terça-feira, 30 de outubro de 2012

Doença Celíaca e Constipação (2)


 
Uma manifestação clínica pouco descrita e aparentemente contraditória, mas que deve ser considerada em determinadas circunstâncias


Caso 2

Paciente do sexo feminino, 30 meses de idade, apresentava queixa de constipação crônica com escape fecal, a partir da retirada das fraldas, o que ocorreu aos 27 meses de vida.
Segundo a mãe, a paciente apresentava dor para evacuar, com fezes endurecidas e volumosas, sem presença de sangue ou outros elementos patológicos, com frequência de a cada 5 dias. Era medicada com lactulose (Farlac) em dose abaixo da preconizada, sem sucesso.


Paciente recebeu aleitamento misto até os 8 meses de vida e, durante este período, evacuava 2 a 3 vezes por dia, fezes pastosas sem dificuldade.
Mãe introduziu dieta sólida a partir dos 6 meses constituída por leite de vaca (fórmula adequada para a faixa etária) e dieta sólida própria para a idade de acordo com a orientação do pediatra. A introdução de farinhas derivadas do trigo se deu nesta ocasião.

Como antecedente familiar relevante o avô é portador de Doença de Crohn (sic) e a mãe sofre de constipação crônica.
Ao exame físico: peso= 11,7 kg e estatura= 92 cm (escore z peso/idade=-1,37; estatura/idade=-0,78; peso-estatura=-1,04). Apresentava aspecto emagrecido, abdome distendido com massa palpável no flanco esquerdo. Na ocasião foram consideradas as seguintes hipóteses diagnósticas: 1- baixo peso 2- constipação crônica.


Foi solicitado raio X simples de abdome que revelou imagem com excesso de gases e fezes em toda a topografia colônica, e sugestão de existência de massa fecal retida na ampola retal. A mãe foi, então, orientada a realizar desimpactação fecal com clister de Fosfoenema e posteriormente manutenção com lactulose à dose de 2 ml/kg/dia e óleo mineral à dose de 2 ml/kg/dia.
Como a paciente mantivesse a queixa de constipação e retardo do ritmo de crescimento um ano após a conduta inicial, peso= 13,1 kg  e estatura= 98 cm (escore z peso/idade=-1,07)  foram solicitados os seguintes exames laboratoriais: hemograma, hormônio tireoestimulante, tirosina, tirosina livre, triiodotironina, glicemia de jejum, IgE, ferro, ferritina, cálcio, fósforo e fosfatase alcalina séricos. Foram também solicitados os seguintes testes sorológicos para rastreamento de DC, a saber: anticorpo anti-gliadina IgA e IgG, anticorpo anti-endomíseso, anticorpo antitransglutaminase tecidual e determinação dos antígenos de hiscompatibilidade leucocitária (HLA) DQ2 e DQ8.
Diante dos resultados positivos para os marcadores de DC, a saber: EMA 1/320, AGA 9,9, AATG 165, HLA DQ2 +, foi realizada a biópsia de duodeno por via endoscópia que revelou à macroscopia imagem da mucosa duodenal em ladrilho, sugestiva da DC. A microscopia óptica comum evidenciou atrofia vilositária de grau moderado com significativo aumento dos linfócitos intra-epiteliais; na lâmina própria havia aumento do infiltrado linfo-plasmocitário e hiperplasia das glândulas crípticas (Marsh 2) (7).
A paciente foi orientada a realizar dieta isenta de glúten, a qual foi bem sucedida, com desaparecimento da queixa de constipação após 1 mês do tratamento dietético.
O presente projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo.
DISCUSSÃO
A DC celíaca é uma intolerância permanente ao glúten, e é considerada uma enteropatia crônica imunomediada (2).
A prevalência da DC na Europa e Estados Unidos da América tem sido descrita variando de 1 caso para cada 100-200 indivíduos (4). Oliveira et al. (8), em São Paulo, Brasil investigando doadores de sangue demonstraram que a DC não deve ser considerada uma enfermidade rara, sendo sua prevalência de, pelo menos, 1:214 indivíduos.
Além da forma clássica as outras formas reconhecidas são: 1- assintomática ou silenciosa: enteropatia típica sensível ao glúten, porém com ausência de manifestações clínicas. Grande parte deste grupo é composto por parentes de primeiro grau de pacientes com DC e pacientes com diabetes insulino-dependente (4); 2- não clássica ou atípica é caracterizada por quadro mono ou paucissintomático. Tem início mais tardio na infância. Os pacientes podem apresentar manifestações isoladas como baixa estatura, anemia por deficiência de ferro refratária ao tratamento, artrite ou artralgia, convulões, hipoplasia do esmalte dentário, dermatite herpetiforme, hipertransaminasemia, puberdade precoce, dor abdominal recorrente e constipação (4).

