quinta-feira, 18 de abril de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 2 - B)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto


Mecanismos de Refluxo      
          
Em geral o refluxo ocorre por meio de quatro mecanismos, a saber: relações transitórias do EEI (rtEEI), baixa pressão do EEI, relaxamentos do EEI associados a deglutição e a tensão durante os períodos de baixa pressão do EEI. Os mecanismos que previnem contra o refluxo variam com as circunstâncias fisiológicas e a anatomia da junção esôfago-gástrica. Por exemplo, o diafragma crural pode ser de capital importância devido ao aumento abrupto da pressão intra-abdominal e o esforço. Em contraste a pressão basal do EEI, pode ser de importância primária durante a posição de repouso recumbente e no estado pós-prandial, e uma hipotensão do EEI pode predispor os pacientes a sofrerem mais episódios de refluxo à noite e após as refeições. Quando estes mecanismos protetores estão comprometidos os efeitos prejudiciais tornam-se somatórios, aumentando os números dos eventos de refluxo e uma exposição anormal aos refluxos esofágicos (Figura 8).

Figura 8

Há uma evidência convincente de que os rtEEI são os mecanismos mais frequentes de refluxo durante os períodos de pressão normal do EEI (acima de 10mmHg). Por definição relaxamentos transitórios da EEI ocorrem independentemente da deglutição, não são acompanhados por peristaltismo, são acompanhados por inibição diafragmática, e persistem por mais longos períodos do que os relaxamentos da EEI induzidos pela deglutição. O estímulo dominante da rtEEI é a distensão do estômago proximal, a qual estimula as fibras intraglanglionares terminais encontradas nos receptores finais dos aferentes vagais.

A DRGE pode ocorrer em decorrência de uma diminuição da pressão do EEI, tanto por esforço induzido ou por refluxo livre. O refluxo induzido por esforço ocorre quando há um episódio de hipotensão do EEI em associação com um aumento abrupto da pressão intra-abdominal. Dados de estudos de manometria indicam que este fato raramente ocorre quando a pressão do EEI é superior a 10 mmHg. O refluxo livre é caracterizado por uma diminuição do pH intra-esofágico na ausência de uma alteração identificável, tanto na pressão intragástrica quanto na pressão do EEI.

Episódios de refluxos livres são observados somente quando a pressão da EEI se encontra entre 0-4 mmHg da pressão intragástrica; este fato é observado em pacientes no estágio final da esclerodermia ou após a miotomia cirúrgica em pacientes com acalasia.        

Depuração Esofágica

Após ocorrer um evento de refluxo, a duração que a mucosa esofágica permanece exposta ao suco gástrico é denominada tempo de exposição ao refluxo ou tempo de contato do bolus. A exposição da mucosa aos componentes cáusticos e irritantes do suco gástrico provoca lesão, inflamação e sintomas; a depuração prolongada do ácido, se correlaciona com a intensidade da esofagite e a presença de metaplasia de Barret. Entretanto, o limiar para estas respostas e complicações variam, e, tudo indica, sejam influenciadas pela integridade do epitélio. A avaliação convencional da depuração esofágica, tem focado, portanto, na mensuração do pH, e o tempo de depuração ácida esofágica é determinado pelo tempo no qual o lúmen esofágico permanece acidificado pelo pH menor que 4, após o evento de um refluxo. Embora esta análise focalize sobre a acidez, novas metodologias têm utilizado a impedância como um sinal para analisar a presença e a depuração do bolus. Estas ferramentas têm sido úteis para identificar subpopulações que responderão à supressão ácida, e isto enfatiza a importância da exposição do refluxo além do ácido. 

A depuração esofágica do bolus e do ácido inicia-se com o peristaltismo após a ocorrência de um evento de refluxo, e esta ação é complementada por um tamponamento adicional causado pela saliva deglutida.  Portanto, as duas principais causas potenciais de exposição prolongada ao refluxo e da depuração ácida são decorrentes de uma disfunção que prejudica o esvaziamento esofágico via peristaltismo e da função salivar prejudicada. Entretanto, outro componente importante que pode impedir a depuração do refluxo é a hérnia de hiato, posto que esta anormalidade anatômica está associada ao re-refluxo durante a deglutição, a qual burla a função de esvaziamento pelo peristaltismo.

