terça-feira, 27 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 3)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

Manifestações Clínicas

A DC pode afetar qualquer grupo etário e determinar uma multiplicidade de manifestações clínicas, isto é, apresenta um amplo espectro de sintomas que podem ser tanto digestivos quanto extra-digestivos, circunstância esta que provavelmente possa explicar um retardo no diagnóstico.

As formas de apresentação da DC são: 1) Clássica: neste caso predominam as manifestações digestivas e a consequente síndrome de má absorção; 2) Atípica ou Extra-digestiva: atualmente é a forma mais habitual de apresentação; 3) Silente ou Assintomática.

A)         Clássica
A forma clássica de apresentação da DC nas crianças consiste no surgimento de sinais e sintomas do trato digestivo que se iniciam entre os 6 e 24 meses de vida, depois da introdução do glúten na dieta. Nos quadros típicos os lactentes e pré-escolares apresentam queixa de diarreia crônica, anorexia, distensão abdominal, dor abdominal, ganho ponderal insuficiente ou mais frequentemente perda de peso, parada do ritmo de crescimento e vômitos (Figuras 14-15-16-17-18-19).
Figura 14- Paciente com forma clássica da DC caracterizada por diarreia crônica, hipotrofia da musculatura dos glúteos, distensão abdominal e extrema irritabilidade.

Figura 15- Aspecto clínico de uma paciente com DC e abaixo seu gráfico de crescimento.

Figura 16- Gráfico da paciente acima com DC evidenciando parada do ritmo de crescimento e perda de peso.

Figura 17- Fragmento de biópsia da mucosa do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária total, hiperplasia das criptas, e transformação cuboidal dos enterócitos.

 Figura 18- Gráfico de crescimento da paciente com DC mostrando total recuperação do ganho de peso e do crescimento, bem como do aspecto clínico.

Figura 19- Fragmento de biópsia do intestino delgado evidenciando vilosidades digitiformes e enterócitos cilíndricos. Relação vilosidade/cripta 4 a 5:1.

Desnutrição grave e até mesmo caquexia (Figura 20), podem ocorrer nos casos em que o diagnóstico é muito retardado. Alterações do comportamento, em especial irritabilidade intensa, costumam também estar presentes.

Figura 20- Pacientes com DC por ocasião do diagnóstico em franco estado de caquexia.

A forma Clássica de apresentação passou a ser considerada como “a parte visível do iceberg da DC”, tamanho o grau de variabilidade das manifestações clínicas desta enfermidade. É importante assinalar que nas crianças maiores, escolares e adolescentes, as manifestações clínicas costumam ser mais sutis, o que pode ser um fator de retardo no diagnóstico. Os sintomas digestivos podem incluir dor abdominal, diarreia, e até mesmo constipação, flatulência e excessiva produção de gás. Cerca de 2 a 8% dos escolares e adolescentes geralmente apresentam baixa estatura e retardo constitucional na puberdade. Ter o conhecimento da curva de crescimento pondero-estatural é uma informação da mais alta valia para se poder verificar se ocorreu parada do ritmo de crescimento ou mesmo diminuição da velocidade do crescimento, a qual resulta em uma horizontalização na curva do crescimento.

Atualmente, raros são os pacientes que apresentam as manifestações daquilo que se convencionou denominar de “crise celíaca”, a qual era vista com maior frequência em passado não muito remoto. A “crise celíaca” se caracteriza por diarreia aquosa explosiva, distensão abdominal importante, hipotensão, letargia e desidratação com grave associação de distúrbios eletrolíticos, em especial hipopotassemia. Este tipo de manifestação, de instalação aguda, coloca o paciente em alto risco de vida e tem sido responsável pela causa direta de morte desta enfermidade.

B)         Atípica ou Extra-Digestivas

Neste tipo de apresentação da DC os sintomas digestivos são escassos ou ausentes com predomínio das manifestações extra-digestivas, a saber: anemia, baixa estatura, anorexia, osteoporose, alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da puberdade, constipação.

