitário de vôlei disputado em Niterói, em 1965, pela seleção da FUPE. Neste mesmo ano no campeonato da FUPE ficamos em terceiro lugar e eu fui eleito o atleta do ano na modalidade. Em 1969 nos sagramos vice-campeões no campeonato da FUPE.

 

Na primeira Pauli–Poli que disputei, em 1965, fazia 15 anos que a Escola não ganhava, e, nesse primeiro ano vencemos a competição geral, inclusive vencemos em alguns esportes que não ganhávamos havia muito tempo. No futebol ganhamos de cinco a dois, marquei dois gols, no vôlei, havia 20 anos sem ganhar, nós ganhamos, eu era o capitão do time, e, por fim, também vencemos no futsal. Naquela época os esportes de salão eram disputados no ginásio do Pacaembu, a partida de futsal foi a decisão geral da competição, quem ganhasse aquele jogo se tornaria o campeão da Pauli–Poli daquele ano. O ginásio estava completamente lotado, porque antes do jogo final, durante a semana já se sabia que neste jogo seria disputada a taça. Muitos médicos, que haviam se formado havia muito tempo, nunca haviam vencido a Pauli–Poli, vieram de vários locais, inclusive do interior, estavam lá, ginásio lotado, cheio de expectativa, foi muito emocionante. O jogo começou, duríssimo, o time deles era muito bom, começamos perdendo de um a zero, viramos para dois a um e ganhamos a Pauli-Poli de 1965, foi uma festa interminável, varou a madrugada, nunca poderia imaginar a transcendência daquela conquista (Figuras 25-26).

 


Figura 25: Time de futsal que venceu a Pauli-Poli de 1965. Estou em pé terceiro à esquerda.

 


Figura 26: Equipe entrando na quadra do ginásio do Pacaembu.

 

Para que se tenha uma pequena ideia da importância desta disputa para a nossa Escola, faltei a algumas aulas práticas de Biofísica para treinar, os treinos aconteciam na hora do almoço, se estendiam, atrasavam, mas no final do semestre tinha que prestar o exame prático, que era dificílimo. Eram 20 pontos, eu tinha frequentado 19 aulas práticas, em uma delas eu não havia participado, portanto, não dominava a parte prática daquele tema. Tínhamos que sortear um ponto para executar a parte prática, não deu outra, sorteei o ponto que eu não havia assistido a aula. Era uma experimentação bastante sofisticada, o transporte de íons pela pele do sapo, transporte iônico, osmose, era em aparelhos novos de última geração, recém comprados pela Escola. Fiquei olhando a aparelhagem, sabia os cálculos, mas não sabia montar aquilo, fiquei mexendo, tentando dar um jeito, mas não obtinha sucesso, até que o professor Paiva (Professor Titular de Biofísica), que estava me examinando mandou eu parar de mexer na aparelhagem, porque poderia destruir o modelo. Ele, então, assumiu o controle e montou o sistema para mim, e, após deixar todo o sistema montado me disse muito seriamente, “isto vale pelos seus dois gols na Pauli–Poli, agora o jogo está zero a zero, daqui em diante é com você”, então, mesmo suando frio, consegui fazer o experimento. Outra história interessante decorrente do fato de termos vencido o jogo de futebol da Pauli–Poli foi o que ocorreu comigo no exame de Anatomia. No primeiro ano, nós tínhamos na Anatomia o professor Prates, que era o primeiro assistente do professor Locchi, ele se tornou grande amigo da nossa turma e foi assistir ao jogo de futebol da Pauli-Poli no estádio do Pacaembu. Quando o jogo terminou, professor Prates foi ao vestiário nos cumprimentar, me disse que eu já estava com pelo menos nota sete no exame final de Anatomia, pelos gols que eu havia marcado. Era uma brincadeira, mas o problema é que levei a promessa a sério, na hora da prova fui cobrar a nota sete, mas o professor Prates não era meu examinador, a prova era com outro professor, ele queria me dar pau, me acusou de tentar suborná-lo. Para minha sorte o professor Prates estava por perto, assistiu a cena e interveio, explicou que era uma brincadeira que ele tinha feito comigo, que eu havia levado a sério, havia sido um mal-entendido. Finalmente realizei o exame e fui aprovado sem nenhuma interferência externa (Figura 27).


Figura 27: Professor Prates, nosso eterno grande amigo desde os anos 60, e eu quando fui eleito vice-reitor em 1999.