Sintomas não esofágicos da DRGE

Devido a exposição do esôfago ao material refluído, a DRGE provoca sintomas esofágicos (queimação retroesternal, regurgitação e dor torácica) e lesões (esofagite de refluxo, estenoses e esôfago de Barret). Entretanto, a DRGE também tem sido envolvida na patogênese de um número significativo de manifestações sintomáticas denominadas atípicas ou extra esofágicas, incluindo o ouvido, nariz e garganta (laringite e faringite); transtornos pulmonares (asma e tosse) e dentárias (erosão dentária). Há alguma controvérsia a respeito do papel da DRGE na patogênese destes transtornos e pouco se conhece acerca da fisiopatologia das manifestações extra esofágicas da DGRE.

As manifestações da DRGE podem surgir por meio de um mecanismo direto de refluxo, no qual a microaspiração do conteúdo gástrico causa lesão ao ouvido, nariz e garganta ou no epitélio respiratório.  Esse mecanismo encontra-se apoiado por estudos demonstrando a ocorrência de refluxo para as vias respiratórias superiores ao utilizar monitoramento do pH faríngeo ou análise dos componentes do suco gástrico (pepsina e bile) no fluido de lavagem brônquio-alveolar.  

Sensibilidade aos episódios de refluxo

A sensibilidade aumentada ao refluxo ácido tem sido implicada na baixa resposta terapêutica à supressão ácida nos pacientes com DRGE não erosiva. A sensibilidade mecânica poderia também contribuir para os sintomas relacionados ao refluxo. Pacientes com a DRGE erosiva não apresentam sensibilidade mecânica alterada do esôfago em comparação com controles, porém, pacientes com esôfago sensível ao ácido apresentam sensibilidade aumentada à distensão esofágica com balão. Estudos utilizando distensão com balão têm demonstrado a indução de queimação retroesternal e, também, que o esôfago proximal é mais sensível do que o distal. A ativação das vias aferentes mecânico-sensíveis quando o esôfago é distendido durante os eventos de refluxo, é, portanto, um importante mecanismo de geração de sintomas durante um episódio de refluxo fracamente ácido. Por exemplo, isso poderia ocorrer nos pacientes sintomáticos a despeito de uma terapia de supressão ácida adequada (Figura 9).  
 
   Figura 9


Mecanismos periféricos

Terminações nervosas que supostamente intermediam a sensibilidade dos conteúdos gástricos refluídos estão presentes na camada submucosa do esôfago, o que determina que o sinal do refluído necessita cruzar a barreira mucosa para possibilitar a percepção dos sintomas. A resistência diminuída pela penetração transmucosa dos componentes do material refluído é um potencial mecanismo periférico para a hipersensibilidade esofágica ao refluxo. A correlação morfológica desta perda da integridade da mucosa se deve ao achado de espaços intercelulares dilatados, quando as biópsias esofágicas são estudadas pela histologia, ou de forma mais acurada, pela microscopia eletrônica. Uma série de estudos têm demonstrado a existência de receptores ácidos sensíveis, expressos nas terminações nervosas da submucosa, e que são os transdutores sensoriais para os sintomas induzidos pelo refluxo. Estes estudos fornecem evidências de que os espaços intercelulares dilatados são uma consequência dos fatores agressivos do material refluído, que induzem o conteúdo do lúmen esofágico a ativar as terminações nervosas, levando à geração dos sintomas (Figura 10).  
    Figura 10
 
Mecanismos centrais

Mecanismos centrais, atribuídos às alterações do processamento dos sinais aferentes desde o esôfago, também têm sido explicados na patogênese da hipersensibilidade esofágica. Esses mecanismos poderiam envolver a amplificação dos sinais de entrada e a falta de inibição das vias descendentes anti-noceptivas. Estas vias são reguladas por fatores que afetam os mecanismos centrais, tais como: estresse, ansiedade e características da personalidade.

