quarta-feira, 27 de abril de 2022

Um esforço colaborativo para o desenvolvimento de medicamentos para Constipação Funcional e Síndrome do Intestino Irritável

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista JPGN publicou um artigo de revisão colaborativo da NASPGHAN, AGA e ACG, em agosto de 2021, intitulado “A collaborative effort to advance drug development in pediatric constipation and irritable bowel syndrome”, de Saps M. e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Introdução

Os Transtornos  Funcionais Gastrointestinais (TFGs) são caracterizados por sintomas gastrointestinais persistentes que não podem ser atribuídos a anormalidades estruturais e/ ou bioquímicas. Dentre os TFGs mais frequentes encontram-se a Constipação Funcional (CF) e a Síndrome do Intestino Irritável (SII), as quais, apresentam taxas de prevalência nas crianças de 14,01% e 5,1% respectivamente. Ambas as condições clínicas apresentam um considerável impacto na qualidade de vida de seus pacientes e famíliares, bem como nos custos dos cuidados à saúde. Os diagnósticos dos TFGs são clínicos e usualmente estabelecidos de acordo com os sintomas básicos seguindo os Critérios de Roma. Os critérios de Roma IV, dividem os transtornos por grupo etário, a saber: neonatos/pré-escolares e crianças/adolescentes: a CF pode surgir em ambos os grupos etários, enquanto a SII ocorre apenas nas crianças/adolescentes. Além de facilitar um diagnóstico mais acurado e seu respectivo manejo em ambos os transtornos, os Critérios de Roma tem sido também utilizados para definir a população de pacientes para investigação clínica.

O desenvolvimento de medicamentos para os TFGs em pediatria, tem enfrentado desafios ímpares no diagnóstico e na avaliação dos desfechos (Tabela 1). Crianças mais jovens podem ser incapazes de relatar os sintomas, ou podem ter dificuldades de descrevê-los acuradamente e de quantificá-los. Por essa razão, ensaios clínicos devem, de uma maneira geral, se fiar prioritariamente nos desfechos referidos pelo observador, do que nos desfechos relatados pelos próprios pacientes. Fatores do desenvolvimento e do comportamento, tais como, o estado do treinamento do controle esfincteriano, e da boa vontade dos tutores para a permissão para o uso dos banheiros do colégio, podem prejudicar a avaliação do desfecho. Vários ensaios clínicos com medicamentos para os TFGs, incluindo alguns deles que se mostraram eficazes em adultos, têm fracassado em demonstrar um benefício geral quando comparados com placebo, nos pacientes pediátricos.



Tendo em vista as dificuldades acima referidas, a FDA patrocinou uma oficina de trabalho em março de 2018, para discutir a melhor abordagem para avaliar os possíveis tratamentos para os pacientes pediátricos portadores de CF e SII, que a seguir será descrita.

Constipação Funcional (CF)

A CF é diagnosticada clinicamente, e, comumente não requer investigação mais profunda. Os Critérios Roma IV apresentam diferentes critérios diagnósticos para lactentes e pré-escolares do que para crianças e adolescentes, e ainda mais, alguns critérios somente são aplicáveis para as crianças que adquiriram controle esfincteriano. Essas definições de CF estão baseadas em uma combinação de fatores que incluem a frequência e as características da Motilidade da Evacuação (ME), incluindo sintomas tais como dor; entretanto, estudos recentes têm demonstrado que somente 39%  dos pacientes com CF, apresentam uma frequência anormal da ME, enquanto que 75% apresentam incontinência fecal funcional. A fisiopatologia de base da CF varia de acordo com o grupo etário. Nos pré-escolares, o comportamento de retenção tende a ser o fisiopatológico mais proeminente, enquanto que nas crianças e adolescentes, são mais frequentes a constipação devido ao trânsito colônico retardado e anormalidades nas dinâmicas da evacuação. As expectativas e reações dos pais são importantes, tais como reconhecimento dos efeitos da relutância das crianças em utilizar o vaso sanitário no colégio e o bullying resultante que as crianças sofrem quando ocorre incontinência fecal funcional. O tratamento precoce da CF é primordial para prevenir problemas crônicos. Os objetivos da terapêutica farmacológica incluem desimpactação e manutenção da regularidade de fezes pastosas. As diretrizes de manejo da ESPGHAN e NASPGHAN recomendam o Polietileno Glicol como terapêutica de primeira linha de tratamento para a CF em crianças. Estudos de longo prazo demonstram resolução da constipação em 60% das crianças, porém, entre 15 e 20% ainda continuam a apresentar sintomas intratáveis, e muitas delas ainda irão apresentar CF na vida adulta. Ensaios controlados realizados em crianças fracassaram em demonstrar superioridade dos novos agentes terapêuticos incluindo secretagogos e pró-cinéticos  que tem sido eficazes na CF em adultos. Este fato pode ser explicado devido a inclusão de uma população heterogenia com uma grande variação de idades, uma heterogeneidade de fisiopatologia de base causadora dos sintomas e os desfechos inapropriados para avaliar os benefícios terapêuticos.

Marcos regulatórios de interesse na CF

1-   Redução dos sintomas: em algumas situações a resolução de todos os sintomas pode não ser necessária para se concluir a eficácia de um determinado medicamento. No caso desta abordagem ser a selecionada os esforços devem ser dirigidos para determinar a quantidade mínima da melhoria clínica para ser considerada aceitável, para um determinado sinal ou sintomas.  