 

Ainda no campo esportivo, vale lembrar da Pauli-Med, pela sua importância em si e pela enorme rivalidade entre as duas faculdades. A primeira edição da competição foi realizada em 1965, ano do meu ingresso na EPM. Logo na primeira disputa, o futebol, sofri um choque ao ouvir a musiquinha que o pessoal da Pinheiros cantava, repetida e incessantemente, para nos insultar: “Fede, fede, fede refugo da Med”. Contrariamente ao que eles desejavam, isto não me causava qualquer abatimento moral, mas sim uma grande indignação, me enchia de brios e ganas de vencer todas as disputas. Nesta primeira edição empatamos no futebol (2x2), ganhamos no futsal e no vôlei, mas perdemos na contagem geral (Figura 28).


Figura 28: Equipe de futebol da EPM na minha primeira Pauli-Med (empate 2x2) em 1965, no estádio do Pacaembu. Ao fundo ainda pode ser vista a tradicional concha acústica que posteriormente foi demolida para a construção do tobogã. Estou agachado bem ao centro do grupo.

 

Por outro lado, vencemos todas as outras 5 edições, em todas ganhamos no futebol, futsal e vôlei. Em 1967, meu avô Lobo foi assistir o jogo de futebol no estádio do Pacaembu. Ele ficou completamente envolvido com a partida, acompanhou o jogo inteiro em pé, corria de um lado para o outro acompanhando o movimento da bola. Era a primeira vez que ele me via jogar desde quando ainda menino me havia orientado a respeito dos princípios fundamentais do futebol. Para minha felicidade e dele também, marquei 2 gols, vencemos de 4x1, assim, eu pude retribuir a quem me ensinou o jogo da bola a alegria de ver seu discípulo brilhar. Infelizmente, ele faleceu de infarto no ano seguinte.

 

Em 1969, quando já cursava o quinto ano de Medicina, num fim de semana jogando futebol pela seleção do CAI contra a seleção Brasileira que iria disputar as Macabíadas, em Israel, sofri, num choque com o goleiro adversário, uma dupla luxação esterno-clavicular, o que me causava dor intensa mal podia respirar, praticamente me impossibilitava movimentar o tronco e os braços. Entretanto, vivíamos a semana decisiva da Pauli-Med, tínhamos um jogo de futebol cujo resultado seria vital para nossa vitória na competição geral. Eu era o capitão do time, exercia uma liderança importante no grupo, precisava entrar em campo de qualquer forma, além do mais havia um outro fator de complicação, pois o jogo seria realizado no campo do inimigo, lá na Atlética deles. Corri desesperado ao Jonas, nosso enfermeiro da ortopedia, praticamente suplicando para que ele resolvesse meu problema. Jonas com seu olhar paciente, quase de deboche, me disse: “vou lhe fazer um colete de gesso do pescoço até a cintura e se você conseguir se equilibrar vai poder jogar”. Dito e feito, o colete foi providenciado e em mim colocado, fiquei completamente enrijecido, mas pelo menos me vi livre da dor que tanto me incomodava. Apresentei-me para jogar, ninguém podia acreditar que eu teria condições para tal, mas como era veterano e capitão do time o poder da influência falou mais alto, desta forma entrei em campo. Digo entrei em campo, pois isto foi literalmente o que ocorreu, não conseguia me movimentar e tampouco me equilibrar com aquela verdadeira armadura medieval, mas assim permaneci por todo o tempo, até que no fim do jogo, que se mantinha num irritante zero a zero, houve uma falta a nosso favor próximo da área do adversário. Com a prepotência de todo bom veterano decidi que bateria a falta, não havia naquele momento a mais mínima possibilidade de me impedirem que isto ocorresse, porque naquela época havia hierarquia e esta era rigidamente respeitada. Bem, assim se sucedeu, bati a falta, fiz o gol, ganhamos o jogo e mais uma Pauli-Med, a quarta consecutiva, tudo por obra e graça da armadura que o Jonas inventou de me colocar.

 

A Intermed teve sua primeira edição realizada em 1967, em Botucatu, que nós vencemos, perdemos em Campinas em 1968, mas voltamos a vencer em 1969, em Botucatu, e em Santos, no meu último ano como acadêmico, em 1970 (Figuras 29-30-31-32-33).

 


Figura 29: Anúncio da III Intermed em Botucatu.


Figura 30: Equipe de futebol vencedora a da III Intermed. Estou em pé segurando o troféu.

 


Figura 31: Os três jogadores pertencentes à Turma 70. Da esquerda para a direita Sérgio Birigui, eu e Fernando Várzea.

 


Figura 32: Equipe de vôlei vencedora da III Intermed. Estou com o troféu nas mãos.

 


Figura 33: A terceira edição da Intermed em 1969 na qual nos tornamos bicampeões. Vencemos entre outras modalidades no futebol e no vôlei.

