sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O teste de provocação com glúten é realmente necessário para o diagnóstico da Doença Celíaca nas crianças menores de 2 anos?

Recentemente no número de Maio de 2009, do Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, foram publicados 2 trabalhos bastante interessantes que buscam esclarecer alguns aspectos polêmicos da Doença Celíaca e que, portanto, merecem ser apresentados como algo de notória importância, muito embora ainda possam gerar inúmeras futuras discussões.

O segundo deles versa a respeito da desnecessária realização do teste de provocação com glúten para a confirmação diagnóstica de doença celíaca em crianças menores de 2 anos (Wolters e cols., JPGN 48:566-70,2009).

Os critérios diagnósticos para a Doença Celíaca, como uma afecção permanente, foram estabelecidos pela primeira vez em 1969 (Arch Dis Child 1979;54:783-6)) e deveriam preencher os seguintes requisitos: 1) atrofia vilositária total ou sub-total da mucosa jejunal na vigência de dieta contendo glúten; 2) uma nítida recuperação da estrutura vilositária da mucosa jejunal quando o paciente é submetido a uma dieta isenta de glúten; 3) agravo da lesão vilositária da mucosa jejunal após teste de provocação com glúten. Entretanto, em 1990, estes critérios foram revisados porque a obrigatoriedade rotineira do teste de provocação passou a ser questionada. A revisão dos critérios diagnósticos iniciais deveu-se em parte a um importante trabalho de pesquisa realizado por Guandalini e cols., (Arch Dis Child 1989;64:1320-4)os quais estudaram 2523 pacientes que foram diagnosticados sob estrita aderência ao protocolo inicial. Os autores constataram que apenas um percentual muito baixo de pacientes (~5%, 123/2523), após terem sido submetidos ao teste de provocação com glúten, tiveram outro diagnóstico estabelecido, tal como alergia à proteína do leite de vaca e intolerância transitória ao glúten. A idade média destes pacientes nos quais a Doença Celíaca não foi confirmada era de 8 meses. Como é do conhecimento geral, outras causas de enteropatia grave podem estar presentes na faixa etária dos lactentes, então, por este motivo, a revisão dos critérios para o diagnóstico da Doença Celíaca passou a recomendar a realização do teste de provocação com glúten somente nas crianças menores de 2 anos de idade. Desta forma, o teste de provocação com glúten deixou de ser obrigatório em crianças acima dos 2 anos e em adultos.

Além das inúmeras inconveniências de se realizar o teste de provocação com glúten, posto que a reintrodução do glúten na dieta pode causar inúmeros sintomas totalmente indesejáveis ou mesmo não provocar quaisquer sintomas e, por outro lado, como a confiabilidade nos testes sorológicos aumentou de forma altamente significativa, a recomendação rotineira da realização do teste de provocação com glúten, em crianças menores de 2 anos, também passou a ser questionada. Entretanto, estas considerações teóricas necessitam um suporte científico para que possam ter validade, na prática diária, esta alteração de conduta. Baseados nestas considerações, os autores investigaram os resultados do teste de provocação com glúten em crianças, cuja idade era inferior a 2 anos no momento do diagnóstico da Doença Celíaca, para determinar se acaso a proposta de se abandonar a realização do teste de provocação com glúten também poderia ser aceita para este grupo etário.
Pacientes

Os autores analisaram retrospectivamente os dados clínicos dos pacientes que eram menores de 2 anos quando realizaram a biópsia jejunal inicial, cuja suspeita principal era Doença Celíaca, entre 1993 e 2004. Todos os pacientes apresentavam atrofia vilositária total da mucosa jejunal à biópsia inicial. Todos os pacientes que realizaram o teste de provocação com glúten foram identificados.

Uma segunda biópsia jejunal foi realizada imediatamente antes dos pacientes iniciarem o teste de provocação com glúten. Após pelo menos 3 meses dos pacientes estarem recebendo dieta contendo uma quantidade significativa de glúten foi realizada a terceira biópsia. O diagnóstico definitivo de Doença Celíaca foi estabelecido quando mucosa jejunal revelou uma atrofia vilositária sub-total ou total (Marsh IIIa ou maior) (Figura 1).