As citações de constipação como um dos sintomas de forma atípica da DC, particularmente em artigos de revisão, são recorrentes, porém, são raras as descrições comprovadas de constipação como sintoma da enfermidade, disponíveis na literatura.
No extenso levantamento bibliográfico realizado encontramos apenas 2 artigos que descrevem constipação como sintoma de DC na faixa pediátrica. Egan-Mitchell et al, em 1972, estudaram 112 crianças com diagnóstico de DC e encontraram que 10,7% (12 crianças) apresentavam constipação (5). Por outro lado, Sharma A et al, em 2007, investigaram crianças com suspeita diagnóstica de DC e constataram que constipação, como manifestação atípica, esteve presente em 4% (1/18) dos casos (6). Estas raras descrições de constipação como manifestação atípica de DC levaram Hungerford C, em 1996, a enviar uma carta ao editor da revista Australian Family Physician, na qual revelou seu desapontamento pela falta da descrição deste sintoma em crianças, pois em sua experiência pessoal, constipação crônica é um sintoma não raro em pacientes adultos portadores de DC (10).
A DC é cada vez mais reconhecida na população adulta sem que conste a queixa de diarréia, com uma porcentagem maior de pacientes que se apresentam como indivíduos assintomáticos, frequentemente detectados em exames de triagem. As formas atípicas estão na verdade se tornando típicas (11).
 A Sociedade Norte Americana de Gastroenterologia Pediátrica Hepatologia e Nutrição recomenda que a DC seja considerada no diagnóstico diferencial das crianças com sintomas persistentes do trato gastrointestinal, incluindo dor abdominal recorrente, constipação e vômitos (12). Em 2007, um estudo multicêntrico realizado nos EUA, demonstrou que uma intensificação na realização de testes de triagem para DC poderia aumentar a detecção destes pacientes no país (13). Neste estudo realizado entre 2002 e 2004, foram diagnosticados 22 casos de DC em 976 pessoas investigadas e destas, 4 apresentavam sintomas de constipação. Comparando-se com as taxas de diagnóstico anteriores a esta intensificação nos testes de triagem, observou-se um aumento bastante significativo de novos casos, saltando de 0,27 casos para 11,6 casos para cada 1000 pacientes investigados.
Nos nossos 2 casos as pacientes apresentavam quadro de constipação crônica além de também apresentar valores negativos nas relações do z-escore para peso e estatura. É do conhecimento geral que a prevalência de constipação crônica é bastante elevada na população pediátrica que busca atenção médica em gastroenterologia, e que, em sua imensa maioria a queixa é decorrente de um transtorno funcional. Entretanto, quando a constipação se manifesta acompanhada de outros sinais de alarme, como, por exemplo, algum grau de agravo nutricional, este evento deve servir de indicador para que se aprofunde a investigação diagnóstica. Em ambos os nossos casos durante o seguimento ambulatorial a constipação persistiu associada a um agravo nutricional, e, por esta razão, foi decidido realizar uma avaliação da função digestivo-absortiva, a qual resultou positiva para DC.
Em conclusão, é necessário enfatizar que a DC pode se apresentar de múltiplas formas, a saber: sintomática, assintomática e atípica. Apesar de ser escassa a descrição da DC cursar com constipação crônica, esta não parece ser uma manifestação atípica de prevalência desprezível. Torna-se, portanto, de extrema importância que os profissionais da saúde estejam atentos para esta manifestação considerada atípica, como possível forma de apresentação da DC e quando tal suspeita for levantada, deve-se realizar a investigação pertinente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1)      Sdepanian VL, Morais MB, Fagundes-Neto U. Doença celíaca: características clínicas e métodos utilizados no diagnóstico de pacientes cadastrados na Associação dos Celíacos do Brasil. J Pediatr (Rio J) 2001;77(2): 131-8
(2)      National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement on Celiac Disease, June 28-30, 2004. Gadtroenterology 2005;128:s1-s9
(3)      Sdepanian VL, Morais MB, Fagundes-Neto U. Doença celíaca: a evolução dos conhecimentos desde sua centenária descrição original até os dias atuais. Arq Gastroenterol 1999;36(4):244-257
(4)       Fasano A. Clinical Presentation of Celiac Disease in the Pediatric Population. Gastroenterology 2005;128:s68-s73.
(5)      Egan-Mitchell B, McNicholl B. Constipation in Childhood Coeliac Disease. Archives of Disease in Childhood 1972;47:238-240.
(6)      Sharma A, Poddar U, Yachha SK. Time to recognize atypical celiac disease in Indian children.Indian J Gastroenterol 2007;26(6):269-73.
(7)      Oberhuber G, Grandisch G, Vogelsang H. The histopathology of coeliac disease: time for a standardized report scheme for pathologists. European  Journal Gastroenterology  Hepatology. 1999; 11: 1185-94.
(8)      Oliveira RP, Sdepanian VL, Barreto JA, Cortez AJ, Carvalho SO, Fagundes-Neto U et al. High prevalence of celiac disease in brazilian blood donor volunteers based on sceening by IgA antitissue transglutaminase antibody. Eur Journal Gastroenterology Hepatology. 2007;19(1):43-9
(9)      Rostom A, Dubé C, Cranney A, Saloojee N, Sy R, Garritty C et al. The diagnostic accuracy of serologic tests for celiac disease: a systematic review. Gastroenterology 2005;128:s38-s46
(10)  Hungerford C. Constipation can be a sign of celiac disease. Australian Family Physician 1996;25:802-3.
(11)  Rampertab SD, Pooran N, Singh P, Green PH. Trends in clinical presentation of celiac disease in the US over the last fifty years .Gastroenterology 2003, 124(4) Suppl 1: A659.
(12)  Hill ID, Dirks MH, Liptak GS, Colletti RB, Fasano A, Guandalini S et al. Guideline for the Diagnosis and Treatment of Celiac Disease in Children: Recommendations of the North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. Journal of Pediatric Gastroenterology & Nutrition: 2005; 40(1):1-19.
(13)   Catassi CMPH,  Kryszak DBS, Louis-Jacques O, Duerksen DR, Hill I, Crowe SE. Detection of Celiac Disease in Primary Care: A Multicenter Case-Finding Study in North America.The American Journal of Gastroenterology. 2007;102(7):1454-60.

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