Na Tabela 1, abaixo, estão discriminadas as principais manifestações extra-digestivas da DC

A) Manifestações que apresentam grande ou moderada evidência de DC
B) Manifestações que apresentam evidência menos intensa
Dermatite herpetiforme
Hipoplasia do esmalte dentário (dentição definitiva)
Osteopenia/Osteoporose
Baixa estatura
Puberdade retardada
Anemia ferropriva refratária a tratamento oral com ferro
Constipação
Hepatite
Artrite
Epilepsia com calcificações occipitais

Na Tabela 2, abaixo, estão discriminadas associações que apresentam prevalência aumentada com DC
Diabete tipo 1
Tireoidite autoimune
Síndrome de Down
Síndrome de Turner
Síndrome de Williams
Deficiência seletiva de IgA
Parentesco de primeiro grau

Há fortes evidências de que a Dermatite Herpetiforme representa a manifestação dermatológica da DC (Figura 21), posto que a maioria destes pacientes também apresenta concomitantemente alterações morfológicas da mucosa intestinal compatíveis com a DC, mesmo na ausência de manifestações gastrointestinais. Tanto as lesões de pele quanto a morfologia da mucosa intestinal são reversíveis com a utilização de uma dieta isenta de glúten. Raramente ocorre durante a infância e tem sido descrita quase que exclusivamente em adolescentes e adultos.

Figura 21- Lesões vesiculosas típicas de Dermatite herpetiforme no tronco de paciente adulto.

Defeito do Esmalte Dentário envolvendo a dentição definitiva tem sido descrito em cerca de 20% a 70% das crianças com DC, podendo mesmo ser a primeira manifestação da enfermidade (Figura 22); portanto, nestes casos, a suspeita diagnóstica de DC deve ser primariamente levantada pelo dentista.

Figura 22- Alterações do esmalte dentário em paciente com DC.

Artrite envolvendo o esqueleto axial e periférico tem sido relatada em até 25% dos casos de DC; a artrite tem sido descrita como aguda e não erosiva que geralmente cede com a introdução de dieta isenta de glúten.

Osteoporose e diminuição da densidade mineral óssea têm sido relatadas em pacientes com DC não tratada, as quais se revertem com o uso de dieta isenta de glúten.

Baixa estatura pode ser uma das formas de apresentação da DC, tendo sido identificada em 8% a 10% dos pacientes.

Anemia por deficiência de ferro, refratária ao tratamento por via oral, é a causa mais frequente de manifestação não digestiva da DC; cerca de 8% a 11% das causas inexplicáveis de anemia ferropriva associadas ou não à deficiência de ácido fólico se devem a DC.

Afecções neurológicas e psiquiátricas incluindo depressão, ansiedade, irritabilidade, neuropatia periférica, ataxia cerebelar, enxaqueca e epilepsia devido a calcificações intracranianas (Figura 23) têm sido descritas em associação à DC. Essa série de problemas neurológicos têm sido atribuídos à DC em adultos e em um menor número nas crianças. A DC pode causar calcificações occipitais e epilepsia de difícil controle. Estes pacientes, em geral, costumam ser resistentes ao tratamento com anti-convulsivantes, mas podem se beneficiar com a introdução de uma dieta isenta de glúten depois do começo das crises convulsivas.

A associação com ataxia cerebelar está bastante reconhecida em adultos levando à criação do termo “ataxia glúten induzida”.

Figura 23- Imagem de calcificações occipitais características da DC.

C)         Silente ou Assintomática

Neste caso os pacientes não costumam apresentar quaisquer sintomas, porém, apresentam sorologia positiva e atrofia vilositária na mucosa duodenal. Nesta circunstância, a DC é detectada em estudos populacionais, em familiares de pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda, naqueles pacientes que foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia vilositária da mucosa duodenal.

Os Marcadores Sorológicos: os testes laboratoriais que permitiram desvendar a parte não visível do “iceberg” da Doença Celíaca

Embora a biópsia do intestino delgado ainda seja considerada absolutamente necessária para a confirmação diagnóstica da DC, a introdução dos testes sorológicos, a partir da década de 1980, trouxe uma enorme contribuição para identificar quais indivíduos devem ser submetidos a este procedimento diagnóstico. Além disso, esses testes passaram também a ser utilizados para rastreamentos populacionais o que possibilitou desvendar o que se convencionou designar como a porção submersa do “iceberg” da DC. A partir da investigação pioneira conduzida por Catassi e cols., em 1996, acima descrita em maiores detalhes, inúmeras outras investigações epidemiológicas populacionais passaram a ser realizadas nos mais diversos países, inclusive no Brasil, as quais demonstraram cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade rara, mas sim, muito ao contrário, trata-se de um problema de saúde pública universal (Tabela 3).

