As motivações, os
preâmbulos e as tratativas para a viagem de especialização
Residência
Médica
Corria
o ano de 1970, eu estava cursando o último ano de Medicina (naquela época já
era denominado internato), na Escola Paulista de Medicina (EPM). Havia muito
tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha uma meta obsessiva que era
fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo, posto que tinha absoluta
consciência de que não me sentiria seguro em exercer a profissão sem ter
passado por esta extraordinária vivência de treinamento em serviço. A
instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio,
representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a
perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os
programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que
tornava o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas
disponíveis para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental
importância aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de
internato para obter tão almejado êxito. Naquele tempo, tudo o que meu
pensamento alcançava, até então, em termos futuros, era tornar-me um médico
competente e, concomitantemente, se possível seguir a carreira acadêmica e vir
a ser um professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico
prestei o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui
aprovado, e assim, consequentemente, um novo horizonte surgia na minha vida
profissional. Iniciava-se assim, nos três anos seguintes, a perspectiva de
concretizar o ambicionado desejo e, também, passaria a me preparar para os próximos
desafios a serem enfrentados.
Mas,
antes de seguir o relato das atividades com o decorrer da Residência Médica,
torna-se importante voltar um pouco no tempo para que se possa melhor entender
os acontecimentos que o futuro me reservaria. Durante o internato, quando eu
estava fazendo o estágio na Pediatria, por coincidência, concomitantemente como
parte dos eventos comemorativos dos 50 anos de fundação da Associação Paulista
de Medicina, foi organizado um curso de atualização em várias especialidades
médicas, inclusive em Pediatria. Convidado pelo preceptor do internato e
residência naquela época, professor Jamal Wehba, fui assistir às aulas que eram
ministradas por três professores convidados do exterior. Dois deles eram
professores seniores, Svoboda, alemão, especialista em ortopedia e o outro Fred
Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas magistrais. Mas quem mais me
chamou a atenção foi um jovem professor argentino, Horácio Nestor Toccalino,
gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas extremamente práticos
condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles tempos. Abordava,
sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarréia aguda e diarréia crônica,
demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos tão
freqüentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de morbidade e
mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes às famílias
sócio-economicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou também uma
enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida a Doença
Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que aprendi
naqueles dias e, sem qualquer sombra de dúvida, foi a partir desta fantástica
experiência que começou minha inclinação pela Gastroenterologia e Nutrição em
Pediatria, a qual se tornou irreversível.
Os
dois primeiros anos da Residência Médica reforçaram a ideia da necessidade
imperiosa de escolher uma super-especialidade dentro da Pediatria, porém sem
jamais negar a formação generalista. Naquela época eram raras as especialidades
pediátricas reconhecidas, tais como, neonatologia, neurologia, cirurgia
pediátrica, genética para citar as mais consolidadas, enquanto que as potenciais
outras futuras especialidades encontravam-se em estágio ainda muito incipiente
de implantação. O Pediatra tinha uma formação de generalista e quando
necessitava a opinião de um especialista era chamado um clínico de adultos, o
que não trazia na prática, na maioria das vezes, grande contribuição para a
solução dos problemas. Esta situação associada ao fato de que eu não conseguia
dominar com segurança todas as diversas patologias que tinha que enfrentar no
dia a dia me gerava grande angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um
pouco de tudo, mas apenas na superficialidade, o que me deixava profundamente
frustrado, queria conhecer as patologias mais profundamente, queria entender as
causas dos processos, não apenas as consequências, ou seja, simplesmente as manifestações
clínicas (sinais e sintomas). Além disso, as principais causas de internação
nas nossas enfermarias eram devidas a Diarreia aguda e Diarreia crônica as
quais inevitavelmente vinham associadas à Desnutrição, e, acarretavam
altíssimas taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era
freqüente deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários
pacientes com diarreia e ao voltar na manhã seguinte encontrava estes mesmos
leitos vazios porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela
situação me deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução
para estes problemas tão freqüentes e tão graves, era preciso conhecer mais a
fundo os mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente
agressor e o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental
enveredar para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que
vinha cercada de conflitos, posto que as resistências contra a especialização
no campo da Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e
justificado orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do
médico generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam,
pois, a perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da
época provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo
que havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu
grande sonho era encaminhar-me para a vida universitária, com o objetivo de
enveredar-me na pesquisa, produzir e difundir conhecimentos em benefício da
sociedade e dos futuros discípulos. Entretanto, para ter êxito neste desejo era
imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma
determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa
mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico. Este foi o desafio que
lancei para mim, e, ao longo dos anos, foi o que tratei incessantemente de
perseguir.
