Reitor:
Ulysses Fagundes Neto
Preâmbulo
A história que a seguir será contada, deveria na verdade, já de há muito tempo ter sido relatada, a partir da data referida no título do presente trabalho. Entretanto, devido a inúmeros fatores que interferiram na minha vida e que fugiram ao meu controle, este relato foi sendo postergado no tempo, e, assim, permaneceu praticamente relegado a um plano secundário. Por outro lado, apesar desta aparente negligência pelos fatos por mim vivenciados nestes últimos anos, desde 2008, sempre foi mantida na minha memória uma centelha que me acalentava, me instigando para reviver momentos tão marcantes na minha vida pessoal e como gestor de uma universidade pública federal da grandeza da UNIFESP. O despertar para esta realidade se deu de forma repentina e mostrou-se incontida, quando por mera casualidade do destino, tomei conhecimento, em 4 de fevereiro de 2021, da dissertação da servidora federal da UNIFESP, sra. Maria Bernadete de Noronha Dantas Rossetto, intitulada “A EXPANSÃO DA GRADUAÇÃO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO NO PERÍODO DE 2003 A 2012”, apresentada para a obtenção do título de Mestre Profissional em Ensino, em Ciências da Saúde, do Programa de Mestrado, em Ensino em Ciências da Saúde, do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS), cujos Orientadores foram Prof. Dr. Nildo Alves Batista e Paulete Goldenberg. Este trabalho de dissertação foi apresentado em 2017 e recebeu aprovação unânime da Banca Examinadora.
Durante a leitura do trabalho de 156 páginas, que o fiz de uma sentada, sem interrupção, vi como um filme sendo projetado diante dos meus olhos, em uma tela por mim imaginada, os quais se tornavam muitas vezes úmidos pelas lágrimas incontroláveis que insistiam em rolar pela minha face, pela emoção incontida, à medida que avançava nas páginas da referida tese, o desenrolar daqueles fantásticos e inesquecíveis acontecimentos. Sentia como se estivessem acontecendo naqueles meros momentos, as vibrações de grande euforia, na ampla maioria do tempo, e, em outros momentos, felizmente bem menos frequentes, de frustrações, as quais também fizeram parte desta verdadeira epopeia, cujos sentimentos a seguir irão se constituir no conteúdo desta narrativa.
A minha relação visceral com a Escola Paulista de Medicina
“De
armas vencidas e almas vencedoras, mal saía São Paulo de um desastre heroico
que o deveria abater se fosse fraco, mas que só o exaltou porque é forte, já
sua terra – terra ainda morna dos corpos que se esfriaram sobre ela,
beijando-a, lançava-se há pouco mais de três anos uma semente milagrosa: a da
Escola Paulista de Medicina” Discurso
do poeta Guilherme de Almeida no
lançamento da estaca fundamental do HSP em 30 de setembro de 1936
Transcrição
da entrevista, editada, revista e ampliada, com o reitor Ulysses Fagundes Neto
– Unifesp (dezembro de 2007)
Meu
nome é Ulysses Fagundes Neto, nasci
Figuras 1–2: Meu pai e minha mãe comigo no colo em Pirassununga.
Nasci
na Vila Mariana, em frente ao Instituto Biológico, na casa de meu avô, onde
moro hoje (2007). Já morei lá cinco vezes, essa é a passagem mais longa, estou
lá desde 93. Essa casa é muito, muito antiga, é de 1927, foi construída pelos irmãos
Rossi, dois arquitetos italianos, que trabalhavam naquela época no escritório
do engenheiro Ramos de Azevedo (Figuras 3-4-5-6-7).
Figura 3- Foto da casa em 1935, meus avós estão na varanda.
Figuras 4-5: Fotos da casa em 1992 antes de eu fazer a reforma que durou um ano.
Figuras 6-7: Fotos da casa em 1993 depois da reforma.
Fui
praticamente criado por esse meu avô paterno, ele é do lado dos Fagundes
(Figura 8).
Figura 8: Meu avô Ulysses e eu com menos de 1 ano de idade no jardim da casa. Do lado direito vê-se a jabuticabeira florida.
Ele
tinha uma grande afeição pela família, teve dois filhos, meu pai e minha tia
Yvonne. A minha tia é a mais velha, meu pai teve dois filhos, eu e minha irmã
Tânia, minha tia teve três filhos, todos com idades próximas, estou situado no
meio, sou o terceiro e carrego o nome do meu avô, Ulysses Fagundes, o que
sempre foi uma grande responsabilidade. Meu avô era casado com minha avó Juventina
de Sousa Fagundes (Figuras 9-10-11-12-13).
Figura 9: Meus avós Ulysses e Juventina quando jovens recém-casados em 1916.
Figura 10: Meus avós 19 anos mais tarde.
Figura 11: Meus avós com minha tia Yvonne e meu pai em Santos em 1940.
Figura 12: Meus avós com os netos Cláudio e Tânia sentados no banco e Ruy, eu e Américo sentados na grama, em Santos.
Figura 13: Meus avós com os netos alguns anos mais tarde, em 1953.
Nós
cinco fomos criados na Vila Mariana, era uma relação muito próxima, pois morávamos
a pequena distância uns dos outros. Meu avô era seguramente uma pessoa 50 anos à
frente do seu tempo, formou–se médico no Rio de Janeiro, em 1913, naquela época
ainda não havia nenhuma Faculdade de Medicina no estado de São Paulo, a da USP,
que foi a primeira, foi fundada em 1913. Ele nasceu em 1887, eu até brincava
com ele dizendo que ele era tão antigo que havia nascido antes da abolição da escravatura.
Desde
que nasci, ficou praticamente decidido que quando crescesse seria médico, da
mesma forma que o filho do meio da minha tia, foi uma decisão familiar. Como
meu avô tinha uma grande influência, carisma, era amado por todos, ninguém se
contrapôs a essa ideia. Ele era uma figura muito popular, morávamos em frente ao
Instituto Biológico, como ele já havia se aposentado, atendia todo o pessoal do
Biológico. Minha mãe trabalhava no Biológico, tínhamos uma convivência muito
grande com os funcionários, era só atravessar a rua. Naquele tempo o Biológico não
era cercado por grades, minha infância passei praticamente dentro do Biológico,
conhecíamos todo mundo lá.
Na
minha infância também tentaram me fazer pianista, durante algum tempo estudei
piano, mas não saía da escala, não tinha talento, mas, para agradar à família
ia religiosamente à aula, a professora morava perto de casa, ia lá, tocava a escala,
realmente não tinha talento para isso, até que um dia desisti desta arte.