Figura 1- Critérios de Marsh para o diagnóstico de Doença Celíaca.
Resultados

Os autores analisaram os dados de 333 crianças que foram investigadas antes de terem completado 2 anos de idade e que apresentavam atrofia vilositária total à primeira biópsia (Figura 2).

Figura 2- Atrofia vilositária total da mucosa jejunal, lesão característica da Doença Celíaca.

Deste total de pacientes 100 deles (38 meninos e 62 meninas) foram submetidos ao teste de provocação com glúten e a grande maioria apresentou os sintomas clássicos da síndrome de má absorção, tais como, parada do ritmo de crescimento desde a introdução do glúten na dieta e diarréia. Os resultados dos testes sorológicos, os quais foram recuperados em 89% dos casos, mostraram-se compatíveis com Doença Celíaca em quase todos os pacientes.

A duração média do teste de provocação com glúten foi de 4,2 meses, a idade média dos pacientes quando do início do teste de provocação foi de 3,7 anos e a idade média dos pacientes quando submetidos à primeira biópsia foi de 1,4 anos. Quando da realização da segunda biópsia, portanto, estando os pacientes em dieta isenta de glúten, a recuperação completa da morfologia da mucosa jejunal (Marsh 0) (Figura 3) ocorreu em 85/100 pacientes.

Figura 3- Arquitetura vilositária normal da mucosa jejunal.

Nos 15 pacientes restantes a morfologia da mucosa jejunal mostrou diferentes tipos de anormalidades, a saber: aumento do número de linfócitos intra-epiteliais (Marsh I) em 8, hiperplasia críptica (Marsh II) em 3 e atrofia vilositária Marsh III) em 4 pacientes. Após a realização do teste de provocação com glúten atrofia vilositária (Marsh III) ocorreu em 97 pacientes, e em apenas 3 pacientes a mucosa jejunal não apresentou alterações antes e depois de 3, 9 e 15 meses da provocação com glúten, respectivamente. Além disso, estas 3 crianças não apresentaram quaisquer sintomas durante o teste de provocação com glúten; os testes sorológicos (anticorpo anti-endomíseo) revelaram-se negativos no momento do diagnóstico e antes da introdução da dieta isenta de glúten nestas 3 crianças. Desta forma, o diagnóstico de Doença Celíaca foi descartado nestes pacientes.

Conclusão
Como todos os pacientes do presente estudo apresentavam manifestações clínicas típicas, testes sorológicos anormais e atrofia vilositária no momento da suspeita diagnóstica, e, por sua vez, sofreram recaída da enfermidade quando submetidos ao teste de provocação, os autores sugerem que o teste de provocação com dieta contendo glúten não deve ser considerado obrigatório em crianças menores de 2 anos, se os sintomas clínicos de fato forem compatíveis com Doença Celíaca associada a lesão histológica característica (Marsh III) da mucosa jejunal em combinação com alterações dos testes sorológicos (anticorpo anti-endomíseo e/ou anticorpo anti-transglutaminase). Com a prescrição de uma dieta isenta de glúten os sintomas devem desaparecer e os testes sorológicos devem se normalizar dentro de alguns meses. Entretanto, o teste de provocação ainda deve ser utilizado quando os sintomas clínicos forem inespecíficos, as anormalidades histológicas da mucosa jejunal não forem características, conflitando com os resultados dos testes sorológicos e, além disso, caso não ocorra o desaparecimento total dos sintomas.
Este trabalho, em minha opinião, traz à luz uma proposta muito interessante de revisão dos critérios diagnósticos de Doença Celíaca em crianças menores de 2 anos, a qual me parece bastante pertinente, principalmente quando se leva em consideração as ressalvas pontuadas na conclusão. Esta proposta, naqueles casos de apresentação clínica típica e com toda a investigação complementar realizada, e confirmada para o diagnóstico de Doença Celíaca, evita que uma série de situações altamente desconfortáveis e angustiantes, tanto para o paciente como para seus familiares, tais como conviver com a recidiva dos sintomas e a necessidade da realização de 2 biópsias de intestino delgado adicionais, venha a ocorrer. Vale a pena enfatizar, entretanto, que cada caso deve ser considerado de forma individual a critério do discernimento do médico assistente em comum acordo com os pais do paciente.
No nosso próximo encontro trataremos de um novo tema de relevante interessante e devidamente atualizado da nossa especialidade.