 

Esta última edição foi uma verdadeira epopeia, porque a competição estava muito parelha com a Pinheiros até os últimos momentos. Restava apenas disputar 2 modalidades e ambas eram entre nós e eles, futsal e vôlei. Tínhamos que vencer ambas as partidas para nos sagrarmos campeões gerais da Intermed daquele ano. No primeiro jogo, futsal vencemos por 2x1, o último jogo era o vôlei, éramos franco favoritos, vencemos por 3x0, nos sagrando tricampeões da Intermed, na minha despedida. Quando o jogo de vôlei terminou, nossa torcida invadiu a quadra para celebrar a grande conquista, fizeram uma festa incrível, emocionante! Em um determinado momento, um grupo de colegas me carregou nos ombros para dar a volta de triunfo e se encaminharam em direção à torcida da Pinheiros, que havia lotado a arquibancada oposta à nossa. Naquele momento eu imaginei que pela nossa entranhável rivalidade, fosse ocorrer alguma reação agressiva contra mim e nosso grupo. Entretanto, para surpresa geral, quando nos aproximávamos da arquibancada da torcida da Pinheiros, houve uma reação de reverência e reconhecimento, puseram-se em pé e me aplaudiram longamente, o que muito me emocionou. Anos mais tarde, já médico em plena atividade conversando com amigos graduados pela Pinheiros, soube que me haviam alcunhado um epíteto de “A locomotiva da Paulista”, em alusão às minhas performances durante os 6 anos de renhidas disputas (Figuras 34-35-36).

   


Figura 34: Time de futebol que disputou a Intermed de 1970 no estádio da Vila Belmiro, templo do futebol onde brilhava a equipe do Santos naquela época. Estou agachado no centro no grupo.

 


Figura 35: Um lance da final do vôlei da Intermed de 1970 entre nós e a USP. Estou na posição de levantador da bola.

 


Figura 36: A grande festa da vitória da Intermed de 1970, minha despedida da EPM como esportista. Estou no centro do grupo erguendo o troféu da vitória.

 

Logo que entrei na EPM, tinha a ideia de fazer clínica geral, cirurgia nunca fez parte dos meus planos, nunca tive talento nem paciência para usar um bisturi, nem ficar dissecando. Para mim, era uma tortura ficar na Anatomia dissecando, queria ter relações com as pessoas, então, tinha certeza de que faria alguma especialidade clínica. Também sempre tive uma preocupação social, porque joguei futebol em vários lugares da periferia da nossa cidade, passei por muitas favelas, convivi com muita pobreza, me comovia ver as crianças abandonadas, a miséria, a desigualdade social, esta situação sempre me incomodou muito. Entendia que a melhor forma de ajudar na questão social era trabalhar com as crianças, assim minha tendência natural foi me dedicar à Pediatria. Mas queria trabalhar na Pediatria com algo que envolvesse o drama social, por isso me aproximei da Medicina Preventiva. Entretanto, não encontrei nesta Disciplina um estímulo que fosse suficientemente importante para me envolver com ela, então, me voltei para a Pediatria. Na Pediatria não posso dizer que tive um modelo, mas uma pessoa que me ensinou e ajudou muito foi o Dr. Jamal Uehba, que também foi professor da EPM. Ele era um grande pediatra, jovem, progressista, me estimulou muito na Pediatria, nos tornamos muito amigos, depois fomos sócios, trabalhamos juntos durante muitos anos.

Quando fiz Pediatria, me dediquei ao binômio diarreia-desnutrição, foi onde me sentia realmente útil à sociedade como cidadão e médico. Foi neste campo de atuação que decidi praticar minha especialidade, a Gastroenterologia Pediátrica, mas muito voltada para as questões sociais, porque diarreia era a primeira causa de mortalidade infantil naquela época. No terceiro ano de residência, em 1973, fui para a Argentina, porque lá estava o pioneiro da Gastroenterologia Pediátrica, um argentino, Dr. Horácio Toccalino (Figura 37). Tudo isso porque naquela época ainda não existia uma superespecialização na Pediatria, o pediatra era um clínico geral, isso me incomodava, por não ter a segurança de ser um médico de abrangência global, de saber todas as coisas, porque lidávamos com pacientes extremamente graves, havia situações em que me sentia completamente impotente, senti que assim não seria útil. Por personalidade própria nunca me satisfiz em conhecer apenas a superfície, sempre dei preferência por conhecer a profundidade, queria não só saber a consequência, mas a causa, o âmago da questão. Por isso fui fazer meu terceiro ano de residência na Argentina, pois essa viria a ser a minha área de atuação, a Gastroenterologia Pediátrica.

 


Figura 37– Horácio Toccalino, meu grande mestre, no centro da foto, ao seu lado direito Jorge Ortiz e Ricardo Licastro médicos do Policlínico Alejandro Posadas. Toccalino, infelizmente, neste ano foi diagnosticado com um câncer intratável e veio a falecer em 1978, aos 42 anos de idade.