Também estudei inglês, esse com mais dedicação, meu pai já achava importante falar
outro idioma, isso lá nos idos anos 50, estudei inglês e me tornei fluente no
idioma, o que muito me ajudou no futuro, pessoal e profissionalmente.
No
colégio já era atraído por matérias ligadas à Medicina, afinal, estava decidido
que seria esse o meu caminho, eu gostava bastante dessas matérias. Creio que
também foi uma transmissão de algum gene que me trouxe para essa atividade,
tanto que fui muito bom aluno em Física, Biologia, Botânica, Química Orgânica e
Inorgânica, coisas que domino até hoje em minha atividade. Eu não era bom aluno
em Matemática, mas era em Português.
A
minha educação, teve um misto de tradicional e despojada, porque meu avô paterno
era muito popular, desprovido de qualquer vaidade e preconceitos, inclusive tenho
comigo a tese de formatura dele, de 1917, que ele dedicou à sociedade humanitária
e ao humanismo, nós fomos criados com esse espírito, o humanismo.
Estudei
no Liceu Pasteur do jardim de infância até o primário, depois fui para o Colégio
Bandeirantes, lá fiz o ginasial e o científico.
Meus
pais eram sócios do Esporte Clube Banespa, foi lá que eles se conheceram, depois
de casados continuaram a frequentar o clube, e, portanto, desde pequeno eu
também ia para o clube (Figuras 14-15).
Figura 14: Meus pais quando jovens no Esporte Clube Banespa onde se conheceram.
Figura 15: Meus pais e eu no colo da minha mãe, já começando a frequentar o clube, que mais tarde e durante muitos anos, viria a ser meu local favorito de lazer e da prática esportiva.
Na
adolescência boa parte minha vida eu passava no Banespa, chegava do colégio, almoçava
e ia para o Banespa. Eu pegava o bonde em frente ao Biológico, ali começava a
linha férrea que ia até Santo Amaro, e descia na parada Petrópolis, ia para o
Banespa fazer algum esporte, de preferência futebol e vôlei, também socializar
com meus amigos, voltava de noite para jantar em casa.
Sempre
joguei vôlei, futsal e futebol, lá no Banespa tínhamos o time juvenil de futebol,
o time juvenil de futsal, disputava o campeonato paulista, fomos campeões paulistas,
e o time juvenil de vôlei, que também disputava o campeonato paulista da categoria
(Figura 16).
Fui
duas vezes convocado para a seleção paulista juvenil de vôlei para disputar os
campeonatos brasileiros (1961-62) da modalidade (Figura 17).
Figura 17: A seleção paulista juvenil que
disputou o campeonato brasileiro em 1962, em Ribeirão Preto. Estou em pé com a
bola na mão. Ficamos em terceiro lugar.
O
meu primeiro time oficial de futebol foi o juvenil do Banespa, onde comecei,
quando tinha 14 anos (Figura 18).
Figura 18: Meu primeiro time oficial, o juvenil do Banespa, jogávamos aos domingos à tarde. Sou o número 10.
Meu
avô materno Valdomiro da Cunha Lobo, o Lobo, foi um grande jogador de futebol, foi
ele quem me ensinou a jogar (Figura 19).
Figura 19: Meu avô Lobo e eu ainda lactente. Foi ele que me iniciou na prática do futebol em sua chácara no Guarapiranga.
Ele
era casado com minha avó Zizinha Machado da Cunha Lobo que era de Santo Amaro,
a família da minha avó era tradicional em Santo Amaro, fazia parte dos Botinas
Amarelas, na época que Santo Amaro era um município independente da cidade de
São Paulo. Meu avô Lobo tinha uma chácara no caminho de Guarapiranga, e, em frente
tinha um campo de futebol, foi lá que aprendi a jogar bola com ele desde
pequeno. Quando tinha 16 anos, fui promovido ao time principal do Banespa, foi um
grande acontecimento para mim, jogávamos aos domingos de manhã, o campo, que
era oficial de dimensões máximas, ficava lotado de torcedores da região do
Brooklin. Como me destacasse muito desde a estreia, fazia muitos gols, fui
convidado para jogar no São Paulo Futebol Clube, o que muito me honrou, mas
acabei não indo, sem saber ao certo o porquê. Somente muitos anos depois, já adulto, descobri
que meu pai havia feito um complô, não permitiu que eu assinasse o contrato,
não queria que eu fosse ser jogador de futebol, queria que a minha atividade
futebolística fosse apenas em nível amador. Mas como eu era insistente, lá
Posteriormente,
depois dos 18 anos minha grande atividade como jogador de futebol foi no Clube
Atlético Indiano (CAI), disputando os campeonatos internos, que eram altamente
competitivos porque muitos ex-profissionais também participavam daqueles
campeonatos. Joguei também pela seleção do CAI, disputamos os campeonatos interclubes
de São Paulo, onde nos sagramos bicampeões (Figura 20).
Figura 20: Seleção do Clube Atlético Indiano que disputou os campeonatos interclubes da cidade de São Paulo. Estou agachado, sou o antepenúltimo à esquerda.
Cheguei
mesmo a jogar contra a Seleção Olímpica Brasileira que disputou os Jogos
Panamericanos de 1963, empatamos em 2x2, eu fiz os gols do CAI. Por todos esses
fatos anteriormente narrados, eu considero que o futebol foi uma grande paixão
na minha vida.
Na
hora de escolher a faculdade que iria cursar, não era tão difícil essa escolha,
naquela época não havia muitas opções, existiam poucas Faculdades de Medicina
no estado de São Paulo. O primeiro vestibular que prestei foi em 1963-64, logo
após haver terminado o científico, os exames eram independentes, separados, fiz
alguns, mas era uma maratona, prestei exames em Campinas, Sorocaba, USP, Santa
Casa e Paulista, começavam em dezembro e iam até março, uma verdadeira
maratona. Como era recém-saído do científico, não consegui nenhuma vaga. Em
1964, frequentei o Curso Vestibular Nove de Julho, localizado no bairro da
Liberdade, em frente ao largo. Desta vez fui muito bem, logo no primeiro exame
vestibular daquele ano, o da Santa Casa, que era isolado, entrei em décimo–terceiro
lugar, depois foi a primeira vez do exame unificado, o CECEM, que prestei em 1964-65.