Tabela 3- Prevalência da DC em diversos países, inclusive no Brasil.

Os testes laboratoriais comercialmente disponíveis incluem os anticorpos anti-gliadina IgA e IgG (AGA IgA e AGA IgG), anti-gliadina IgA e IgG deamidada, anti-reticulina IgA (ARA), anti-endomíseo IgA (EMA) e anti-transglutaminase tecidual IgA e IgG (ATTG).

A sensibilidade e a especificidade destes testes sorológicos estão discriminadas na Tabela 4.

Tabela 4- Sensibilidade e Especificidade dos principais marcadores sorológicos para DC.

Dentre os vários marcadores sorológicos disponíveis atualmente, os mais utilizados são o EMA e o ATTG, porque apresentam as mais altas taxas de sensibilidade e especificidade.

Estudos populacionais com doadores de sangue têm-se constituído em uma casuística muito frequentemente utilizada pelos pesquisadores em virtude da facilidade de se utilizar o sangue estocado. Ricardo Palmero Oliveira, pesquisador da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e colaboradores (European Journal of Gastroenterology and Hepatology 19: 43-9, 2007), realizaram um estudo com 3.000 candidatos a doadores de sangue para determinar a prevalência da DC em São Paulo com o emprego do ATTG e confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado. O teste sorológico resultou negativo em 95,4% (2861/3000), mostrou-se fracamente positivo em 3,1% (94/3000) e positivo em 1,5% (45/3000) dos indivíduos. Dentre os 94 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG fracamente positivo 91 eram assintomáticos, 1 apresentava queixa de constipação e dor abdominal e 2 queixavam-se de dor abdominal. Dentre os 45 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do ATTG positivo 46,7% (21/45) concordaram em realizar a biópsia do intestino delgado. Na Tabela 5 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 5- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Na Tabela 6 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 6- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.

Na Tabela 7 estão discriminadas as manifestações clínicas que podem estar associadas à DC, mostrando que indivíduos da população geral que apresentam sintomas compatíveis com DC têm maior probabilidade de serem portadores da enfermidade.

Tabela 7- Manifestações clínicas associadas à DC.

Dentre os indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado confirmou-se o diagnóstico de DC em 66,7% (14/21) deles, ou seja, a prevalência da DC nesta população revelou ser de 1:214 indivíduos. Por outro lado, caso todos os indivíduos que apresentaram dosagem elevada do ATTG e que se recusaram a realizar a biópsia do intestino delgado (24/45), tivessem também se submetido ao referido procedimento, e considerando-se que o ATTG revelou-se falso positivo em 33,3% dos indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado e que confirmaram ser portadores da DC, a prevalência seria maior, porque se poderia especular que 66,7% (16/24) dos indivíduos que não realizaram a biópsia de intestino delgado seriam também portadores de DC. Neste caso, ao acrescentarmos mais 16 indivíduos aos 14 com diagnóstico de DC confirmado, totalizaríamos 30 dos 3000 candidatos a doadores de sangue no grupo com DC. Desta forma, então, a prevalência da DC em São Paulo passaria a ser de 1:100 indivíduos, portanto, tão elevada quanto à verificada em outros países, em especial na comunidade europeia.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 2)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

Histórico (Continuação)

É importante assinalar que após esta primeira descrição da DC, muitos outros casos até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose e/ou problemas de ordem socioeconômica vieram também a ser diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão elevada quanto aquela descrita nos outros países do mundo ocidental. 

No final dos anos 1980, um grande estudo multicêntrico realizado na Itália, levando-se em consideração estritos critérios clínicos e laboratoriais pode-se estabelecer com 95% de segurança que o diagnóstico de DC poderia ser estabelecido com apenas 1 biópsia de intestino delgado. Este achado conduziu a ESPGHAN à publicação, em 1990, de novos critérios de conduta para o diagnóstico da DC, utilizando os marcadores sorológicos positivos e apenas 1 biópsia de intestino delgado.   