 

Consegui ir para a Argentina da seguinte maneira: quando era interno, no sexto ano do curso, em 1970, celebrou–se o cinquentenário da Associação Paulista de Medicina com a organização de um grande curso de atualização. Para o curso na área da Pediatria foram convidados três professores internacionais. Dentre os professores, dois eram europeus, um alemão, Svoboda, ortopedista e um suíço, Fred Bamatter, um senhor bem velhinho, já estava na fase filosófica da medicina, estudando as assimetrias do corpo, mostrando fotos, e o terceiro um argentino Horácio Toccalino. Assisti esse curso e me impressionei muito com o que Toccalino apresentou. Depois de fazer o primeiro e o segundo anos da residência, Jamal me recomendou que eu deveria fazer uma especialização, que havia a possibilidade de fazer o terceiro ano fora do país. Como ele tivesse uma informação do Nóbrega (Fernando José, Professor da UNESP), que estava em Botucatu, ele havia mandado uma residente para treinamento com Toccalino, em Buenos Aires, aventamos essa possibilidade. Ela se concretizou, de fato, durante a realização do Congresso Pan–Americano de Pediatria, em Córdoba, em 1972. Jamal e eu havíamos conseguido duas passagens aéreas para ir a Córdoba, aí se apresentaria a oportunidade de falar diretamente com Toccalino,  assim foi feito. Em lá chegando tratei de encontrar Toccalino o mais rapidamente possível, o que de fato aconteceu. Apresentei–me pessoalmente, expliquei a minha aspiração, ele foi muito atencioso e falou que eu poderia ir tranquilamente fazer o treinamento com ele. Era a primeira vez que alguém iria sair, durante a plena vigência da residência, para fazer uma especialização fora do país, era algo absolutamente inédito. Tive até que ir meio escondido, foi um compromisso que assumi com o chefe do Departamento de Pediatria, professor Azarias (Andrade de Carvalho), que me disse que os membros da Comissão de Residência da EPM nem iriam saber que eu havia ido.

Me casei em 1971, praticamente assim que me graduei, tive três filhos, o primeiro em 72, a segunda em 74 e a terceira em 75, portanto, um menino e duas meninas. O meu filho mais velho foi para a Argentina conosco, com um ano de idade. Assim que chegamos a Buenos Aires, minha mulher, Eurídice, e eu fomos procurar um lugar para morar. Fiquei surpreso, porque não se alugavam casas na Argentina, as pessoas tinham casa própria, era muito difícil encontrar um imóvel para alugar, passamos dez dias tentando arranjar um lugar para morar, já estávamos desesperados, mas enfim conseguimos um apartamento, no último andar de um prédio baixo sem elevador. Era em um bairro judeu, chamado La Paternal. Logo após termos nos instalado, minha mulher voltou para São Paulo para buscar nosso filho e se mudar definitivamente. No dia que chegaram fui buscá-los no aeroporto de Ezeiza, quando avistei o avião perdendo altura para aterrizar, fiquei angustiado, afinal, lá estavam minha mulher, meu filho e minha mãe, toda a minha vida, toda a minha riqueza estavam naquele avião, ele não podia cair, eu não aguentaria. Foram minutos angustiantes, fiquei realmente sofrendo vendo a chegada deles. Até que finalmente eles chegaram, Eurídice vinha com Uly no colo, ele havia acabado de completar 1 ano de idade, ela então falou que tinha uma surpresa para mim. Ela o colocou de pé no chão e ele veio andando me abraçar, foi uma enorme surpresa, pois quando tínhamos saído de São Paulo, ele ainda não andava, ele veio caminhando com seus primeiros passos trôpegos, foi um momento muito emocionante (Figura 38). Depois, no fim da nossa estadia em Buenos Aires, em novembro, Eurídice engravidou da Juliana e veio embora antes, eu voltei no fim de dezembro. Em junho 1975 nasceu nossa última filha, Marina, já no Brasil.

 


Figura 38- Eurídice e Uly em Buenos Aires no inverno de 1973.

 

Um grande motivo para ter decidido fazer pesquisa em alto nível foi porque, como morava em frente ao Biológico, que era um grande centro de pesquisadores, lembro das conversas em casa, do meu pai falando, quando eu ainda era menino, da admiração que ele tinha pelos cientistas, a importância da ciência, de produzir conhecimento. Mesmo sendo um advogado, ele enaltecia muito a atividade científica, a pesquisa, e, como eu tinha muita admiração por ele, cresci com aquilo na cabeça, se quisesse fazer alguma coisa profissionalmente importante que o agradasse, teria que ser um agente de transformação, atuando ativamente na produção do conhecimento. Consequentemente, para poder atingir meu objetivo já tinha a ideia de seguir na carreira acadêmica tornar-me Professor de Pediatria na EPM. Por outro lado, também era necessário exercer uma atividade na clínica privada, era um complemento, porque naquela época, assim como hoje, a remuneração pecuniária na universidade era muito baixa. Tornava-se inevitavelmente necessária esta atividade complementar, mas eu fazia consultório apenas no final da tarde após as 17:00 horas e invadia a noite.