Minha primeira opção foi a USP, a segunda foi a Paulista. Como minha colocação
foi entre 100 e 200, 112, coisa assim, entrei na EPM. Foi até certo ponto frustrante
não ter conseguido entrar na USP, pois era a maior referência no estado, posto
que no primeiro exame havia entrado na Santa Casa, em décimo–terceiro lugar.
Apesar
disso, acho que acabei entrando na EPM porque, mesmo sem referências especiais,
as minhas relações com ela são antigas. Como morava em frente ao Biológico, o
trote dos calouros era feito nas piscinas de lá, uma vez por ano eu via um
bando de gente pintada, seminua, acompanhada por outro grupo que vestia avental
branco, os veteranos, que traziam os calouros para mergulhar nas piscinas do Biológico.
Depois de mergulhar nas piscinas alguns calouros vinham se lavar na minha casa,
pois havia uma torneira no portão de entrada, eu ficava olhando do terraço, mas
não entendia bem o que representava todo aquele movimento, que coisa mais
estranha era aquela. Além disso, muitos veteranos iam até o Liceu Pasteur,
levavam os calouros até lá atados a uma coleira, como se pode perceber esta é
uma relação antiga, eu tinha aproximadamente sete anos de idade. Outro
acontecimento que me conectou com a EPM, na verdade com o Hospital São Paulo,
foi decorrente de um verdadeiro um acidente doméstico, quando eu devia ter uns
10 anos de idade, que envolveu minha irmã Tânia. Em uma determinada noite, nossos
pais haviam saído para jantar fora de casa, nós estávamos sós e minha irmã propôs
uma brincadeira de mão, para ver quem conseguiria torcer o dedo do outro
primeiro. Infelizmente, na primeira tentativa eu quebrei o dedo polegar dela, e,
então, tivemos que ir com urgência para o Hospital São Paulo. Fiquei com um grande
sentimento de culpa e fui acompanhá-la até o hospital. Em lá chegando ela foi
atendida por um jovem ortopedista chamado Dr. Valdemar Carvalho Pinto, que
posteriormente se tornou um renomado profissional e depois, por muito tempo, foi
Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.
Outra
relação com a EPM é que essa região onde ela está localizada, uma grande área fazia
parte das terras da família, dos Fagundes. Inclusive reza a história que essa igreja
que tem aqui perto, na Domingos de Morais, o terreno foi doado pelo meu bisavô,
pois fazia parte das terras dele. Os Fagundes estavam aqui havia muito tempo.
Outro dia, indo ao museu Afro–Brasil, casualmente vi um mapa da cidade de São
Paulo do século XIX, e aí pude identificar nitidamente os sítios dos Fagundes, que
iam desde a Liberdade até o Jabaquara, um deles era do meu bisavô Alfredo
(Figuras 21-22-23).
Figuras 21-22-23: Mapas da cidade de São Paulo em 1888 onde se pode identificar os sítios dos Fagundes (Arthur, Alfredo e Felício) na região da Vila Mariana. Alfredo foi meu bisavô.
Quando
entrei na Paulista, o trote foi suave, porque sabiam que eu era esportista, era
uma Escola pequena, só 600 alunos, nós disputávamos competições importantes, então,
quando entrava um esportista ele era muito celebrado. Além disso, eu praticava
três esportes, futebol, vôlei e futsal, o que representava um valor agregado
muito grande para as disputas dos eventos esportivos. Estas habilidades tinham um
grande valor na vida da Escola.
Defendendo
a nossa Atlética Pereira Barreto disputei as Pauli-Polis, as Pauli-Meds, as Intermeds
que envolviam todas as faculdades de Medicina do estado de São Paulo, e os
campeonatos universitários paulistas da Federação Universitária Paulista de
Esportes (FUPE). No meu último ano do curso, em 1970, nos sagramos campeões, e,
para minha imensa alegria fui eleito o atleta do ano da FUPE na modalidade
futebol (Figura 24).
Figura 24: Time de futebol da EPM campeão da FUPE de 1970. Estou agachado penúltimo à esquerda.
Na
universidade também fui campeão brasileiro universitário de vôlei disputado em Niterói,
em 1965, pela seleção da FUPE. Neste mesmo ano no campeonato da FUPE ficamos em
terceiro lugar e eu fui eleito o atleta do ano na modalidade. Em 1969 nos
sagramos vice-campeões no campeonato da FUPE.
Na
primeira Pauli–Poli que disputei, em 1965, fazia 15 anos que a Escola não
ganhava, e, nesse primeiro ano vencemos a competição geral, inclusive vencemos em
alguns esportes que não ganhávamos havia muito tempo. No futebol ganhamos de
cinco a dois, marquei dois gols, no vôlei, havia 20 anos sem ganhar, nós
ganhamos, eu era o capitão do time, e, por fim, também vencemos no futsal. Naquela
época os esportes de salão eram disputados no ginásio do Pacaembu, a partida de
futsal foi a decisão geral da competição, quem ganhasse aquele jogo se tornaria
o campeão da Pauli–Poli daquele ano. O ginásio estava completamente lotado,
porque antes do jogo final, durante a semana já se sabia que neste jogo seria disputada
a taça. Muitos médicos, que haviam se formado havia muito tempo, nunca haviam
vencido a Pauli–Poli, vieram de vários locais, inclusive do interior, estavam
lá, ginásio lotado, cheio de expectativa, foi muito emocionante. O jogo começou,
duríssimo, o time deles era muito bom, começamos perdendo de um a zero, viramos
para dois a um e ganhamos a Pauli-Poli de 1965, foi uma festa interminável,
varou a madrugada, nunca poderia imaginar a transcendência daquela conquista
(Figuras 25-26).
Figura 25: Time de futsal que venceu a Pauli-Poli de 1965. Estou em pé terceiro à esquerda.
Figura 26: Equipe entrando na quadra do ginásio do Pacaembu.