2-   Motilidade evacuatória espontânea: é aquela considerada ocorrer espontaneamente sem intervenção, ou aquela que ocorre nas próximas 24 horas após a administração de uma terapia de resgate.    

3-   Redução dos episódios de incontinência fecal funcional: este tópico trata-se de um marcador importante na avaliação de um avanço na melhoria das manifestações clínicas do paciente.

4-   Alívio na maioria dos sintomas incômodos mais importantes: a avaliação na redução dos sintomas incômodos mais importantes, deve necessitar a utilização de ferramentas de avaliação para cada sinal ou sintoma, e, também, levar em consideração determinados dados para auxiliar na avaliação de quanto  significativo foi o alívio do paciente.

 

Impacto da taxa de resposta ao placebo

Nos ensaios clínicos prévios envolvendo crianças, a resposta ao placebo, foi maior do que nos adultos, enquanto que a taxa de resposta a um tratamento ativo foi similar. Os participantes do painel concordaram que os ensaios clínicos envolvendo crianças necessitam ter tamanho amostral adequado para se contrapor aos altos efeitos do placebo. Recentemente, ensaios com prucalopride demonstraram que a despeito do grau de efeito ser similar em crianças e adultos, os resultados nos estudos pediátricos não se mostraram estatisticamente significativos, possivelmente devido a um tamanho amostral limitado.

 

Síndrome do Intestino Irritável com Constipação

Não há medicamentos aprovados pelo FDA para o tratamento da SII-C para as crianças. Inúmeros ensaios clínicos fracassaram em demonstrar benefícios em comparação com placebo, enquanto que outros não apresentaram uma eficácia comprovada para o tratamento da dor abdominal. O subcomitê de Roma recomenda para ensaios clínicos em pediatria, a elaboração de ensaios duplo cego, placebo controlado, com duração de pelo menos 4 a 6 semanas. É recomendado que os critérios de inclusão deve levar em consideração uma média de dor abdominal de intensidade de 3, dentro a avaliação de 0 a 10, em um  período de 1 a 2 semanas, para assegurar que a inclusão dos pacientes seja suficientemente significativa para poder haver uma real avaliação clínica e que os pacientes tenham no mínimo 8 anos de idade.

Marcos regulatórios de interesse na CF

1)   Frequência e intensidade da dor abdominal: os dados nos pacientes pediátricos com SII, sugerem uma boa correlação entre a intensidade e a frequência da dor, e, portanto, qualquer um destes aspectos é aceitável como índice mensurável. O painel concluiu que é importante comparar os desfechos entre pacientes que apresentam dor continua versus dor intermitente.

2)   Características das fezes: O painel discutiu sobre a inclusão das características das fezes (frequência e/ou consistência) como um indicador primário, posto que as fezes podem não afetar a qualidade de vida, quanto a dor abdominal; entretanto, levantou-se a hipótese de que para alguns indivíduos as características das fezes são mais importantes que a dor.

3)   Incapacidade funcional: ainda que haja desaparecimento da incapacidade funcional, o que é um importante objetivo do tratamento, uma determinada medicação deve ser eficaz para diminuir a dor. A incapacidade não é um marcador primário apropriado, posto que ela pode ser impactada por múltiplos fatores, alguns dos quais são improváveis de alterar uma resposta direta ao tratamento farmacológico.

Conclusões

Essa oficina de trabalho, identificou a necessidade da elaboração de novos desenhos de estudo, identificando marcos regulatórios específicos para os pacientes pediátricos, que possam apreender os aspectos mais importantes das doenças em crianças, as modificações nos critérios de elegibilidade para selecionar as populações mais apropriadas para serem estudadas, e as definições alternativas das respostas dos pacientes pediátricos portadores CF e SII. Um sumário integrado por desafios primordiais que devem ser discutidos em breve futuro estão apresentados na Tabela 2.




 

Meus Comentários

A Constipação funcional e a Síndrome do intestino irritável com constipação se constituem em Transtornos funcionais do trato digestivo extremamente desafiadores na Gastroenterologia pediátrica devido a sua elevada prevalência e as respectivas dificuldades diagnósticas e terapêuticas. Até o presente momento, foi possível depreender que esta oficina de trabalho, conduzida por experts de reconhecida competência internacional, trouxe mais dúvidas a serem esclarecidas do que alguma luz no fim do túnel. Este documento enfatiza a necessidade da elaboração de desenhos de estudo com validade científica para melhor esclarecer a fisiopatologia destes transtornos, e, ao mesmo tempo,  encontrar medidas terapêuticas de eficácia comprovada, que possam eliminar o sofrimento dos nossos pacientes, ou caso esse mister não seja possível, pelo menos minimizar os sintomas para que se possa oferecer uma melhor qualidade de vida aos nossos pacientes. Enquanto estas informações não estão disponíveis ao nosso alcance, resta-nos explicar aos pacientes e seus familiares que estamos frente a um problema que não apresenta riscos de complicação, posto que não há lesão orgânica palpável, e nos cabe propor medidas terapêuticas para abrandar a sintomatologia, para melhorar a qualidade de vida dos nossos pacientes.

Referências Bibliográficas

1-   Saps M. e cols – JPGN 2021;73:45-149

2-   Robin SG. e cols – J. Pediatr2018; 195:134-9

3-   Tabbers MM. e cols – JPGN 2014; 58:265-81