segunda-feira, 30 de julho de 2018

Sistema imune do intestino delgado: conceitos atuais (Parte 1)


Natália Oliveira e Silva e Ulysses Fagundes Neto
       
Introdução

O tubo digestivo encontra-se constantemente exposto aos fatores do meio ambiente, como por exemplo, microrganismos e antígenos da dieta. Por esta razão, ocorre uma interação entre os microrganismos do interior do tubo digestivo e do ambiente externo, a qual exerce uma importante influência na saúde do hospedeiro. O sistema imune do intestino é capaz de reagir aos microrganismos agressores e mantém-se tolerante aos microrganismos pertencentes à microbiota do intestino e, também, aos antígenos presentes na dieta.

O intestino humano abriga uma estimativa de 100 trilhões de microorganismos, sendo que a grande maioria é composta por bactérias, envolvendo de 500 a 1.000 espécies diferentes, e, 99% do total correspondem de 30 a 40 espécies de bactérias, a imensa maioria delas anaeróbia.

A denominação microbiota intestinal refere-se justamente a essa comunidade microbiana presente no intestino, que inclui os seguintes grupos bacterianos, a saber: Bifidobacteria, Enterobacteria, Clostridia, Lactobacillus e Enterococo. Este conjunto de bactérias encontra-se frequentemente presente, mas não obrigatoriamente, no intestino grosso de indivíduos adultos saudáveis. Essa microbiota pode variar de acordo com muitos fatores, tais como local colonizado e idade do hospedeiro, entre outros. Por exemplo, no primeiro ano de vida, a microbiota é menos estável que a do adulto.

A colonização bacteriana do intestino do neonato depende do tipo de parto, da dieta (leite materno ou fórmula láctea), da flora bacteriana materna, além das condições de higiene. O uso de antibióticos também determina alterações importantes, tanto na quantidade quanto no tipo de colonização.

Distribuição da Microbiota Intestinal

Em relação à microbiota do intestino delgado, o duodeno e o jejuno devem conter um total inferior a 104-106 de colônias. Nesta região do trato digestivo ocorre uma comunidade microbiana transitória, caracterizada por bactérias Gram+, derivadas dos alimentos ingeridos, diferentemente da microbiota do colon, que é persistente (Tabela 1).


Tabela 1- Distribuição da microbiota do trato digestivo.

Essa população bacteriana proporciona uma série de contribuições chave para a saúde do hospedeiro, tais como:
-Melhora da digestão;
-Auxílio no desenvolvimento do sistema imune;
-Limita a colonização patogênica através de competição por espaço e nutrientes.

A participação da microflora no sistema imune inclui:
- Ativação: qualquer perturbação no estabelecimento da microflora refletirá no equilíbrio da microbiota, e, consequentemente na ativação do sistema imune;
- Modulação: as Bifidobacterias por exemplo estimulam a resposta imune protetora;
- Regulação: supressão da resposta imune por meio de tolerância oral, com redução das respostas humoral e celular.

A interação entre a microbiota intestinal e o hospedeiro envolve uma relação que pode ser:
-Simbiótica: neste caso ambos os organismos se beneficiam mutuamente. A relação de simbiose é dependente da limitação da penetração das bactérias nos tecidos, portanto representa um desafio para o hospedeiro, pois existe uma linha tênue entre mutualismo e patogenicidade. Vale ressaltar que a composição da flora intestinal é dinâmica e pode variar com localização geográfica, estado nutricional e status imunológico;
-Patológica: isto ocorre quando um organismo se beneficia às custas do prejuízo do hospedeiro;
-Comensal: nesta situação um dos organismos é beneficiado, porém, sem prejudicar o outro.

GALT (gut-associated lymphoid tissue) (tecido linfoide associado ao intestino)

Existe uma interação dinâmica entre a microflora intestinal, o epitélio intestinal e o sistema imune da mucosa intestinal, que deve sempre resultar em um equilíbrio para o hospedeiro. O sistema imune da mucosa constitui uma barreira imunológica intestinal que é formada pelas imunoglobulinas e pelo GALT.

A composição do GALT inclui os seguintes componentes, a saber:
-Tecido linfoide difuso: apêndice cecal e folículos linfoides solitários;
-Tecido linfoide organizado: placas de Peyer e células M.

Classificação do sistema imune intestinal

O sistema imune intestinal pode ser dividido em duas categorias: inato e adaptativo.