Para
que se tenha uma pequena ideia da importância desta disputa para a nossa
Escola, faltei a algumas aulas práticas de Biofísica para treinar, os treinos aconteciam
na hora do almoço, se estendiam, atrasavam, mas no final do semestre tinha que
prestar o exame prático, que era dificílimo. Eram 20 pontos, eu tinha frequentado
19 aulas práticas, em uma delas eu não havia participado, portanto, não dominava
a parte prática daquele tema. Tínhamos que sortear um ponto para executar a
parte prática, não deu outra, sorteei o ponto que eu não havia assistido a
aula. Era uma experimentação bastante sofisticada, o transporte de íons pela
pele do sapo, transporte iônico, osmose, era em aparelhos novos de última
geração, recém comprados pela Escola. Fiquei olhando a aparelhagem, sabia os
cálculos, mas não sabia montar aquilo, fiquei mexendo, tentando dar um jeito, mas
não obtinha sucesso, até que o professor Paiva (Professor Titular de Biofísica),
que estava me examinando mandou eu parar de mexer na aparelhagem, porque poderia
destruir o modelo. Ele, então, assumiu o controle e montou o sistema para mim, e,
após deixar todo o sistema montado me disse muito seriamente, “isto vale pelos
seus dois gols na Pauli–Poli, agora o jogo está zero a zero, daqui em diante é
com você”, então, mesmo suando frio, consegui fazer o experimento. Outra história
interessante decorrente do fato de termos vencido o jogo de futebol da Pauli–Poli
foi o que ocorreu comigo no exame de Anatomia. No primeiro ano, nós tínhamos na
Anatomia o professor Prates, que era o primeiro assistente do professor Locchi,
ele se tornou grande amigo da nossa turma e foi assistir ao jogo de futebol da
Pauli-Poli no estádio do Pacaembu. Quando o jogo terminou, professor Prates foi
ao vestiário nos cumprimentar, me disse que eu já estava com pelo menos nota sete
no exame final de Anatomia, pelos gols que eu havia marcado. Era uma brincadeira,
mas o problema é que levei a promessa a sério, na hora da prova fui cobrar a
nota sete, mas o professor Prates não era meu examinador, a prova era com outro
professor, ele queria me dar pau, me acusou de tentar suborná-lo. Para minha sorte
o professor Prates estava por perto, assistiu a cena e interveio, explicou que
era uma brincadeira que ele tinha feito comigo, que eu havia levado a sério, havia
sido um mal-entendido. Finalmente realizei o exame e fui aprovado sem nenhuma
interferência externa (Figura 27).
Figura 27: Professor Prates, nosso eterno grande amigo desde os anos 60, e eu quando fui eleito vice-reitor em 1999.
Ainda
no campo esportivo, vale lembrar da Pauli-Med, pela sua importância em si e
pela enorme rivalidade entre as duas faculdades. A primeira edição da competição
foi realizada em 1965, ano do meu ingresso na EPM. Logo na primeira disputa, o
futebol, sofri um choque ao ouvir a musiquinha que o pessoal da Pinheiros cantava,
repetida e incessantemente, para nos insultar: “Fede, fede, fede refugo da Med”.
Contrariamente ao que eles desejavam, isto não me causava qualquer abatimento
moral, mas sim uma grande indignação, me enchia de brios e ganas de vencer
todas as disputas. Nesta primeira edição empatamos no futebol (2x2), ganhamos
no futsal e no vôlei, mas perdemos na contagem geral (Figura 28).
Figura 28: Equipe de futebol da EPM na minha primeira Pauli-Med (empate 2x2) em 1965, no estádio do Pacaembu. Ao fundo ainda pode ser vista a tradicional concha acústica que posteriormente foi demolida para a construção do tobogã. Estou agachado bem ao centro do grupo.
Por
outro lado, vencemos todas as outras 5 edições, em todas ganhamos no futebol,
futsal e vôlei. Em 1967, meu avô Lobo foi assistir o jogo de futebol no estádio
do Pacaembu. Ele ficou completamente envolvido com a partida, acompanhou o jogo
inteiro em pé, corria de um lado para o outro acompanhando o movimento da bola.
Era a primeira vez que ele me via jogar desde quando ainda menino me havia
orientado a respeito dos princípios fundamentais do futebol. Para minha felicidade
e dele também, marquei 2 gols, vencemos de 4x1, assim, eu pude retribuir a quem
me ensinou o jogo da bola a alegria de ver seu discípulo brilhar. Infelizmente,
ele faleceu de infarto no ano seguinte.
Em
1969, quando já cursava o quinto ano de Medicina, num fim de semana jogando futebol
pela seleção do CAI contra a seleção Brasileira que iria disputar as Macabíadas,
em Israel, sofri, num choque com o goleiro adversário, uma dupla luxação
esterno-clavicular, o que me causava dor intensa mal podia respirar, praticamente
me impossibilitava movimentar o tronco e os braços. Entretanto, vivíamos a semana
decisiva da Pauli-Med, tínhamos um jogo de futebol cujo resultado seria vital para
nossa vitória na competição geral. Eu era o capitão do time, exercia uma
liderança importante no grupo, precisava entrar em campo de qualquer forma, além
do mais havia um outro fator de complicação, pois o jogo seria realizado no
campo do inimigo, lá na Atlética deles. Corri desesperado ao Jonas, nosso enfermeiro
da ortopedia, praticamente suplicando para que ele resolvesse meu problema.
Jonas com seu olhar paciente, quase de deboche, me disse: “vou lhe fazer um colete
de gesso do pescoço até a cintura e se você conseguir se equilibrar vai poder jogar”.
Dito e feito, o colete foi providenciado e em mim colocado, fiquei completamente
enrijecido, mas pelo menos me vi livre da dor que tanto me incomodava. Apresentei-me
para jogar, ninguém podia acreditar que eu teria condições para tal, mas como era
veterano e capitão do time o poder da influência falou mais alto, desta forma
entrei
A
Intermed teve sua primeira edição realizada em 1967, em Botucatu, que nós
vencemos, perdemos em Campinas em 1968, mas voltamos a vencer em 1969, em Botucatu,
e em Santos, no meu último ano como acadêmico, em 1970 (Figuras 29-30-31-32-33).
Figura 29: Anúncio da III Intermed em Botucatu.
Figura 30: Equipe de futebol vencedora a da III Intermed. Estou em pé segurando o troféu.
Figura 31: Os três jogadores pertencentes à Turma 70. Da esquerda para a direita Sérgio Birigui, eu e Fernando Várzea.
Figura 32: Equipe de vôlei vencedora da III Intermed. Estou com o troféu nas mãos.
Figura 33: A terceira edição da Intermed em 1969 na qual nos tornamos bicampeões. Vencemos entre outras modalidades no futebol e no vôlei.
Esta
última edição foi uma verdadeira epopeia, porque a competição estava muito
parelha com a Pinheiros até os últimos momentos. Restava apenas disputar 2 modalidades
e ambas eram entre nós e eles, futsal e vôlei. Tínhamos que vencer ambas as
partidas para nos sagrarmos campeões gerais da Intermed daquele ano. No primeiro
jogo, futsal vencemos por 2x1, o último jogo era o vôlei, éramos franco
favoritos, vencemos por 3x0, nos sagrando tricampeões da Intermed, na minha despedida.