Sistemas de neurotransmissores envolvidos nos efeitos anti-noceptivos centrais incluem opioides endógenos, endocanabinóides e serotonina.

Inúmeros pacientes com DRGE relatam que o estresse exacerba seus sintomas. Estudos realizados por Fass e cols. e Bradley e cols. evidenciaram que estressores agudos exacerbaram os sintomas de queimação retroesternal em pacientes com DRGE, por acentuarem a resposta perceptiva à exposição ácida no esôfago. O estresse está frequentemente associado a alterações do processamento central dos sinais aferentes, como por exemplo, a queimação retroesternal.

Comorbidades psicossociais também determinam a intensidade da DRGE e a resposta à terapêutica. Pacientes com sintomas de refluxo geralmente sofrem de ansiedade e depressão. Estes pacientes apresentam acentuados efeitos dos sintomas e referem baixa qualidade de vida, mesmo quando os parâmetros de refluxo não diferem daqueles pacientes que não apresentam essas comorbidades.   

Conclusões

A fisiopatologia da DRGE continua a ser uma área de progressos na pesquisa, graças aos avanços tecnológicos que têm contribuído para as mudanças de conceitos. O conhecimento atual origina-se de pesquisas que têm focalizado na exposição ao refluxo e na respectiva sensibilidade esofágica à exposição do material refluído. A consideração de fatores motores e anatômicos tem permitido uma melhor compreensão das causas da exposição do refluxo. A natureza do material refluído determina seu impacto na existência de sintomas, lesões e complicações. Mecanismos sensoriais determinam a relação entre a exposição ao refluxo e a geração dos sintomas. Fatores primordiais são a função de barreira da mucosa, a expressão dos nervos sensoriais e o nível da modulação no sistema nervoso central. As respostas do sistema nervoso central são moduladas por vários fatores, tais como: estresse e comorbidades psicossociais. Uma maior compreensão dos mecanismos fisiopatológicos dos sintomas da DRGE, e suas consequentes lesões, devem acarretar novos e mais eficazes opções para um melhor alvo no tratamento de cada paciente individualmente.    

Referências Bibliográficas

       1) Tack J & Pandolfino JE – Gastroenterology 2018;154:277-288
       2)Fass & cols. – Gastroenterology 2008;134:696-705
       3)Bradley & cols. – Gastroenterology 1993;88:11-19
       4)Jansson & cols. -Aliment Pharmacol Ther 2007;26:683-691  

terça-feira, 16 de abril de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 2 - A)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto


Parte 2: Fisiopatologia

A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) é definida pela presença de sintomas ou complicações diretamente relacionadas ao fluxo retrógrado do conteúdo gástrico para o esôfago. Algum grau de refluxo pode ser considerado normal, e, para que haja a ocorrência da DRGE, é necessário um aumento da exposição esofágica ao suco gástrico ou uma redução no limiar do epitélio esofágico para lesão e percepção dos sintomas. Este equilíbrio entre exposição ao refluxo, resistência epitelial e sensibilidade visceral é delicado, pois pode ser alterado por perturbações fisiológicas e fatores anatômicos, que tanto promovem ou impedem o refluxo para o esôfago, protegem ou lesam o epitélio por conta do suco gástrico.

Em condições normais, o refluxo para o esôfago é prevenido por uma barreira anti-refluxo, a qual se constitui em uma complexa zona anatômica composta por múltiplos componentes, incluindo o esfíncter esofágico inferior (EEI), o diafragma crural extrínseco e as estruturas de suporte da aba da válvula gastroesofágica (Figuras 1-2-3).
Figura 1- Anatomia da junção esôfago-gástrica.

Figura 2- Anatomia dos esfíncteres esofágicos: superior e inferior.

Figura 3- Diferentes situações do EEI de acordo com a respiração.