O sistema imune intestinal exerce papel importante para o equilíbrio entre a microbiota intestinal e o hospedeiro. É responsável pela defesa contra os microrganismos patogênicos: reações iniciais (imunidade inata) e pelas respostas tardias (imunidade adquirida).

Imunidade inata

É constituída por barreiras químicas e físicas, tais como:
- Epitélio, acidez gástrica, camada de muco, microbiota intestinal;
- Células fagocitárias: granulócitos, macrófagos, células NK;
- Sistema complemento e citocinas.

Epitélio intestinal

Este tipo de imunidade representa a interface entre o hospedeiro e a microbiota comensal, atua como barreira física, separando agentes altamente imunogênicos do lúmen intestinal de outros imunoreativos da submucosa. Expressa múltiplos receptores para detectar a presença de bactérias patogênicas e comensais. Além disso, produz moléculas antimicrobianas como alfa e beta defensinas, lecitinas, dentre outras.

Fatores que contribuem para manter baixa a carga de bactérias:
-          Peristaltismo: previne a estase de nutrientes e bactérias
-          Muco: mecanismo de barreira
-          Secreção de substâncias antibacterianas pelo epitélio

O epitélio intestinal é composto por 4 linhagens de células (Figuras 1-2-3 – 4):
-          Enterócitos: responsáveis pela absorção
-          Células caliciformes: regulam a produção de muco
-          Células enteroendócrinas
-          Células de Paneth: produção de peptídeos antimicrobianos


Figura 1- Microfotografia em microscopia óptica comum em aumento médio da unidade morfológica da mucosa do intestino delgado vilosidade/cripta. As vilosidades são digitiformes e as criptas estão abaixo das vilosidades, e a relação vilosidade/cripta normal deve ser 4/1.  


Figura 2- Microfotografia em microscopia óptica comum em grande aumento de uma vilosidade. As células epiteliais (enterócitos) são cilíndricas com núcleo em posição basal interpostas lado a lado formando uma verdadeira paliçada.


Figura 3- Ultramicrofotografia em grande aumento de um enterócito e a região das microvilosidades, a porção mais externa do enterócito que se encontra em direto contato com o lúmen intestinal.


Figura 4- Ultramicrofotografia em grande aumento da região das microvilosidades do enterócito, destacando os tufos que emergem dos mesmos que servem de apoio para a camada de muco que irá conferir proteção ao enterócito contra as agressões do meio ambiente.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Retardo do Esvaziamento Gástrico (Parte 3)

Marina Haro Chicareli Carrari e Ulysses Fagundes Neto

Tratamento

Quantificação dos Sintomas

Inicialmente, para ser oferecido um tratamento adequado é necessária a quantificação dos sintomas. Para tal foi elaborado um questionário de sintomas denominado Índice de Sintomas Cardinais da Gstroparesia, o qual foi desenvolvido e validado com o intuito de quantificar os sintomas da gastroparesia. Este índice baseia-se em 3 sub-escalas, a saber: plenitude pós-prandial/saciedade precoce; náusea/vômitos; distensão gástrica.

Tabela 4 – Classificação da gravidade da gastroparesia.

Grau 1 – corrigir e prevenir distúrbios eletrolíticos e deficiências nutricionais: mudanças dietéticas, evitar medicações que retardem o esvaziamento gástrico.
Grau 2 – redução dos sintomas: emprego de antieméticos, procinéticos e controle da dor (se houver).
Grau 3 – identificar e tratar a causa (quando possível): hospitalização, hidratação intravenosa, compensação glicêmica (nos diabéticos), nutrição enteral/parenteral, intervenções cirúrgicas e endoscópicas.

Diferentes Estratégias de Tratamento

A Tabela 5 apresenta os diferentes recursos atualmente disponíveis para o tratamento das gastroparesias.
 Tabela 5 – Recursos para o tratamento das gastroparesias.

A-     Medidas dietéticas e de estilo de vida

Recomenda-se que o paciente se alimente em pequenos volumes, e as refeições devem ser pobres em gorduras e fibras, visando com esta conduta estimular a motilidade gástrica. Deve-se realizar dentro da anamnese um inquérito nutricional detalhado, tentar avaliar se os sintomas se agravam com a ingestão de sólidos, semi-sólidos e líquidos. Fluídos devem ser ingeridos com o alimento, e não é recomendado ingerir refrigerantes gasosos.

O paciente deve se sentar ou andar por 1 a 2 horas após a refeição, e, no caso de mesmo assim, os sintomas não apresentarem alívio pode-se oferecer parte das calorias na forma líquida, e buscar drogas que possam afetar de forma positiva a motilidade gástrica. Devem-se excluir causas reversíveis como uso de drogas e distúrbios hidroeletrolíticos, além de tratar de excluir alimentos aos quais o paciente apresenta intolerâncias.