Quando o jogo de vôlei terminou, nossa torcida invadiu a quadra para celebrar a
grande conquista, fizeram uma festa incrível, emocionante! Em um determinado
momento, um grupo de colegas me carregou nos ombros para dar a volta de triunfo
e se encaminharam em direção à torcida da Pinheiros, que havia lotado a
arquibancada oposta à nossa. Naquele momento eu imaginei que pela nossa entranhável
rivalidade, fosse ocorrer alguma reação agressiva contra mim e nosso grupo. Entretanto,
para surpresa geral, quando nos aproximávamos da arquibancada da torcida da
Pinheiros, houve uma reação de reverência e reconhecimento, puseram-se em pé e
me aplaudiram longamente, o que muito me emocionou. Anos mais tarde, já médico
em plena atividade conversando com amigos graduados pela Pinheiros, soube que
me haviam alcunhado um epíteto de “A locomotiva da Paulista”, em alusão
às minhas performances durante os 6 anos de renhidas disputas (Figuras
34-35-36).
Figura 34: Time de futebol que disputou a Intermed de 1970 no estádio da Vila Belmiro, templo do futebol onde brilhava a equipe do Santos naquela época. Estou agachado no centro no grupo.
Figura 35: Um lance da final do vôlei da Intermed de 1970 entre nós e a USP. Estou na posição de levantador da bola.
Figura 36: A grande festa da vitória da Intermed de 1970, minha despedida da EPM como esportista. Estou no centro do grupo erguendo o troféu da vitória.
Logo
que entrei na EPM, tinha a ideia de fazer clínica geral, cirurgia nunca fez
parte dos meus planos, nunca tive talento nem paciência para usar um bisturi,
nem ficar dissecando. Para mim, era uma tortura ficar na Anatomia dissecando,
queria ter relações com as pessoas, então, tinha certeza de que faria alguma especialidade
clínica. Também sempre tive uma preocupação social, porque joguei futebol em vários
lugares da periferia da nossa cidade, passei por muitas favelas, convivi com
muita pobreza, me comovia ver as crianças abandonadas, a miséria, a desigualdade
social, esta situação sempre me incomodou muito. Entendia que a melhor forma de
ajudar na questão social era trabalhar com as crianças, assim minha tendência
natural foi me dedicar à Pediatria. Mas queria trabalhar na Pediatria com algo que
envolvesse o drama social, por isso me aproximei da Medicina Preventiva.
Entretanto, não encontrei nesta Disciplina um estímulo que fosse suficientemente
importante para me envolver com ela, então, me voltei para a Pediatria. Na Pediatria
não posso dizer que tive um modelo, mas uma pessoa que me ensinou e ajudou muito
foi o Dr. Jamal Uehba, que também foi professor da EPM. Ele era um grande
pediatra, jovem, progressista, me estimulou muito na Pediatria, nos tornamos
muito amigos, depois fomos sócios, trabalhamos juntos durante muitos anos.
Quando
fiz Pediatria, me dediquei ao binômio diarreia-desnutrição, foi onde me sentia
realmente útil à sociedade como cidadão e médico. Foi neste campo de atuação
que decidi praticar minha especialidade, a Gastroenterologia Pediátrica, mas muito
voltada para as questões sociais, porque diarreia era a primeira causa de mortalidade
infantil naquela época. No terceiro ano de residência, em 1973, fui para a Argentina,
porque lá estava o pioneiro da Gastroenterologia Pediátrica, um argentino, Dr.
Horácio Toccalino (Figura 37). Tudo isso porque naquela época ainda não existia
uma superespecialização na Pediatria, o pediatra era um clínico geral, isso me
incomodava, por não ter a segurança de ser um médico de abrangência global, de
saber todas as coisas, porque lidávamos com pacientes extremamente graves, havia
situações em que me sentia completamente impotente, senti que assim não seria útil.
Por personalidade própria nunca me satisfiz em conhecer apenas a superfície, sempre
dei preferência por conhecer a profundidade, queria não só saber a consequência,
mas a causa, o âmago da questão. Por isso fui fazer meu terceiro ano de residência
na Argentina, pois essa viria a ser a minha área de atuação, a Gastroenterologia
Pediátrica.
Figura 37– Horácio Toccalino, meu grande mestre, no centro da foto, ao seu lado direito Jorge Ortiz e Ricardo Licastro médicos do Policlínico Alejandro Posadas. Toccalino, infelizmente, neste ano foi diagnosticado com um câncer intratável e veio a falecer em 1978, aos 42 anos de idade.
Consegui
ir para a Argentina da seguinte maneira: quando era interno, no sexto ano do
curso, em 1970, celebrou–se o cinquentenário da Associação Paulista de Medicina
com a organização de um grande curso de atualização. Para o curso na área da Pediatria
foram convidados três professores internacionais. Dentre os professores, dois
eram europeus, um alemão, Svoboda, ortopedista e um suíço, Fred Bamatter, um
senhor bem velhinho, já estava na fase filosófica da medicina, estudando as assimetrias
do corpo, mostrando fotos, e o terceiro um argentino Horácio Toccalino. Assisti
esse curso e me impressionei muito com o que Toccalino apresentou. Depois de
fazer o primeiro e o segundo anos da residência, Jamal me recomendou que eu deveria
fazer uma especialização, que havia a possibilidade de fazer o terceiro ano
fora do país. Como ele tivesse uma informação do Nóbrega (Fernando José,
Professor da UNESP), que estava em Botucatu, ele havia mandado uma residente para
treinamento com Toccalino,
Me
casei em 1971, praticamente assim que me graduei, tive três filhos, o primeiro em
72, a segunda em 74 e a terceira em 75, portanto, um menino e duas meninas. O
meu filho mais velho foi para a Argentina conosco, com um ano de idade. Assim
que chegamos a Buenos Aires, minha mulher, Eurídice, e eu fomos procurar um lugar
para morar. Fiquei surpreso, porque não se alugavam casas na Argentina, as
pessoas tinham casa própria, era muito difícil encontrar um imóvel para alugar,
passamos dez dias tentando arranjar um lugar para morar, já estávamos desesperados,
mas enfim conseguimos um apartamento, no último andar de um prédio baixo sem
elevador. Era em um bairro judeu, chamado La Paternal. Logo após termos nos
instalado, minha mulher voltou para São Paulo para buscar nosso filho e se
mudar definitivamente. No dia que chegaram fui buscá-los no aeroporto de
Ezeiza, quando avistei o avião perdendo altura para aterrizar, fiquei angustiado,
afinal, lá estavam minha mulher, meu filho e minha mãe, toda a minha vida, toda
a minha riqueza estavam naquele avião, ele não podia cair, eu não aguentaria.