No início dos anos 2000 a DC passou a ser universalmente considerada um exemplo de uma enfermidade autoimune associada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8 e o auto anticorpo até então desconhecido revelou-se ser o anticorpo anti-transglutaminase. Nas figuras abaixo estão representadas a molécula do HLA, a predisposição genética e sua frequência na população geral.







Epidemiologia

No passado, há cerca de 40 anos a DC era considerada uma enfermidade rara que afetava majoritariamente indivíduos de origem europeia que usualmente se caracteriza pelo aparecimento nos dois primeiros anos de vida. Naquela ocasião o diagnóstico baseava-se inteiramente no surgimento de sintomas típicos de má absorção, com diarreia crônica e perda de peso, cuja comprovação ocorria através da biópsia do intestino delgado. Entretanto, mais recentemente, a partir da década de 1980, com a disponibilidade dos marcadores sorológicos, o rastreamento da DC pode ser inicialmente realizado utilizando-se estes testes, os quais apresentam elevadas taxas de sensibilidade e especificidade, tais como os anticorpos anti-endomíseo e o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com o advento desses métodos rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um significativo aumento no conhecimento da DC, o que possibilitou, por sua vez, também, que se estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas da DC, evidenciando outras variedades sintomáticas, e não mais apenas aquelas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita também associada com outras múltiplas enfermidades autoimunes, como por exemplo, tireoidite autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de uma ocorrência aumentada de DC em crianças portadoras de dermatite herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência de IgA, síndrome de Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau dos pacientes portadores de DC. Uma série de estudos tem demonstrado que a prevalência da DC pode estar presente também entre 5 a 13% dos irmãos dos pacientes. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos, a prevalência da DC entre as crianças de dois a quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000 crianças, ou aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças (Figura 11).


Figura 11- Prevalência da DC em países da Europa e nos Estados Unidos.

No Brasil, contrariamente às previsões do passado, a prevalência da  DC, à semelhança dos países da Europa e dos Estados Unidos, embora com variação na dependência geográfica dos estudos realizados, também se configura com níveis compatíveis como um problema de saúde pública a ser devidamente enfatizado (Figura 12).


Figura 12- Prevalência da DC em algumas regiões brasileiras.

Um dos mais importantes estudos de rastreamento populacional foi realizado por um grupo de pesquisadores liderados por Carlo Catassi, em 1996, na Itália, para comprovar que a prevalência da DC representa um importante problema de saúde pública, cujo resumo pode ser lido a seguir:



Objetivos:

Estudos recentes sugerem que a DC é um dos transtornos crônicos mais comuns na Itália. Os objetivos deste estudo multicêntrico foram: a) estabelecer a prevalência da DC no âmbito nacional; b) caracterizar o espectro clínico da DC na Itália.

Pacientes e Métodos:

15 centros rastrearam 17.201 estudantes com idades que variaram de 6 a 15 anos (68,6%) da população elegível por meio da determinação do anticorpo antigliadina (AGA) IgG e IgA; 1289 (7,5%) estudantes resultaram positivos para IgG e/ou IgA-AGA, e foram convocados para um segundo nível de investigação; 111 deles apresentaram critérios para a realização da biópsia do intestino delgado: IgA-AGA positivo e/ou anticorpo antiendomisio (AEA) positivo ou IgG-AGA positivo com deficiência de IgA.

Resultados:

A biópsia do intestino delgado foi realizada em 98 dos 111 estudantes. DC foi diagnosticada em 82 indivíduos (75 comprovados por biópsias, e 7 não submetidos à biópsia mas com associação AGA e AEA positivos). A maioria dos pacientes com DC detectados pelo rastreamento apresentavam baixo grau de intensidade da enfermidade associados com uma diminuição da qualidade de vida biopsíquica. A prevalência global de DC foi em 5,44 x 1.000 (95% IC 4,57-6,44), 1:184 indivíduos. A relação entre os casos conhecidos de DC para os não diagnosticados foi de 1:7.

Conclusões

Estes achados confirmam que, na Itália, a DC é uma das mais frequentes enfermidades crônicas evidenciando um vasto e heterogênico espectro clínico. Muitos casos de DC permanecem não diagnosticados ao menos que sejam ativamente pesquisados (Figura 13). 


Figura 13- Imagem simbólica da prevalência da DC como a parte invisível do iceberg.