Quando voltei da Argentina, em 1974, fui contratado pelo Departamento de Pediatria, pois não havia abertura de vagas para concurso pela universidade, naquela ocasião. Então, o Departamento de Pediatria, através do centro de estudos, me contratou para desempenhar atividade docente. Felizmente, logo a seguir, em 1975, foram abertas vagas para concurso público, prestei o concurso, fui aprovado, me tornei professor, na época Professor Auxiliar, pois eu ainda não tinha nenhum título, a pós-graduação estava recém começando. Por outro lado, como eu tinha muito contato com o pessoal da clínica médica, a primeira área de ebulição com a pós-graduação, interessei-me em cursar a pós-graduação. Como o Departamento de Pediatria ainda não havia criado nenhum curso de pós-graduação, consegui me inscrever no Mestrado do IBEPEGE, Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Gastroenterologia. Este instituto havia conseguido o credenciamento para abrir um curso de Mestrado graças a influência política que seus membros tinham em Brasília. Inscrevi-me no Mestrado do IBEPEGE, e, em paralelo desenvolvi um trabalho no Parque Nacional do Xingu, de avaliação do estado nutricional das crianças índias, o qual resultou na minha tese de Doutoramento, apresentada no Departamento de Pediatria da EPM. Como não se sabia ainda como iria evoluir a pós-graduação, havia muitas incertezas, apresentei a tese de Mestrado no IBEPEGE, tendo como tema as alterações morfológicas em biópsias do intestino delgado em crianças desnutridas, em março de 1977. Em abril de 1977 apresentei a tese de Doutoramento na EPM.  No espaço de um mês, defendi duas teses, a primeira no IBEPEGE e a segunda na EPM, e, ainda em 1977, logo após as apresentações das teses fui para os EUA.

Minha progressão na pesquisa iniciou-se a partir dessa experiência em Buenos Aires, onde alcancei um grande salto de qualidade. Produzi três trabalhos de pesquisa, em investigação clínica, em um ano o que é um feito bastante raro. Por coincidência, em 1974, foi realizado o Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, aí tive a oportunidade de apresentar meus trabalhos, na sessão de Gastroenterologia Pediátrica. Considerando que os temas que abordei eram muito atuais, o presidente da mesa onde eu estava apresentando os trabalhos era um mexicano, Fima Lifshitz, que morava nos EUA, ele estava em grande evidência no momento, viu minha apresentação e ficou muito interessado na minha linha de pesquisa. No ano seguinte, em 1975, já como docente trabalhando na EPM, foi realizado em São Paulo o Congresso Pan–Americano de Pediatria, e, Fima Lifshitz veio como convidado. Como eu já houvesse produzido novos trabalhos aqui na EPM, eu os apresentei, Fima ficou novamente muito impressionado com a qualidade dos meus trabalhos, então decidiu me convidar para ir trabalhar com ele, em investigação experimental, nos EUA (Figura 39).


Figura 39- Fima Lifshitz, meu chefe no North Shore, de quem me tornei um grande amigo pela vida.

 

Fui para Nova York em 1977, trabalhar no North Shore University Hospital, afiliado da Cornell University. Foi neste serviço que me envolvi com uma área que até então não fazia parte da minha carreira acadêmica, uma prática na qual não tinha experiência, a investigação experimental. Eu me dediquei nesta área em duas frentes de trabalho, a saber: perfusão intestinal em ratos e biologia celular, em microscopia eletrônica (Figuras 40-41-42).

 


Figura 40- Eu e o microscópio eletrônico que me proporcionou muitos trabalhos em Nova York e depois aqui na EPM.

 


Figura 41- Saul Teichberg biologista celular que me ensinou as técnicas da microscopia eletrônica de transmissão e eu, ao apresentar nosso primeiro trabalho em um Congresso em Atlantic City.


Figura 42- Mary Ann Bayne a bióloga que me ensinou a técnica da perfusão intestinal em ratos in vivo, grande amiga e companheira dos procedimentos de perfusão intestinal.