Foram minutos angustiantes, fiquei realmente sofrendo vendo a chegada deles.
Até que finalmente eles chegaram, Eurídice vinha com Uly no colo, ele havia acabado
de completar 1 ano de idade, ela então falou que tinha uma surpresa para mim. Ela
o colocou de pé no chão e ele veio andando me abraçar, foi uma enorme surpresa,
pois quando tínhamos saído de São Paulo, ele ainda não andava, ele veio caminhando
com seus primeiros passos trôpegos, foi um momento muito emocionante (Figura
38). Depois, no fim da nossa estadia em Buenos Aires, em novembro, Eurídice engravidou
da Juliana e veio embora antes, eu voltei no fim de dezembro. Em junho 1975
nasceu nossa última filha, Marina, já no Brasil.
Figura 38- Eurídice e Uly em Buenos Aires no inverno de 1973.
Um
grande motivo para ter decidido fazer pesquisa em alto nível foi porque, como
morava em frente ao Biológico, que era um grande centro de pesquisadores,
lembro das conversas em casa, do meu pai falando, quando eu ainda era menino,
da admiração que ele tinha pelos cientistas, a importância da ciência, de
produzir conhecimento. Mesmo sendo um advogado, ele enaltecia muito a atividade
científica, a pesquisa, e, como eu tinha muita admiração por ele, cresci com
aquilo na cabeça, se quisesse fazer alguma coisa profissionalmente importante que
o agradasse, teria que ser um agente de transformação, atuando ativamente na produção
do conhecimento. Consequentemente, para poder atingir meu objetivo já tinha a ideia
de seguir na carreira acadêmica tornar-me Professor de Pediatria na EPM. Por outro
lado, também era necessário exercer uma atividade na clínica privada, era um complemento,
porque naquela época, assim como hoje, a remuneração pecuniária na universidade
era muito baixa. Tornava-se inevitavelmente necessária esta atividade
complementar, mas eu fazia consultório apenas no final da tarde após as 17:00
horas e invadia a noite.
Quando
voltei da Argentina, em 1974, fui contratado pelo Departamento de Pediatria, pois
não havia abertura de vagas para concurso pela universidade, naquela ocasião. Então,
o Departamento de Pediatria, através do centro de estudos, me contratou para desempenhar
atividade docente. Felizmente, logo a seguir, em 1975, foram abertas vagas para
concurso público, prestei o concurso, fui aprovado, me tornei professor, na época
Professor Auxiliar, pois eu ainda não tinha nenhum título, a pós-graduação
estava recém começando. Por outro lado, como eu tinha muito contato com o
pessoal da clínica médica, a primeira área de ebulição com a pós-graduação, interessei-me
em cursar a pós-graduação. Como o Departamento de Pediatria ainda não havia criado
nenhum curso de pós-graduação, consegui me inscrever no Mestrado do IBEPEGE,
Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Gastroenterologia. Este instituto
havia conseguido o credenciamento para abrir um curso de Mestrado graças a influência
política que seus membros tinham em Brasília. Inscrevi-me no Mestrado do IBEPEGE,
e, em paralelo desenvolvi um trabalho no Parque Nacional do Xingu, de avaliação
do estado nutricional das crianças índias, o qual resultou na minha tese de
Doutoramento, apresentada no Departamento de Pediatria da EPM. Como não se
sabia ainda como iria evoluir a pós-graduação, havia muitas incertezas, apresentei
a tese de Mestrado no IBEPEGE, tendo como tema as alterações morfológicas em biópsias
do intestino delgado em crianças desnutridas, em março de 1977. Em abril de 1977
apresentei a tese de Doutoramento na EPM. No espaço de um mês, defendi duas teses, a
primeira no IBEPEGE e a segunda na EPM, e, ainda em 1977, logo após as apresentações
das teses fui para os EUA.
Minha
progressão na pesquisa iniciou-se a partir dessa experiência em Buenos Aires, onde
alcancei um grande salto de qualidade. Produzi três trabalhos de pesquisa, em
investigação clínica, em um ano o que é um feito bastante raro. Por coincidência,
em 1974, foi realizado o Congresso Mundial de Pediatria,
Figura 39- Fima Lifshitz, meu chefe no North Shore, de quem me tornei um grande amigo pela vida.
Fui
para Nova York em 1977, trabalhar no North Shore University Hospital, afiliado
da Cornell University. Foi neste serviço que me envolvi com uma área que até
então não fazia parte da minha carreira acadêmica, uma prática na qual não tinha
experiência, a investigação experimental. Eu me dediquei nesta área em duas
frentes de trabalho, a saber: perfusão intestinal em ratos e biologia celular, em
microscopia eletrônica (Figuras 40-41-42).
Figura 40- Eu e o microscópio eletrônico que me proporcionou muitos trabalhos em Nova York e depois aqui na EPM.
Figura 41- Saul Teichberg biologista celular que me ensinou as técnicas da microscopia eletrônica de transmissão e eu, ao apresentar nosso primeiro trabalho em um Congresso em Atlantic City.
Figura 42- Mary Ann Bayne a bióloga que me ensinou a técnica da perfusão intestinal em ratos in vivo, grande amiga e companheira dos procedimentos de perfusão intestinal.
Estava
muito bem, fiquei dois anos
No
meu retorno ao Brasil trouxe a técnica e a metodologia para a EPM, e, graças a bolsas
de pesquisa que foram financiadas pela FAPESP, pude implantar os modelos
aprendidos nos EUA, que posteriormente resultaram em várias teses de Mestrado e
Doutorado, de orientandos meus, bem como novas inúmeras publicações em
periódicos nacionais e internacionais.
Quando
voltei dos EUA, em 1979, a partir de um dos trabalhos que lá havia realizado transformei-o
em tese de Doutorado, que foi apresentada no programa de pós-graduação da Disciplina
de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da EPM. Em resumo, passei
a ter um Mestrado em Gastroenterologia, um Doutoramento em Pediatria e um Doutorado
em Gastroenterologia.
