sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Doença Celíaca e Constipação (1)



Uma manifestação clínica pouco descrita e aparentemente contraditória, mas que deve ser considerada em determinadas circunstâncias



A clássica descrição da Doença Celíaca cursando com diarreia crônica e agravo do estado nutricional, ou seja, a manifestação florida e consagrada desta enfermidade, nos dias atuais, já não é vista com tanta frequência como ocorria em um passado não distante. As possíveis razões para esta mudança de comportamento de apresentação não são de todo conhecidas, mas sem dúvida alguma, o advento dos testes sorológicos de rastreamento, inicialmente com a introdução dos anticorpos anti-gliadina, e posteriormente com os anticorpos anti-endomíseo e anti-transglutaminase, mais sensíveis e específicos do que os primeiros propiciaram desvendar o que se convencionou denominar o “iceberg” da Doença Celíaca. A parte visível seria constituída pelas manifestações floridas e a submersa representaria as mais diversas formas chamadas de “atípicas” ou “silentes”, ou ainda “monossintomáticas” ou “assintomáticas”. Nestas circunstâncias passaram a ser descritas inúmeras manifestações não convencionais, digestivas e extra-digestivas. Dentre as manifestações atípicas digestivas a constipação surge como uma das possibilidades sintomáticas, muito embora seja pouco descrita na literatura médica. Neste sentido, no número de junho de 2012 da Revista Paulista de Pediatria tivemos a oportunidade de publicar o artigo Doença Celíaca e Constipação: descrição de uma manifestação clínica atípica pouco frequente – Cristiane Boé, Adriana C. Lozinsky, Francy R. Patrício, Jacy A. Andrade, Ulysses Fagundes-Neto. – Revista Paulista de Pediatria 2012;30:283-7”. Considerando a alta prevalência de constipação no nosso meio e reconhecendo que a imensa maioria dos pacientes que apresenta esta queixa, o problema representa um transtorno funcional, há uma tendência natural em não se aprofundar na investigação clínica-laboratorial. Entretanto, quando algum sinal de alerta pode ser caracterizado é necessário levantar a suspeita de se estar lidando com alguma patologia de caráter bem definido, e, portanto, avançar na investigação diagnóstica. Por esta razão, a seguir transcrevo na íntegra o supracitado relato de 2 casos de Doença Celíaca cursando com constipação.    


INTRODUÇÃO
A Doença Celíaca (DC) é uma intolerância permanente ao glúten, caracterizada por atrofia total ou subtotal da mucosa do intestino delgado proximal, hiperplasia das criptas e infiltrado linfocítico intra-epitelial, e conseqüente má absorção dos nutrientes da dieta, em indivíduos geneticamente susceptíveis (1). A DC é considerada uma enteropatia crônica imunomediada (2) e apresenta íntima associação com o antígeno de histocompatibilidade (HLA) da classe II, DQ2 e DQ8 (3).
A forma clássica da DC, descrita por Samuel Gee (3), em 1888, caracteriza-se por diarréia crônica, distensão abdominal, perda de peso e/ou retardo no ritmo do crescimento, vômitos, dor abdominal, irritabilidade e atrofia da musculatura glútea (4). Embora esta ainda seja a forma mais freqüente de manifestação clínica da DC, cada vez mais estão sendo descritas as formas atípica e assintomática.
A descrição de constipação como manifestação atípica da DC é pouco freqüente na literatura, principalmente em Pediatria. Egan-Mitchell et al (5), em 1972, realizaram uma análise de 112 crianças com diagnóstico de DC e encontraram que 10,7% (12) delas apresentavam constipação. Por outro lado, Sharma A et al (6), em 2007, realizaram um estudo com crianças com suspeita diagnóstica de DC e verificaram que em 4% (1/18) dos casos a manifestação atípica era constipação.
O objetivo deste artigo é relatar 2 casos de pacientes portadores de DC cuja manifestação clínica atípica foi constipação crônica.
       
RELATO DOS CASOS

Caso 1
Paciente do sexo feminino, 36 meses de idade, apresentava queixa de constipação desde os 18 meses. Era acompanhada no serviço de Ortopedia do Hospital São Paulo, devido à história de torcicolo crônico recidivante (sic). Como apresentasse concomitantemente queixa de constipação crônica foi encaminhada ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica da mesma instituição.
Segundo a mãe, a partir dos 18 meses a menor passou a ter dificuldade para evacuar, caracterizada por eliminação de fezes endurecidas, de formato cilíndrico com rachaduras e espessura aumentada.
A paciente fazia esforço e sentia dor para evacuar, e em algumas ocasiões apresentava sangue vivo rutilante em fio de linha recobrindo as fezes. Devido a estes sintomas fazia uso frequente de lactulose em baixas doses, sem sucesso, e, periodicamente, supositório de glicerina.
A paciente recebeu aleitamento natural exclusivo até os 6 meses de vida e, durante este período, evacuava 2 a 3 vezes por dia, fezes pastosas sem dificuldade.
A mãe introduziu dieta do desmame a partir dos 7 meses constituída por leite de vaca integral com farinha de cereais (Mucilon de arroz e aveia®) e dieta sólida contendo glúten (macarrão).
Como antecedente familiar relevante a paciente tem uma irmã de 6 anos que sofre de epilepsia de difícil controle desde os 3 anos de idade.