Estava muito bem, fiquei dois anos em Nova York, realizando trabalhos em pesquisa experimental, que resultaram na produção de três artigos científicos que foram publicados em periódicos internacionais de elevado fator de impacto. Foi um período de grande produção científica, porque tudo que se fazia nessa linha da investigação experimental, a perfusão intestinal em ratos, acarretando a ruptura da barreira de permeabilidade intestinal causando a absorção de macromoléculas intactas, e seu potencial desenvolvimento de alergia alimentar, era absolutamente inovador, então, em qualquer desenho de modelo eleito que eu me envolvesse produzia um trabalho.

No meu retorno ao Brasil trouxe a técnica e a metodologia para a EPM, e, graças a bolsas de pesquisa que foram financiadas pela FAPESP, pude implantar os modelos aprendidos nos EUA, que posteriormente resultaram em várias teses de Mestrado e Doutorado, de orientandos meus, bem como novas inúmeras publicações em periódicos nacionais e internacionais.

Quando voltei dos EUA, em 1979, a partir de um dos trabalhos que lá havia realizado transformei-o em tese de Doutorado, que foi apresentada no programa de pós-graduação da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da EPM. Em resumo, passei a ter um Mestrado em Gastroenterologia, um Doutoramento em Pediatria e um Doutorado em Gastroenterologia.

Dos meus 4 filhos, o mais velho é médico da universidade, hoje é diretor–administrativo do hospital São Paulo, se envolveu com a parte de administração hospitalar. A filha do meio é professora de inglês e atriz, a terceira é administradora de empresas, mora em Belo Horizonte, é diretora de uma mineradora canadense, antes trabalhava num banco. Tenho também uma filha do meu segundo casamento com a Fábia, Walkyria, ela tem 17 anos, está no terceiro ano do colegial, quer seguir medicina, é uma tradição dinástica.

 

A minha participação na administração, na estrutura burocrática da instituição, foi, na verdade, uma coincidência, não foi nada previamente deliberado, foram situações que se apresentaram e tudo foi transcorrendo naturalmente. Como sempre tive grande envolvimento com as questões da estrutura universitária, galguei vários degraus dentro da EPM. Em paralelo à atividade de ensino e pesquisa, política e institucional, fui chefe dos residentes da Pediatria, posteriormente fui eleito presidente da Comissão de Residência Médica da EPM, fui diretor da Associação dos Docentes (ADUNIFESP), em seguida Presidente da mesma, depois fui chefe da Disciplina de Gastroenterologia e a seguir do Departamento de Pediatria, fui Coordenador da pós–graduação em Pediatria, e membro nato no Conselho Universitário, desde 1988, quando me tornei Professor Titular, aos 44 anos, por concurso, com nota 10,0. Anteriormente, em 1982, aos 38 anos havia prestado o concurso para Professor Titular de Pediatria, fui vencido por outro colega Professor Calil Kairalla Farhat, por centésimos de nota, ele obteve 9,92 e eu 9,88. Este desfecho, longe de me desanimar, serviu de estímulo para seguir adiante em busca do meu objetivo maior, alcançar o posto mais alto da hierarquia acadêmica.

 

Durante muito tempo pensava quem poderia ser o próximo Reitor, nunca havia me passado pela cabeça esta ideia, pois sempre via algum docente sênior com esta possibilidade. A ideia da reitoria ocorreu quando a partir de um certo momento eu já não conseguia distinguir com nitidez quem poderia ser o potencial candidato a substituir o reitor Hélio Egydio. Uma certa tarde, como eu precisasse falar com o reitor Hélio a respeito de algum tema ligado à UNIFESP, liguei para ele e fui lá conversar. No meio da nossa conversa surgiu espontaneamente o assunto da sucessão, até aquele momento ainda não havia a possibilidade da reeleição, perguntei quem ele pensava para a sua sucessão. Ele, para minha surpresa, falou no meu nome, juntamente com o de outras cinco pessoas.

 

Isso aconteceu em fins de 1997. Eu perguntei para o reitor Hélio o que ele achava de positivo e negativo nesses potenciais candidatos, ele disse que para mim faltava o apoio do Departamento de Pediatria, ou seja, ser chefe do Departamento. Nunca tinha sido chefe do Departamento de Pediatria, só da minha Disciplina, mas já que era aquilo que faltava, fui em busca disso, para poder ser um potencial candidato a Reitor. Em uma tentativa anterior havia perdido a eleição no Departamento por um voto, mas na segunda, três anos depois ganhei por unanimidade, e três anos depois fui reeleito, também por unanimidade. Entretanto, quando chegou a época da eleição para Reitor, surgiu o advento da reeleição, e o reitor Hélio naturalmente se candidatou, mas me convidou para ser seu vice. Aceitei este honroso convite, não houve qualquer objeção por parte da comunidade acadêmica, nem tampouco surgiu outro candidato, assim fui eleito para o quatriênio 1999-2003. Ao término deste período candidatei-me para Reitor da UNIFESP para o mandato 2003-2007, fui eleito com mais de 80% dos votos na comunidade e no CONSU.