Este estudo pioneiro serviu de modelo para que inúmeras outras pesquisas epidemiológicas populacionais passassem a ser realizadas nos mais diferentes países, inclusive no Brasil. Estas novas pesquisas têm demonstrado cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade rara, mas sim, muito ao contrário, tratar-se de um problema de saúde pública universal. As apresentações Clássicas da DC têm se tornado cada vez menos frequentemente relatadas em todas as regiões do globo terrestre. As formas Atípicas e Silentes têm representado a maior prevalência da DC nestes últimos anos, desnudando, portanto, os 2/3 da parte submersa do “iceberg” celíaco. Esforços devem continuar a serem dedicados para trazer à luz esta maior porção da DC, que afeta igualmente crianças e adultos.  

Em resumo, a partir da disponibilidade dos marcadores sorológicos altamente sensíveis e específicos, inicialmente com os anticorpos antigliadina, e posteriormente com os anticorpos antiendomiseo e antitransglutaminase pode-se afirmar que:

 1) a prevalência da DC é muito maior do que aquela previamente imaginada, devido principalmente a alta taxa de casos clinicamente atípicos ou silentes;

2) a DC apresenta uma distribuição universal no mundo ocidental em virtude do consumo disseminado de glúten e da predisposição genética relacionada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8;

3) a DC é um transtorno digestivo frequente com prevalência aproximada de 1:100 indivíduos de origem caucasiana, tanto em crianças como em adultos, e que pode se manifestar por diferentes formas clínicas de expressão.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 1)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune decorrente da intolerância permanente ao glúten da dieta contido no trigo, centeio e cevada. A DC pode surgir em qualquer momento da vida nos indivíduos geneticamente susceptíveis que têm por hábito alimentar o consumo dos cereais que contém glúten. Trata-se de uma enfermidade de alta prevalência no mundo ocidental afetando aproximadamente 1 em cada 100 indivíduos, cujos sintomas apresentam um elevado grau de variabilidade.

Esta enfermidade apresenta uma característica peculiar, porque, para ser desencadeada associa um fator ambiental, o glúten, a outro genético, o complexo HLA DQ2/DQ8. 

Fator ambiental (glúten) + Genético (HLA DQ2/DQ8)

Na figura 1 abaixo estão representadas a evolução da raça humana desde seu surgimento há 2,5 milhões de anos até os dias atuais e suas respectivas modificações quanto ao seu comportamento social e seus hábitos alimentares. Depreende-se deste esquema que até há 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, portanto, Não existia a DC. A partir das mudanças dos hábitos das sociedades humanas que passaram, de atividades coletoras/caçadoras e costumes nômades, a viver em comunidades sedentárias, durante o período Neolítico, deu-se início à revolução da agricultura como parte essencial na produção e consumo de alimentos. Os cereais passaram, então, a ser cultivados de forma extensiva devido à sua alta qualidade nutricional. Na figura 1 abaixo, também estão representadas a família das Gramíneas e suas respectivas subdivisões até a Tribo das Hordaceas, a qual engloba o trigo, a cevada e o centeio.

Figura 1- Representação esquemática da evolução do ser humano e ocultivo dos cereais.

O glúten do trigo é uma mistura proteica heterogênea elástico-viscosa solúvel em álcool de gliadinas e gluteninas. As gliadinas fazem parte de um grupo de proteinas vegetais denominadas prolaminas, as quais apresentam uma elevada concentração do amino-ácido prolina. As prolaminas encontram-se nos cereais e recebem diversos nomes de acordo com seu respectivo cereal, a saber: gliadinas no caso do trigo, hordeinas no caso da cevada e secalinas no caso do centeio. Estas proteínas, em geral, somente são solúveis em soluções alcoólicas.  

A viscosidade e a elasticidade são propriedades naturais dos elementos proteicos do glúten; a gliadina é uma proteína bastante extensível, mas pouco elástica, responsável pela ductibilidade e coesividade, enquanto que a glutenina é o polímero responsável pela elasticidade da estrutura. A complexa mistura dessas duas cadeias proteicas longas através de pontes de dissulfito com água (através as pontes de hidrogênio) resulta na formação de uma massa com propriedades de coesão e viscoelasticidade, onde o glúten retém a água nos interstícios das cadeias proteicas, conforme a representação da figura 2.

Figura 2- Representação esquemática da estrutura química do glúten.