Na ocorrência de náuseas anti-eméticos estão indicados, e, da mesma forma, na vigência de dor devida à dismotilidade gástrica estão indicados os analgésicos viscerais tricíclicos em doses baixas ou os inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina.

A Psicoterapia é sempre recomendável como uma intervenção para dar apoio emocional ao paciente.

B- Procinéticos

As drogas procinéticas estimulam as contrações do músculo liso do estômago e auxiliam o esvaziamento gástrico. Não há estudos randomizados placebo-controlados em crianças com gastroparesia, e, a maioria dos estudos não consegue correlacionar o alívio dos sintomas com um efeito positivo sobre o esvaziamento gástrico.

1-    Metoclopramida

Os receptores de dopamina estão distribuídos por toda a parede gastrintestinal e a metoclopramida age sobre o receptor antagonista da dopamina D2, agonista da serotonina tipo 4 e com ação direta sobre a musculatura lisa do estômago e do intestino delgado.

Na maioria dos estudos o aumento da duração e a frequência das contrações duodenais e antrais elevou a pressão no esfíncter esofagiano inferior e relaxou o esfíncter do piloro. Além disso, esta droga tem também ação central suprimindo as náuseas e os vômitos.

Efeitos adversos: galactorreia e liberação extra-piramidal. Seu uso prolongado em criança pode aumentar o risco de discinesia, e este medicamento não deve ser usado por um período superior a 3 meses.

2-    Eritromicina

Trata-se de um antibiótico macrolídeo com efeito agonista sobre o receptor da motilina no músculo liso do trato digestivo. Induz a fase III do MMC no antro e duodeno. Seu efeito é limitado ao estômago e intestino delgado.

Na dose de 3-5 mg/kg/dose 6 em 6 horas é um procinético poderoso, porém, há estudos que demonstraram a associação no período neonatal do uso de eritromicina com a estenose hipertrófica do piloro, suprime as ondas de pressão do piloro.

3-    Toxina Botulínica

A injeção intrapilórica da toxina botulínica tem sido usada nos casos de gastroparesia refratária, ela é injetada endoscopicamente usando a pinça de escleroterapia em cada quadrante do piloro, à dose de 25 unidades por quadrante.

Esta droga bloqueia a liberação da acetilcolina nas terminações colinérgicas, e, portanto, mantém o piloro aberto, com duração eficaz de até 5 meses e alívio dos sintomas de 37 a 43% dos casos.

C- Marcapasso Gástrico

Técnica – implantar dois eletrodos e um marcapasso na camada seromuscular do estômago, colocados via laparoscópica e a posição confirmada por endoscopia. Seu mecanismo de ação ainda não está claro, o que se suspeita é que a estimulação elétrica corrige as disritmias e promove o esvaziamento gástrico.

Os estudos ainda são controversos quanto a duração e a frequência dos pulsos e alívio dos sintomas. Estudos em adultos demonstraram alívio das náuseas, vômitos e melhora do esvaziamento gástrico, porém não houve alívio dos sintomas álgicos.
Figura 7- Imagem do marcapasso gástrico.

D- Alimentação Enteral ou Parenteral

Alimentação enteral por sonda nasogástrica ou gastrostomia está indicada nos pacientes que desenvolvem desidratação, distúrbios hidroeletrolíticos e desnutrição. Se não houver sucesso com esta técnica, está indicada a utilização da nutrição parenteral.
Tabela 6 – Critérios para iniciar a nutrição enteral.

E- Cirurgia

A intervenção cirúrgica está indicada nos casos refratários, mesmo tendo o conhecimento de que haverá limitado sucesso e a morbidade pode ser significativamente alta.
 Tabela 7 – Avaliação dos resultados cirúrgicos para a gastroparesia.

Conclusões

O tratamento da gastroparesia precisa ser individualizado para alcançar as seguintes metas:
Alívio dos sintomas
Normalização da Nutrição e da Hidratação
Controle glicêmico
Melhora do esvaziamento gástrico

Para aumentar a eficácia do sucesso terapêutico há a necessidade de um atendimento interdisciplinar envolvendo os seguintes profissionais da saúde: médico da atenção primária, gastroenterologista, endocrinologista, nutrólogo, fisiologista, radiologista, endoscopista, cirurgião e psicólogo.