 

Na minha vida, a convivência entre docência, pesquisa e administração foi intensa, sempre pendia entre um ou dois dos três. Num primeiro momento a questão da administração era muito leve, pouca, a atividade entre docência e pesquisa eram intensas. A partir do momento que fui para a chefia do Departamento de Pediatria, a minha atividade de docência diminuiu bastante, a de pesquisa sofreu um abalo. Entretanto, quando fui para a Vice-reitoria deu para manter a atividade de pesquisa, porque o trabalho de vice é tranquilo, só é chamado na ausência do reitor. Durante o período que implantamos a pós-graduação na Pediatria, tive uma atividade grande de pesquisa por muitos anos, fui o orientador com a maior produção científica em Pediatria do país durante vários anos seguidos. Agora com a reitoria ela diminuiu, mas ainda mantenho atividade de pesquisa, principalmente com aquilo que construímos na Gastropediatria. Foi um processo de construção, progressivamente as pessoas passaram a ter independência para irem crescendo e se desenvolvendo, de tal forma que agora sou mentor dos trabalhos de pesquisa, oriento sobre o projeto de pesquisa em si, depois de realizado, escrito, também reviso e recomendo modificações, tenho uma atividade de pesquisador sênior, infelizmente não dá mais para estar na bancada como fazia em passado recente. Aliás, devo salientar que minha grande produção científica teve o reconhecimento nacional, porque em 2002, recebi a honraria da comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico, na categoria de Grão-Mestre, na Classe de Comendador da Ordem, cuja condecoração me foi entregue pessoalmente pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, no Palácio do Planalto (Figuras 43-44-45).

Figura 43: Recebimento da comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico das mãos do presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Minha filha Walkyria está entre nós dois.

Figura 44: Fábia e meus filhos Uly, Juliana, Marina e Walkyria no dia da premiação. Meu genro André também estava presente.


Figura 45: As comendas recebidas.

 

Recentemente, em outubro, fui agraciado com nova honraria, a Ordem do Mérito Aeronáutico, no Grau de Grande Oficial, a mais elevada categoria, por haver prestado assinalados serviços à Aeronáutica Brasileira, outorgado pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (Figuras 46-47).

Figura 46: Luciana e eu no dia da premiação da Ordem do Mérito Aeronáutico.

Figura 47: Momento solene da premiação.

Acredito que deixei uma marca na pesquisa, primeiro construí uma equipe, pessoas que se engajaram profundamente na constituição de uma Disciplina que hoje é a maior produção científica do país na área, a Gastroenterologia Pediátrica, a liderança que nós ocupamos por essa atividade, o reconhecimento da academia e dos pares em nível nacional e internacional. Como consequência dessa liderança nacional e internacional, fui eleito presidente do Congresso Mundial de Gastroenterologia Pediátrica que será realizado ano que vem (agosto de 2008), em Foz do Iguaçu, uma grande conquista. Quebramos tabus internacionais, isso só foi possível às custas de um trabalho de base sólido, de reconhecimento científico. Do ponto de vista da pesquisa em si, nós nos envolvemos numa linha de investigação que permitiu uma série significativa de produção de conhecimentos para o mundo, porque ocorreu conosco algo muito interessante, em especial na Gastroenterologia. Nos países onde existem os problemas básicos que são diarreia, desnutrição, miséria, geralmente não há alta tecnologia, enquanto nos países que têm alta tecnologia o problema praticamente não existe. Por outro lado, nós temos um pouco de cada coisa, nós não temos a tecnologia de última geração, mas temos uma boa tecnologia, e, ao mesmo tempo, também temos a pobreza, então, nós pudemos associar o conhecimento ao problema. Nós tivemos a oportunidade de descrever uma série de condições clínicas que até então eram desconhecidas na área médica que estão relatadas no livro que eu escrevi, em 1996, intitulado “Enteropatia Ambiental, uma consequência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública”.

 

 



 Trata-se de uma entidade clínica existente devido aos problemas decorrentes da falta de saneamento básico, com consequências extremamente nefastas do meio ambiente sobre o trato digestivo, consequentemente sobre o indivíduo, seu estado nutricional, em suma, a contaminação ambiental e todas as suas peculiaridades indesejáveis. Esse livro é constituído por uma compilação de teses minhas e aquelas que orientei, em que estudo o ser humano, desde a favela, num macro–ambiente, até o microambiente intestinal, que é a bacteriologia, a ultraestrutura do intestino delgado, a partir da microscopia eletrônica, mostrando todo um caminho até chegar ao final de um ciclo vicioso, desde um ponto de vista social e médico, na área da saúde.