Dos
meus 4 filhos, o mais velho é médico da universidade, hoje é diretor–administrativo
do hospital São Paulo, se envolveu com a parte de administração hospitalar. A
filha do meio é professora de inglês e atriz, a terceira é administradora de
empresas, mora
A
minha participação na administração, na estrutura burocrática da instituição,
foi, na verdade, uma coincidência, não foi nada previamente deliberado, foram
situações que se apresentaram e tudo foi transcorrendo naturalmente. Como sempre
tive grande envolvimento com as questões da estrutura universitária, galguei
vários degraus dentro da EPM. Em paralelo à atividade de ensino e pesquisa, política
e institucional, fui chefe dos residentes da Pediatria, posteriormente fui
eleito presidente da Comissão de Residência Médica da EPM, fui diretor da Associação
dos Docentes (ADUNIFESP), em seguida Presidente da mesma, depois fui chefe da Disciplina
de Gastroenterologia e a seguir do Departamento de Pediatria, fui Coordenador
da pós–graduação em Pediatria, e membro nato no Conselho Universitário, desde 1988,
quando me tornei Professor Titular, aos 44 anos, por concurso, com nota 10,0. Anteriormente,
em 1982, aos 38 anos havia prestado o concurso para Professor Titular de
Pediatria, fui vencido por outro colega Professor Calil Kairalla Farhat, por
centésimos de nota, ele obteve 9,92 e eu 9,88. Este desfecho, longe de me desanimar,
serviu de estímulo para seguir adiante em busca do meu objetivo maior, alcançar
o posto mais alto da hierarquia acadêmica.
Durante
muito tempo pensava quem poderia ser o próximo Reitor, nunca havia me passado
pela cabeça esta ideia, pois sempre via algum docente sênior com esta possibilidade.
A ideia da reitoria ocorreu quando a partir de um certo momento eu já não
conseguia distinguir com nitidez quem poderia ser o potencial candidato a substituir
o reitor Hélio Egydio. Uma certa tarde, como eu precisasse falar com o reitor
Hélio a respeito de algum tema ligado à UNIFESP, liguei para ele e fui lá conversar.
No meio da nossa conversa surgiu espontaneamente o assunto da sucessão, até aquele
momento ainda não havia a possibilidade da reeleição, perguntei quem ele
pensava para a sua sucessão. Ele, para minha surpresa, falou no meu nome, juntamente
com o de outras cinco pessoas.
Isso
aconteceu em fins de 1997. Eu perguntei para o reitor Hélio o que ele achava de
positivo e negativo nesses potenciais candidatos, ele disse que para mim faltava
o apoio do Departamento de Pediatria, ou seja, ser chefe do Departamento. Nunca
tinha sido chefe do Departamento de Pediatria, só da minha Disciplina, mas já que
era aquilo que faltava, fui em busca disso, para poder ser um potencial
candidato a Reitor. Em uma tentativa anterior havia perdido a eleição no Departamento
por um voto, mas na segunda, três anos depois ganhei por unanimidade, e três
anos depois fui reeleito, também por unanimidade. Entretanto, quando chegou a
época da eleição para Reitor, surgiu o advento da reeleição, e o reitor Hélio naturalmente
se candidatou, mas me convidou para ser seu vice. Aceitei este honroso convite,
não houve qualquer objeção por parte da comunidade acadêmica, nem tampouco surgiu
outro candidato, assim fui eleito para o quatriênio 1999-2003. Ao término deste
período candidatei-me para Reitor da UNIFESP para o mandato 2003-2007, fui eleito
com mais de 80% dos votos na comunidade e no CONSU.
Na minha
vida, a convivência entre docência, pesquisa e administração foi intensa,
sempre pendia entre um ou dois dos três. Num primeiro momento a questão da
administração era muito leve, pouca, a atividade entre docência e pesquisa eram
intensas. A partir do momento que fui para a chefia do Departamento de Pediatria,
a minha atividade de docência diminuiu bastante, a de pesquisa sofreu um abalo.
Entretanto, quando fui para a Vice-reitoria deu para manter a atividade de
pesquisa, porque o trabalho de vice é tranquilo, só é chamado na ausência do
reitor. Durante o período que implantamos a pós-graduação na Pediatria, tive
uma atividade grande de pesquisa por muitos anos, fui o orientador com a maior produção
científica em Pediatria do país durante vários anos seguidos. Agora com a
reitoria ela diminuiu, mas ainda mantenho atividade de pesquisa, principalmente
com aquilo que construímos na Gastropediatria. Foi um processo de construção, progressivamente
as pessoas passaram a ter independência para irem crescendo e se desenvolvendo,
de tal forma que agora sou mentor dos trabalhos de pesquisa, oriento sobre o
projeto de pesquisa em si, depois de realizado, escrito, também reviso e
recomendo modificações, tenho uma atividade de pesquisador sênior, infelizmente
não dá mais para estar na bancada como fazia em passado recente. Aliás, devo salientar
que minha grande produção científica teve o reconhecimento nacional, porque em
2002, recebi a honraria da comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico,
na categoria de Grão-Mestre, na Classe de Comendador da Ordem, cuja condecoração
me foi entregue pessoalmente pelo Presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso, no Palácio do Planalto (Figuras 43-44-45).
Figura 43: Recebimento da comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico das mãos do presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Minha filha Walkyria está entre nós dois.
Figura 45: As comendas recebidas.
Recentemente,
em outubro, fui agraciado com nova honraria, a Ordem do Mérito Aeronáutico,
no Grau de Grande Oficial, a mais elevada categoria, por haver prestado
assinalados serviços à Aeronáutica Brasileira, outorgado pelo Presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva (Figuras 46-47).
Figura 46: Luciana e eu no dia da premiação da Ordem do Mérito Aeronáutico.
Figura
47: Momento solene da premiação.