Quando esses componentes protetores estão comprometidos os efeitos deletérios se somam, resultando em um número aumentado de eventos de refluxo e, também, um aumento anormal na exposição esofágica pelo material refluído (Figura 4).

Figura 4- Representação esquemática da competência e da incompetência do EEI.

Quando o suco gástrico invade o esôfago, fatores de defesa auxiliam na depuração do material refluído para o esôfago e protegem o epitélio. A quebra destas forças protetoras acarreta a DRGE. Entretanto, complicações e sintomas também podem ocorrer nos indivíduos que possuem uma carga normal de refluxo, quando há tanto uma pobre resistência epitelial ou uma sensibilidade visceral aumentada. A patogênese da DRGE é, portanto, complexa e determinada por interações envolvendo múltiplos fatores agressivos e defensivos.

Exposição ao Refluxo

A DRGE surge devido à injúria provocada pelo ácido gástrico que é nocivo ao esôfago. A exposição excessiva do refluxo é normalmente prevenida por uma função de barreira anti-refluxo, e, a consequência direta da existência de uma barreira anti-refluxo prejudicada resulta no aumento do número de eventos de refluxo, por meio de uma variável diversidade de mecanismos. Uma vez que o refluxo tenha ocorrido, a lesão e os sintomas são regulados pela duração da exposição e o grau de causticidade do suco gástrico. A duração da exposição ao refluxo é determinada pela eficácia da depuração do refluxo esofágico cujos fatores determinantes são, a saber: peristaltismo, salivação e a presença ou não de hérnia de hiato. Anormalidades na depuração esofágica são provavelmente os mais importantes fatores determinantes para o desenvolvimento de esofagite, e, por outro lado, a sensibilidade esofágica é a maior determinante para a percepção da DRGE.   

Refluxo Gástrico

A secreção gástrica é uma mistura lesiva de ácido, bile e enzimas digestivos que auxiliam na digestão dos alimentos que serão encaminhados ao intestino delgado. Esse material é caustico e pode, portanto, potencialmente lesar a maioria das camadas epiteliais do esôfago, ao menos que medidas protetoras apropriadas existam no local para tamponar o ácido e proteger a mucosa da inflamação, e de outros efeitos diretos do material refluído. Muito embora todos esses componentes possam provocar lesão e irritação ao esôfago, o ácido é o determinante primário dos sintomas de refluxo e da esofagite (Figura 5).

Figura 5- Representação esquemática do refluxo ácido.

Eventos de Refluxo  

A barreira anti-refluxo é uma complexa zona anatômica de alta pressão que se origina por uma via sinérgica entre o EEI e o diafragma crural. A função desta barreira é mantida pela arquitetura da aba da válvula gastroesofágica, a qual é sustentada pelo ligamento freno-esofágico e pelas fibras gástricas do cárdia. As estruturas de sustentação auxiliam na manutenção da posição do EEI intrínseco no interior do diafragma crural extrínseco de tal forma que estas duas estruturas se sobrepõem e criam uma barreira mais eficaz. A gravidade do refluxo se correlaciona com a intensidade da disfunção de cada um dos componentes individuais da barreira anti-refluxo (Figura 6). 

Figura 6- Barreiras anti-refluxo.

O EEI é um segmento curto composto por músculo liso tonicamente contraído, localizado na porção distal do esôfago. Seu tono de repouso varia nos indivíduos normais entre 10 e 30mmHg, em relação à pressão intra-gástrica. O EEI provê uma barreira suficiente para contrabalançar o gradiente de pressão gastroesofágico, através da junção esofagogástrica. De uma maneira geral, a pressão do EEI é afetada por fatores neurogênicos e miogênicos; estes são modificados pela pressão intra-abdominal, distensão gástrica, peptídeos, hormônios, alimentos e medicamentos (Figura 7).

Figura 7- Anatomia do esfíncter esofágico inferior.

Referências Bibliográficas

       1) Gastroenterology 2008;134:696-705.
       2) Bradley & cols. – Gastroenterology 1993;88:11-19.
       3) Jansson & cols. -Aliment Pharmacol Ther 2007;26:683-691.