O
Grupo de Estudo
No
início do segundo ano da Residência, como conseqüência de todas as angústias e
frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente observados no manejo dos
pacientes portadores de diarréia e desnutrição, resolvemos constituir um grupo
de estudo. Era pequeno, mas muito aplicado e eficiente, composto pelo nosso
preceptor Prof. Jamal e, por um grande amigo desde os bancos do curso médico e
agora colega na Residência, Dr. Fernando Fernandes. Tinha basicamente o
objetivo de aprimorarmos nos novos conhecimentos que se avolumavam na
literatura a respeito deste terrível binômio Diarreia-Desnutrição. Passamos,
então, a nos reunir semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal
para ler e discutir criticamente os artigos mais recentemente publicados na
literatura médica sobre os principais aspectos relacionados com a fisiologia
dos processos digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que
envolviam a interação dos diferentes agentes enteropatogênicos com o
hospedeiro, e suas conseqüentes intolerâncias alimentares. À medida que
avançávamos em nossos estudos mais e mais nos conscientizávamos do quanto
ignorávamos sobre o tema; isto, no entanto, não nos abalou negativamente, ao
contrário, serviu sempre de estímulo desafiador para que nos mantivéssemos em
permanentes encontros de estudo. Entrávamos, assim, no mundo recentemente
descrito das intolerâncias aos carboidratos da dieta, em especial da lactose,
fatores perpetuadores da diarréia e agravantes da desnutrição. Começava a surgir
uma nova luz na perspectiva de oferecermos uma melhor conduta nutricional aos
nossos pacientes, porém, ainda eram apenas conhecimentos teóricos, faltava-nos
uma experiência prática para podermos ter mais segurança nas nossas propostas
diagnósticas, de investigações laboratoriais, e terapêuticas (Figura 1).
Figura 1- Este paciente sofria de diarreia persistente e intolerância à lactose e recebeu alta curado do Hospital São Paulo; foi um dos primeiros, dentre inúmeros que viriam a seguir, a se beneficiar dos novos conhecimentos adquiridos do grupo de estudo a respeito das intolerâncias alimentares tão pouco conhecidas à época (1972).
Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a ideia de buscar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.
Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a ideia de buscar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.
As
barreiras a serem vencidas e a exitosa viagem a Córdoba
Diante
da potencial situação de imobilismo que se nos apresentava, para tentarmos dar
uma solução prática para tal impasse, eu me dispus a tentar um contato com Dr.
Toccalino com o intuito de solicitar a
realização do treinamento na especialidade em seu pioneiro e prestigioso Serviço,
em Buenos Aires, posto que no terceiro ano da Residência tínhamos a permissão
para realizar um estágio eletivo. Havia, no entanto, dois problemas a serem
enfrentados e vencidos, a saber: o primeiro deles dizia respeito a realizar um
estágio no exterior, coisa que era absolutamente inédita, até então, nos
programas da Residência Médica da EPM, e por esta razão, não sabíamos como
reagiriam nossos dirigentes a esta proposta. O segundo problema era saber se
Dr. Toccalino me aceitaria como especializando em seu serviço, posto que não o
conhecia pessoalmente e tampouco tinha qualquer informação da possível
existência deste tipo de programa em seu Serviço. Felizmente, no entanto, as
soluções foram pouco a pouco aparecendo e as barreiras foram sendo derrubadas.