As propriedades elástico-viscosas são essenciais para a formação da massa da farinha de trigo e são responsáveis por dar ao pão sua peculiar textura e sabor. Em virtude destas propriedades específicas o glúten é largamente utilizado na indústria alimentícia, não somente em produtos que estão diretamente associados ao trigo, tais como, pães, biscoitos e macarrão, mas também em alguns outros, de forma oculta, como por exemplo, ingredientes de molhos, sopas instantâneas e inclusive medicamentos. Uma consequência direta desta alta prevalência na dieta, faz com que a ingestão de glúten embutido nos alimentos, no mundo ocidental, seja elevada, ao redor de 15 a 20 gramas por dia.

A figura 3 representa a estrutura do grão do trigo e todos os seus componentes químicos. O endosperma é a fonte nutritiva para a planta durante seu crescimento e tem por base amido e semolina, e proteínas de depósito, entre elas o glúten, frutanos, glicolípides, fosfolípides, minerais e vitaminas. O farelo é a cobertura externa fibrosa do grão e é a maior fonte de polissacarídeos desprovida de amido (fibra). O germe é a parte do grão que irá brotar a nova planta. Ele contém proteínas metabólicas, tais como aglutininas do germe do trigo e inibidores da amilase/tripsina, triglicerídeos, polissacarídeos, bem como minerais e vitaminas.

Figura 3- Representação esquemática do grão de trigo.

A massa proteica do trigo é composta por 80% de glúten (68% de gliadina e 32% de glutenina), 13% de globulina e 7% de albumina. Cada variedade de trigo expressa múltiplas gliadinas (, ϒ, Ѡ) que são ligadas a gluteninas de baixo e de alto peso molecular.

As variedades modernas de trigo contêm 3 genomas completos que codificam gliadinas e gluteninas. Até 100 proteínas diferentes de glúten podem estar presentes em uma simples variedade de trigo, e, portanto, muitas delas podem estar envolvidas na patogênese da DC. Como exemplo, na figura 4 está representado o mapeamento genético da gliadina.

A gliadina apresenta o seguinte mapeamento, como se lê abaixo: vermelho – efeito citotóxico; amarelo – atividade imunomoduladora; azul – liberação da zonulina e permeabilidade intestinal; verde – liberação de IL8 na DC.


Figura 4- Representação esquemática do mapeamento genético da gliadina.

Histórico

A DC foi inicialmente relatada por Areteu da Capadócia, no século I da era cristã. Areteu descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência no sexo feminino e a maior probabilidade de que crianças viriam a ser afetadas. Areteu propôs a denominação desta enfermidade de “koiliakos” que em grego significa “ventre abaulado”, pelo aspecto clínico frequentemente observado nos estágios mais avançados da forma clássica da enfermidade, conforme pode ser comprovado na figura 5.   

Figura 5- Aspecto clínico da manifestação clássica da DC.

Entretanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra a descrição do quadro clínico clássico da DC nos tempos modernos, em uma aula para estudantes de Medicina intitulada “On the celiac affection”, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente entre 1 e 5 anos”. Além da descrição detalhada do quadro clínico da DC, Gee afirmava que “se porventura pudesse haver cura para a DC, esta deveria vir através da dieta, e que a permissão para a ingestão de farináceos deveria ser escassa”. Gee também observou que “uma criança portadora de DC que havia sido alimentada exclusivamente com os melhores mexilhões holandeses diariamente, desenvolveu-se maravilhosamente bem, mas que havia sofrido recidiva da enfermidade quando a temporada dos mexilhões se extinguiu”. Desta forma, Gee pode documentar a melhoria clínica do paciente utilizando-se uma dieta isenta de glúten e o surgimento da recidiva após a reintrodução do glúten na dieta da criança.

