quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Doença Celíaca Potencial e sua possível progressão para tornar-se ativa em crianças e adolescentes

Prof. Dr Ulysses Fagundes Neto

O número de agosto de 2019 da Revista Gastroenterology apresenta uma publicação de Renata Auricchio e colaboradores, intitulada: “Progression of Celiac Disease in children with antibodies against tissue transglutaminase and normal duodenal architecture”, cujo resumo abaixo encontra-se transcrito.  

Introdução

A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune provocada pelo glúten e suas prolaminas similares nos indivíduos geneticamente susceptíveis, caracterizada pela presença de uma combinação variável de manifestações clínicas, associada a anticorpos específicos, haplotipos HLA-DQ2 e/ou DQ8, e que se traduz por uma enteropatia com atrofia vilositária.  A intensidade da lesão intestinal pode variar desde atrofia vilositária total que é típica dos quadros mais marcantes, a alterações histológicas de menor monta ou mesmo ausentes. Na verdade, o termo Doença Celíaca Potencial (DCP) foi criado para identificar um subgrupo de pacientes caracterizado pela presença do anticorpo anti-transglutaminase (ATG) sérico, porém, com morfologia intestinal normal. Os pacientes com DCP podem ser assintomáticos e podem ou não evoluir para atrofia vilositária total.  Por esta razão, o manejo clínico destes pacientes é discutível. No que diz respeito aos pacientes portadores de DCP sintomáticos, a comunidade científica manifesta-se propensa a propor um ensaio terapêutico com uma dieta isenta de glúten. Não obstante, recentemente foi demonstrado que apenas aproximadamente metade desses pacientes, na realidade, apresentam uma melhoria clínica. Por outro lado, o manejo clínico dos pacientes assintomáticos, resulta ser mais complexo, posto que, considera-se em geral que a DCP poderia ser o primeiro degrau para o surgimento de uma enfermidade florida, e, nessa circunstância, uma dieta isenta de glúten poderia vir a ser prescrita de forma indiscriminada para todos os pacientes indistintamente. Entretanto, em um recente estudo demonstrou-se que somente 1/3 desses pacientes irão evoluir para atrofia vilositária em um espaço de tempo de 9 anos. Além disso, um outro terço, deixará de produzir os autoanticorpos. Desta forma, considerando-se os achados acima referidos, a prescrição de uma dieta isenta de glúten de forma indiscriminada para todos os pacientes poderia representar um tratamento abusivo.  Tudo indica ser evidente que a DCP é uma condição heterogenia, e, portanto, os pacientes devem necessitar um manejo personalizado. Infelizmente, até o presente momento, não há nenhum meio disponível para diferenciar, desde o início quais serão os pacientes que irão desenvolver atrofia vilositária daqueles que não apresentarão tal lesão.  Algumas investigações têm tentado identificar os fatores de risco envolvidos, tais como sexo, inflamação da mucosa no momento do diagnóstico e o perfil genético do paciente.  Entretanto, esses resultados somente podem ter um valor indicativo, e, consequentemente, não auxiliam o clínico a respeito da escolha de prescrever ou não uma dieta isenta de glúten para o paciente com DCP.

Objetivos

Este artigo analisa a maior coorte de pacientes com DCP e o mais longo seguimento clínico até então disponível, e visa fornecer um algoritmo preciso capaz de prever, baseado em fatores de risco no momento do diagnóstico, a probabilidade de desenvolver atrofia vilositária ao longo do tempo.

Métodos

Desenho do Estudo
Foram incluídas 340 crianças com idades compreendidas entre 2-18 anos, rastreadas pelo ATG devido a suspeição de DC, baseada nos sintomas clínicos, risco familiar, ou no diagnóstico de enfermidades associadas à DC. Os pacientes ingressaram no estudo, após a realização da biópsia de intestino delgado, com pelo menos dois testes consecutivos positivos para ATG, confirmados pelo anticorpo Antiendomisio positivo e dosagem de IgA normal, e arquitetura histológica duodenal normal, em todas as cinco amostras de biópsias analisadas, e, positivos para o complexo genético HLA-DQ2 e/ou DQ8.

Todas as crianças cujos sintomas eram sugestivos de DC, foram imediatamente submetidas a uma dieta isenta de glúten. Todos os pacientes assintomáticos remanescentes mantiveram-se recebendo uma dieta contendo glúten. A cada 6 meses todos os pacientes foram avaliados a respeito das condições clínicas e dos anticorpos, e a cada 2 anos foi realizada uma nova biópsia duodenal, sempre que não houvesse a ocorrência de sintomas antes deste período (Figura 1).