O interesse pelo aspecto administrativo surgiu um pouco como consequência da minha ida aos EUA, porque lá tive a oportunidade de travar conhecimento e entender como funcionava a estrutura hospitalar, a questão profissional, diferentemente do que ocorria na Escola, onde nós sempre tivemos uma visão amadorística da estrutura administrativa e funcional universitária. Quando voltei dos EUA, passei a ter essa visão, ser um Professor Universitário é a minha real profissão, por isso decidi batalhar por ela, esta não é uma atividade secundária nem de valor menor, ao contrário, é uma atividade altamente relevante para a ciência, pesquisa, ensino, extensão, em suma para a soberania do país. Aprendi que se este não for o foco central da atuação do Professor Universitário, a universidade vai ser de alguma forma depreciada, não terá a valorização que merece.  Isso ficou muito claro para mim lá nos EUA, no hospital onde trabalhei, porque para o meu chefe Fima Lifshitz, aquilo era a vida dele, ele era professor, pesquisador e trabalhava exclusivamente naquele hospital, isso era sua atividade integral. Aprendi como eram as relações de trabalho entre as pessoas, a administração, isso me interessou muito, mudou totalmente minha forma de ver as coisas, nós tínhamos que batalhar para que a nossa profissão fosse devidamente valorizada.

 

Depois, em meados dos anos 80 surgiu uma oportunidade de extensão, fui trabalhar no Hospital Humberto Primo, que passou a ser um modelo híbrido, um hospital de atenção pública, mas sem deixar de ser privado, tornou-se uma organização público-privada sem fins lucrativos. Na verdade, constituiu-se no embrião do modelo que hoje orienta as Organizações Sociais. Fui liberado pela universidade para fazer parte desse projeto, fui administrar o Departamento de Pediatria, tinha que apresentar resultados, fizemos muitos exercícios de planejamento estratégico, aprendi muito com essa experiência. Quando terminou o projeto piloto no Hospital Humberto Primo voltei para a Escola com uma série de ensinamentos, uma visão aberta para novas perspectivas, todas elas voltadas para a medicina, atividades de saúde e administração hospitalar.

Todas as conquistas obtidas pela EPM ao longo destes 74 anos, que são incontáveis, são referências para nós, porque na hora que algum membro da EPM ler a história da instituição, a pessoa se identifica com ela. Ela passa a ter uma dívida de gratidão e um compromisso histórico com os fundadores, porque foram indivíduos que poderiam estar confortavelmente instalados em seus consultórios, ganhando dinheiro atendendo seus pacientes privados, mas ao contrário, decidiram abraçar uma causa heroica. Nesta época existia apenas uma Faculdade de Medicina no Estado de São Paulo, a vida deles estava garantida, praticamente não havia concorrência, mas eles remaram contra a maré, lutaram para construir e solidificar a EPM, sem tirar nenhum proveito pecuniário com esta empreitada.

Também acho que nada do que foi feito poderia acontecer em outra instituição, tinha que ser na EPM. Justamente porque nós nascemos da luta, como o imigrante, que teve que sobreviver a todas as adversidades do mundo desconhecido, sabendo que não tinha caminho de volta, então, ele só podia ter uma perspectiva, a sobrevivência, e, pela sobrevivência ele tinha que fazer o possível e o impossível. Tiramos leite de pedra, essa sempre foi a história da instituição, de superação de obstáculos. Por esta razão, entre muitas outras, estamos impregnados pelos nossos antecessores, temos um compromisso de vida com eles, porque o indivíduo que foi professor da EPM na época da sua fundação, em 1933, pagava mensalidade. O professor pagava mensalidade para ensinar, isso precisa sempre ser repetido aos quatro cantos do mundo, para que a instituição seja ainda mais respeitada, é o que procuro fazer desde minha vida de aluno até o presente momento como docente. A EPM é a minha vida, posso dizer isso tranquilamente. Devo tudo a duas coisas: ao futebol e a Medicina. Ao futebol, que me deu todas as alegrias, paixão, a honra e a glória de vestir a camisa da nossa Atlética, e a Medicina, que me deu o sucesso profissional, o prazer de ser útil ao próximo, os conhecimentos, as viagens, a produção científica, o reconhecimento dos meus pares.

 

Para o futuro, espero que os nossos sucessores nunca se esqueçam das origens, que eles sempre tenham em mente que a EPM foi a semente que possibilitou o nascimento e a expansão da UNIFESP. Desejo que a EPM seja sempre reverenciada e referenciada como a precursora de tudo aquilo que essa Universidade é e vai ser em breve futuro, tenho absoluta certeza disso, a UNIFESP ainda crescerá muito, muito...

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