Em relação ao primeiro problema, decidi conversar com o Prof. Azarias Andrade
de Carvalho, chefe do Departamento de Pediatria da EPM, e, portanto, a pessoa
responsável pelas decisões a serem tomadas. Nesta conversa Prof. Azarias não
somente vislumbrou com grande entusiasmo esta possibilidade, como mais ainda
assumia total responsabilidade, perante os outros dirigentes do Programa de Residência
Médica da EPM, pela autorização da possível e inédita viagem. Em relação ao
segundo problema recebemos uma notícia alvissareira da parte do Prof. Fernando
Nóbrega, naquela época chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de
Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que nos informou que uma residente
de terceiro ano da sua Faculdade estava estagiando no serviço do Dr. Toccalino,
portanto, a porta começava a se abrir.
Estávamos
em meados do ano de 1972 e em outubro realizar-se-ia o Congresso Pan-americano
de Pediatria, por coincidência, em Córdoba, Argentina, e, imaginávamos que muito
provavelmente Dr. Toccalino deveria estar presente no aludido evento; seria,
portanto, a oportunidade ideal para contatá-lo para solicitar a permissão para
trabalhar em seu Serviço em 1973. Como Prof. Jamal tivesse aprovado um trabalho
de pesquisa para ser apresentado no Congresso e dispunha de duas passagens
aéreas, com a autorização do Prof. Azarias, viajamos os dois para Córdoba
esperançosos em alcançar nossos objetivos, ou seja, encontrar Dr. Toccalino e
dele receber a aprovação sobre a minha especialização em seu Serviço, em Buenos
Aires.
Como
era esperado Dr. Toccalino estava em Córdoba, em determinado momento nos
recebeu com toda gentileza e para nossa agradabilíssima surpresa disse que me
receberia em seu Serviço com a maior satisfação a partir de janeiro de 1973. A
alegria foi tamanha que antes de voltarmos ao Brasil, como era um fim de
semana, decidimos comemorar o êxito da nossa missão visitando Buenos Aires,
cidade que viria a ser a minha morada no ano vindouro (Figuras 2 – 3 - 4 - 5).
Figura 2-
Imagem ao fundo da tradicional Casa Rosada, sede do Governo da Argentina.
Figura 3-
Prof. Jamal e eu à beira o rio da Prata, famoso local turístico portenho.
Figura 4- Vista do famoso Parque Palermo.
Figura 5- Visita a Ciudad de Niños no caminho a La Plata
A
viagem com destino a Buenos Aires
Finalmente,
ambos os problemas foram devidamente superados, e, a tênue e nebulosa idéia
inicial havia definitivamente se materializado, surgia límpida e cristalina,
totalmente delineável e palpável. Agora eu e minha família (mulher e filho)
estávamos prontos e ansiosos para partir rumo ao desconhecido, para os braços
da nossa primeira aventura no exterior.
No
nosso próximo encontro já estaremos a caminho do nosso destino, vencendo os
2.000 km que separam São Paulo de Buenos Aires, em nossa valorosa Variant, mas
antes, porém, passaremos por Punta Del Este e Colônia de Sacramento (Figuras 6 - 7 - 8 - 9 - 10) aonde tomaremos o ferry-boat Nicolas Mianovich (atualmente este
barco está ancorado no bairro da Boca e tornou-se um museu náutico) para cruzar
o rio da Prata e chegarmos, por fim, à capital portenha.
Figura 6-
Uma das conhecidas praias de Punta del Este, a Playa Brava. Ao fundo vê-se o
centro da cidade.
Figura 7- Vista da Praia Brava.
Figura 8-Vista de uma das inúmeras mansões de veraneio dos milionários argentinos e uruguaios na região do Country Grill, em Punta del Este.
Figura 10-
Nossa valorosa Variant antes de cruzar o rio da Prata, ainda em Colônia do
Sacramento.
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