Resultados

Pacientes
Durante um período médio de seguimento de 60 meses (mínimo de 18 meses e máximo de 12 anos), 42 (15%) das 280 crianças desenvolveram atrofia vilositária durante a avaliação histológica bienal e 89 (32%) deixaram de produzir anticorpos: entres estes últimos, nenhum deles que realizou biópsia do intestino delgado desenvolveu atrofia vilositária. No geral, 59% (166/280) permaneceram como DCP aos 12 anos de seguimento (Figuras 2 e 3).


Figura 2A- Biópsia de intestino delgado revelando atrofia vilositária total e hiperplasia das criptas.


Figura 3A- Critérios de Marsh para o diagnóstico de DC.


Durante todo o período do estudo ocorreu o surgimento de dois agrupamentos de eventos no caso das crianças que desenvolveram atrofia vilositária, a saber: o primeiro deles entre 24/48 meses e o segundo em um intervalo de tempo de 96 /120 meses. Após 12 anos de seguimento a incidência acumulada de atrofia vilositária foi 58% em meninos e 39% em meninas, 43% no global. Na análise multivariada os fatores basais que mais fortemente se mostraram associados com o desenvolvimento de atrofia vilositária, foram os números dos linfócitos intraepiteliais gama/delta, seguidos pela idade e a presença homozigótica para o complexo genético HLA-DQB1*02. Na análise discriminatória esses fatores basais identificaram 80% das crianças que desenvolveram atrofia vilositária (Figura 4).


Conclusões

Esse estudo confirmou que a DCP é uma condição extremamente heterogenia, e não é necessariamente o primeiro passo para o surgimento de uma enfermidade florida; desse modo, uma dieta isenta de glúten não deve ser prescrita indistintamente para todos os pacientes que se enquadram nessa categoria clínica. Aspectos individuais, tais como: idade, perfil genético, infiltração da mucosa e inflamação no momento do diagnóstico, podem auxiliar na diferenciação de um sub-grupo de pacientes que poderá desenvolver atrofia vilositária ao longo do tempo.  Vale ressaltar que nesse estudo de longa duração envolvendo 280 crianças com suspeita de DC (baseando-se no anticorpo anti-transglutaminase e anti-endomisio) recebendo dietas contendo glúten, a incidência cumulativa para progressão de atrofia vilositária foi de 43% durante o período de 12 anos. Esse estudo permitiu identificar fatores que podem ser utilizados para apontar as crianças que apresentam maior risco de desenvolver atrofia vilositária.  Esta abordagem pode ser utilizada para determinar se crianças com suspeita de DC devem imediatamente iniciar uma dieta isenta de glúten ou serem rigorosamente monitoradas recebendo uma dieta normal.

Meus Comentários

Cada vez mais frequentemente o clínico que cuida de pacientes com a suspeita de apresentar DC vê-se envolvido no dilema do diagnóstico e do tratamento do paciente portador de DCP. Como conduzir estes casos? Poderemos prever quais pacientes irão evoluir para o surgimento florido da enfermidade no caso de serem mantidos em uma dieta contendo glúten? Correremos o risco de realizarmos sub-diagnóstico ou sobre-diagnóstico de DC nestes pacientes? Todos estes aspectos intrigantes que dizem respeito à DC são tratados neste artigo na tentativa de se buscar uma resposta para estas questões.

O sub-diagnóstico é um problema globalmente bem conhecido, e alguns fatores podem ser identificados, tais como, a ausência ou a presença de mínimos sintomas, a negligência em se testar grupos de alto risco, interpretação equivocada dos testes sorológicos, a obtenção inapropriada no número de amostras da biópsia duodenal, e, por fim, a interpretação equivocada das biópsias realizadas.

Por outro lado, o sobre-diagnóstico irá incriminar pacientes como supostamente portadores da DC, quando na realidade este diagnóstico não é verdadeiro. Como consequência deste equívoco diagnóstico, este grupo de indivíduos será submetido desnecessariamente a uma dieta isenta de glúten de forma permanente ao longo de toda a vida, o que inevitavelmente irá afetar sua qualidade de vida.

Considerando-se todos estes aspectos relevantes a respeito da DC o presente artigo traz informações extremamente importantes na abordagem desta enfermidade, que, ao contrário do que se pensava em tempos não muito remotos, não é rara no mundo ocidental, e cuja incidência é de pelo menos 1:100 indivíduos.

Referências Bibliográficas
1-   Auricchio R e, cols. Gastroenterology 2019; 157:413-20.
2-   Nandile R e cols. J Pediatr GAstroenterol Nutr 2018; 66:654-56.
3-   Imperatore N e cols. Dig Liver Dis 2017; 49:878-82.
4-   Werkstetter KJ e cols. Gastroenterology 2017; 153:924-35.