 Entretanto, apesar desta descrição de Gee, durante mais de 60 anos a etiologia da DC permaneceu desconhecida apesar das inúmeras hipóteses etiológicas levantadas pelos investigadores para explicar sua causa, assim como as mais variadas tentativas frustrantes de tratamento. Por exemplo, Shultz, em 1904, atribuia a uma alteração da flora putrefativa intestinal a responsável pela DC, enquanto que, Herter e Host, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar. Por outro lado, Henfner, em 1909, considerou que a DC se devia a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano para seu tratamento. Na década de 1920, o médico alemão Sydnei Hass revolucionou o tratamento dietético propondo algo inédito à época, ou seja, o uso de uma dieta de bananas, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais. Esta proposta terapêutica chamou a atenção por ter baixado de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e, por isto, tornou-se muito recomendada durante algumas décadas. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo da diarreia após a ingestão de alimentos contendo amido, pois a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos contendo biscoitos, pães e farináceos. Parsons, ainda em 1932, ao fazer a revisão de 94 casos de DC ocorridos durante a infância reconheceu que as crianças enquanto recebiam aleitamento natural exclusivo não apresentavam sintomas sugestivos da DC, o que somente viria a ocorrer após a introdução dos alimentos do desmame. Afirmava, também, que a DC podia afetar crianças e adultos, e, chamava a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Luel e Campos, em 1934, descreveram as alterações radiológicas presentes na DC, tais como, motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com desaparecimento do seu pregueado característico e a nítida fragmentação da coluna de bário. 

No entanto, deveu-se ao pediatra holandês Willem Karen van Dicke a comprovação do efeito deletério do trigo, ao demonstrar que sua fração proteica, o glúten, em especial a gliadina, se constitui no agente etiológico provocador da DC. Dicke buscava incessantemente o agente causador da DC desde o início dos anos 1940, em sua clínica em Ultrecht, mas foi somente em 1950 que este pesquisador conseguiu comprovar, na apresentação de sua tese de doutoramento, de forma definitiva, que o trigo é o agente causador da DC. Dicke observou que no período da Segunda Guerra Mundial (1939-45), durante a ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão e outros derivados do trigo, paradoxalmente à sua expectativa, as crianças portadoras de DC apresentaram uma nítida melhoria clínica. Por outro lado, Dicke, para sua surpresa, notou também, que após o término da guerra quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, inclusive os cereais, como o trigo, estas mesmas crianças vieram a apresentar novamente os sintomas da DC e deterioração clínica evidente. Foi a partir destas observações que Dicke finalmente pode concluir que o trigo era o fator deletério causador da DC, mesmo sem ainda dispor da possibilidade de realização da biópsia duodenal e consequentemente comprovar as alterações morfológicas características da DC. Em 1954, Dicke e Charlotte Anderson, trabalhando em Birminghan, Inglaterra, descreveram a lesão histológica da mucosa intestinal da DC e confirmaram que o tratamento deveria ser apenas dietético com a introdução de uma dieta isenta de glúten.

Uma grande conquista para o diagnóstico da DC ocorreu em meados da década de 1950 quando Margot Shiner descreveu um equipamento para a realização da biópsia duodenal e publicou o resultado desta novidade em um paciente portador de DC na revista Lancet, em 1956 (Figura 6).

Figura 6- O grande avanço que Margot Shiner introduziu para o diagnóstico histológico da DC.

Outro grande avanço para o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi neste período de tempo que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas esposas poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em 1963, no Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de trabalho para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal ele desenvolveu juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos invasivo que o de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal, o qual passou a ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A partir da introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias de intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta nova técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época, pois, passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do intestino delgado tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro para o diagnóstico da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler” com o orifício de abertura lateral que obtém o fragmento de mucosa intestinal e parte do procedimento de biópsia.    
Figura 7- Cápsula de Crosby-Kugler.


Figura 8- Procedimento da realização da biópsia de intestino delgado.

Nesta ocasião alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber: 1- que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma indiscutível e facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado; 3- a disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias do intestino delgado e com isto possibilitar o início da solução do mistério da patogênese da DC.

No nosso meio, após minha especialização no Policlínico Alejandro Posadas em Buenos-Aires, em 1973, aonde tive a possibilidade de reconhecer a existência da DC e desenvolver a experiência no seu manuseio, em 1974, ao retornar à minha prática no Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, descrevemos o primeiro caso com documentação completa da DC. Nas figuras 9 e 10 abaixo, podem ser observadas as diferentes fases do nosso paciente antes, durante e após o tratamento.


Figura 9- Paciente antes do tratamento no momento do diagnóstico e após o início da dieta isenta de glúten com comprovação diagnóstica pela realização da biópsia de intestino delgado.


Figura 10- Paciente após alguns meses em dieta isenta de glúten em comparação com o momento do diagnóstico.