Acredito
que deixei uma marca na pesquisa, primeiro construí uma equipe, pessoas que se engajaram
profundamente na constituição de uma Disciplina que hoje é a maior produção
científica do país na área, a Gastroenterologia Pediátrica, a liderança que nós
ocupamos por essa atividade, o reconhecimento da academia e dos pares em nível
nacional e internacional. Como consequência dessa liderança nacional e
internacional, fui eleito presidente do Congresso Mundial de Gastroenterologia
Pediátrica que será realizado ano que vem (agosto de 2008), em Foz do Iguaçu,
uma grande conquista. Quebramos tabus internacionais, isso só foi possível às
custas de um trabalho de base sólido, de reconhecimento científico. Do ponto de
vista da pesquisa em si, nós nos envolvemos numa linha de investigação que permitiu
uma série significativa de produção de conhecimentos para o mundo, porque ocorreu
conosco algo muito interessante, em especial na Gastroenterologia. Nos países onde
existem os problemas básicos que são diarreia, desnutrição, miséria, geralmente
não há alta tecnologia, enquanto nos países que têm alta tecnologia o problema
praticamente não existe. Por outro lado, nós temos um pouco de cada coisa, nós
não temos a tecnologia de última geração, mas temos uma boa tecnologia, e, ao
mesmo tempo, também temos a pobreza, então, nós pudemos associar o conhecimento
ao problema. Nós tivemos a oportunidade de descrever uma série de condições
clínicas que até então eram desconhecidas na área médica que estão relatadas no
livro que eu escrevi, em 1996, intitulado “Enteropatia Ambiental, uma consequência
do fracasso das políticas sociais e de saúde pública”.
Trata-se de uma entidade clínica existente devido aos problemas decorrentes da falta de saneamento básico, com consequências extremamente nefastas do meio ambiente sobre o trato digestivo, consequentemente sobre o indivíduo, seu estado nutricional, em suma, a contaminação ambiental e todas as suas peculiaridades indesejáveis. Esse livro é constituído por uma compilação de teses minhas e aquelas que orientei, em que estudo o ser humano, desde a favela, num macro–ambiente, até o microambiente intestinal, que é a bacteriologia, a ultraestrutura do intestino delgado, a partir da microscopia eletrônica, mostrando todo um caminho até chegar ao final de um ciclo vicioso, desde um ponto de vista social e médico, na área da saúde.
O
interesse pelo aspecto administrativo surgiu um pouco como consequência da minha
ida aos EUA, porque lá tive a oportunidade de travar conhecimento e entender como
funcionava a estrutura hospitalar, a questão profissional, diferentemente do
que ocorria na Escola, onde nós sempre tivemos uma visão amadorística da estrutura
administrativa e funcional universitária. Quando voltei dos EUA, passei a ter
essa visão, ser um Professor Universitário é a minha real profissão, por isso
decidi batalhar por ela, esta não é uma atividade secundária nem de valor menor,
ao contrário, é uma atividade altamente relevante para a ciência, pesquisa,
ensino, extensão, em suma para a soberania do país. Aprendi que se este não for
o foco central da atuação do Professor Universitário, a universidade vai ser de
alguma forma depreciada, não terá a valorização que merece. Isso ficou muito claro para mim lá nos EUA, no
hospital onde trabalhei, porque para o meu chefe Fima Lifshitz, aquilo era a vida
dele, ele era professor, pesquisador e trabalhava exclusivamente naquele
hospital, isso era sua atividade integral. Aprendi como eram as relações de
trabalho entre as pessoas, a administração, isso me interessou muito, mudou totalmente
minha forma de ver as coisas, nós tínhamos que batalhar para que a nossa profissão
fosse devidamente valorizada.
Depois,
em meados dos anos 80 surgiu uma oportunidade de extensão, fui trabalhar no Hospital
Humberto Primo, que passou a ser um modelo híbrido, um hospital de atenção pública,
mas sem deixar de ser privado, tornou-se uma organização público-privada sem fins
lucrativos. Na verdade, constituiu-se no embrião do modelo que hoje orienta as Organizações
Sociais. Fui liberado pela universidade para fazer parte desse projeto, fui administrar
o Departamento de Pediatria, tinha que apresentar resultados, fizemos muitos
exercícios de planejamento estratégico, aprendi muito com essa experiência. Quando
terminou o projeto piloto no Hospital Humberto Primo voltei para a Escola com
uma série de ensinamentos, uma visão aberta para novas perspectivas, todas elas
voltadas para a medicina, atividades de saúde e administração hospitalar.
Todas
as conquistas obtidas pela EPM ao longo destes 74 anos, que são incontáveis,
são referências para nós, porque na hora que algum membro da EPM ler a história
da instituição, a pessoa se identifica com ela. Ela passa a ter uma dívida de
gratidão e um compromisso histórico com os fundadores, porque foram indivíduos
que poderiam estar confortavelmente instalados em seus consultórios, ganhando
dinheiro atendendo seus pacientes privados, mas ao contrário, decidiram abraçar
uma causa heroica. Nesta época existia apenas uma Faculdade de Medicina no Estado
de São Paulo, a vida deles estava garantida, praticamente não havia concorrência,
mas eles remaram contra a maré, lutaram para construir e solidificar a EPM, sem
tirar nenhum proveito pecuniário com esta empreitada.
Também
acho que nada do que foi feito poderia acontecer em outra instituição, tinha que
ser na EPM. Justamente porque nós nascemos da luta, como o imigrante, que teve
que sobreviver a todas as adversidades do mundo desconhecido, sabendo que não
tinha caminho de volta, então, ele só podia ter uma perspectiva, a sobrevivência,
e, pela sobrevivência ele tinha que fazer o possível e o impossível. Tiramos
leite de pedra, essa sempre foi a história da instituição, de superação de obstáculos.
Por esta razão, entre muitas outras, estamos impregnados pelos nossos antecessores,
temos um compromisso de vida com eles, porque o indivíduo que foi professor da EPM
na época da sua fundação, em 1933, pagava mensalidade. O professor pagava
mensalidade para ensinar, isso precisa sempre ser repetido aos quatro cantos do
mundo, para que a instituição seja ainda mais respeitada, é o que procuro fazer
desde minha vida de aluno até o presente momento como docente. A EPM é a minha
vida, posso dizer isso tranquilamente. Devo tudo a duas coisas: ao futebol e a Medicina.
Ao futebol, que me deu todas as alegrias, paixão, a honra e a glória de vestir
a camisa da nossa Atlética, e a Medicina, que me deu o sucesso profissional, o
prazer de ser útil ao próximo, os conhecimentos, as viagens, a produção científica,
o reconhecimento dos meus pares.
Para o futuro, espero que os nossos sucessores nunca se esqueçam das origens, que eles sempre tenham em mente que a EPM foi a semente que possibilitou o nascimento e a expansão da UNIFESP. Desejo que a EPM seja sempre reverenciada e referenciada como a precursora de tudo aquilo que essa Universidade é e vai ser em breve futuro, tenho absoluta certeza disso, a UNIFESP ainda crescerá muito, muito...
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