Ao exame físico: peso 11,4 kg e estatura de 88,5 cm (ambos os dados antropométricos no terceiro percentil). Apresentava palidez cutânea +/++++, massa palpável de consistência endurecida na fossa ilíaca e flanco esquerdo. A inspeção anal revelou-se sem anormalidades e no toque retal pode-se palpar pequena quantidade de fezes de consistência endurecida.
Nesta ocasião foram consideradas as seguintes hipóteses diagnósticas: baixo peso e baixa estatura (escore z peso/idade=  -1,9; estatura/idade= -1,6; peso-estatura= -1,5), constipação crônica e anemia ferropriva.
Foram solicitados os seguintes exames de investigação laboratorial: hemograma, ferro sérico, ferritina sérica, hormônio tireoestimulante, tirosina livre, urina tipo 1 e cultura, protoparasitológico de fezes e radiografia simples do abdome. Na ocasião foi prescrito desimpactação fecal por enema evacuatório com fosfato de sódio mono e dibásico (Fleet enema®), além de lactulose (Lactulona®), como laxante de manutenção na dose 2 ml/Kg/dia.
A paciente retornou para consulta após 1 mês sem relatar alívio da constipação, porém, foi observado que não havia sido cumprido o esquema terapêutico proposto.
Em virtude do baixo peso e da baixa estatura, além da deficiência de ferro e ferritina séricas (tabela 1) identificadas, foram solicitados testes de avaliação da função digestivo-absortiva (teste do H2 no ar expirado com sobrecargas de glicose, frutose, lactose e lactulose) e determinação do anticorpo antitransglutaminase tecidual (AATG) e imunoglobulina A sérica (tabela 2).
Tabela 1: Caso 1 - Investigação laboratorial



Ferro
32mcg/dL (37 a 170mcg/dL)
Ferritina
8,4ng/mL (11 a 307ng/mL)
TSH
1,24µUI/mL (0,34 a 5,6 µUI/mL)
T4 Livre
0,8ng/dL (0,58 a 1,64ng/dL)
Parasitológico de fezes – 3 amostras
Negativo
Urina 1
Normal
Hb; Ht
11,5g/dL; 35%



Exames realizados para investigação de baixo peso e baixa estatura. Entre parênteses, estão discriminados os valores de referência.

Tabela 2: Caso 1- Investigação laboratorial utilizando o teste do hidrogênio no ar expirado (valores expressos em partes por milhão – PPM)




Frutose
Lactose
Lactulose
Glicose
Jejum
0
4
1
0
15 min
0
3
0
0
30 min
10
0
0
0
45 min
27
0
8
0
60 min
36
14
27
1
90 min
15
7
20
1
120 min
10
10
12
0



Teste do hidrogênio no ar expirado com sobrecarga dos seguintes carboidratos: glicose (G), frutose (F), lactose (L) e lactulose (Lac). Os testes com G, L e Lac revelaram-se dentro da normalidade (elevação dos níveis de H2 no ar expirado inferiores a 20 PPM em relação ao nível de jejum). No caso da Lac, é esperada elevação do nível de H2 no ar expirado após o tempo de 60 minutos, posto que trata-se de carboidrato não absorvível, e esta elevação representa a ação fermentativa da flora bacteriana colônica. O teste com F resultou em má absorção deste carboidrato, porém não revelou intolerância, posto que a paciente não apresentou quaisquer sintomas de intolerância.

Em virtude da dosagem do anticorpo antitransglutaminase sérica ter-se revelado acima do valor de referência (33,62 unidades – valor de referência menor que 20 unidades) foi solicitada a realização da biópsia de intestino delgado por via endoscópica. Apresentou nível sérico da Imunoglobulina A 111,1mg/dL (valor de referência entre 24 a 190mg/dL).
A análise histológica evidenciou atrofia vilositária subtotal com linfocitose intraepitelial difusa e discreto aumento do infiltrado linfoplasmocitário na lâmina própria (classificação Marsch 3A) (7) (Figuras 1 e 2).

Figura 1- Espécime de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária subtotal com linfocitose intra-epitelial e discreto aumento do infiltrado linfoplasmocitário na lâmina própria (10X HE).                 



 Figura 2- Espécime de biópsia do intestino delgado em maior aumento evidenciando uma vilosidade intestinal com a presença de linfócitos intra-epiteliais em grande quantidade, identificados pelas setas (100X HE).

Diante deste achado histopatológico foi estabelecido o diagnóstico de DC e introduzida dieta isenta de glúten. Após 2 meses do início do tratamento dietético a paciente passou a apresentar fezes pastosas com frequência diária das evacuações.

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