Um problema de saúde pública universal (6)
Uma
proposta de diagnóstico precoce da Doença Celíaca: uma nova revolução
desvendando ainda mais a parte não visível desta enfermidade
É consenso internacional
que o critério diagnóstico de certeza da DC é a demonstração de atrofia
vilositária Marsh 3. Entretanto, há evidencias de que a lesão da mucosa do
intestino delgado se instala de forma gradual, e, portanto, admite-se que
enteropatias moderadas podem evoluir para atrofia vilositária total e
hiperplasia das criptas, caso a ingestão de glúten se mantenha de forma
continuada. Dados atuais sugerem que alguns pacientes que apresentam somente
enteropatias moderadas podem apresentar sintomas ou mesmo complicações clínicas
em decorrência da ingestão de glúten antes de desenvolverem atrofia vilositária
total. Este fato desperta a inevitável questão se acaso os atuais critérios
diagnósticos para caracterizar a DC ainda sejam válidos (Figura 1).
Figura 1- Aspectos
progressivos da lesão do intestino delgado na Doença Celíaca.
Kalle Kurppa e
colaboradores (Gastroenterology 2009; 136: 816-23), em Tampere, na Finlândia,
levando em consideração a hipótese acima considerada realizaram uma
investigação clínica controlada, de forma prospectiva e randomizada, para
avaliar o efeito da intervenção do glúten em pacientes suspeitos de sofrerem de
DC que apresentavam positividade ao autoanticorpo anti-Endomíseo (EMA) e que à
biópsia do intestino delgado evidenciavam linfocitose, mas arquitetura
vilositária normal. Foram realizadas biópsias de intestino delgado em 70 pacientes
EMA positivos, e destes, 23 apresentavam apenas enteropatia moderada (Marsh
1-2), os quais foram aleatoriamente distribuídos para continuarem recebendo
dieta contendo glúten ou dieta isenta de glúten. Após o período de 1 ano foram
repetidas as avaliações clínicas, sorológicas e histológicas. Um grupo de 47
pacientes com lesões da mucosa do intestino delgado compatíveis com DC (Marsh
3) e submetidos à dieta isenta de glúten serviram como grupo controle enfermo.
No grupo que recebeu dieta
contendo glúten (Marsh 1-2) a arquitetura da mucosa intestinal se agravou em
todos os indivíduos, e os sintomas persistiram assim como a positividade do
EMA. Em contraste, naquele grupo que recebeu dieta isenta de glúten os sintomas
desapareceram, os títulos do EMA diminuíram, e a morfologia da mucosa
intestinal se normalizou, da mesma forma que ocorreu no grupo controle enfermo.
Quando o ensaio clínico terminou todos os indivíduos decidiram adotar uma dieta
isenta de glúten.
Os autores concluiram que
os indivíduos que apresentaram EMA positivo se beneficiaram com a adoção de uma
dieta isenta de glúten, a despeito de não apresentarem atrofia vilositária
total. Baseados nos resultados dessa pesquisa os autores propõem que os
critérios diagnósticos para DC necessitam ser revistos, valorizando os
resultados positivos dos marcadores sorológicos EMA e ATTG, até então
considerados “falso positivos”. Enfatizam que a positividade dos marcadores
sorológicos mesmo na ausência de atrofia vilositária é uma indicação para a
adoção de uma dieta isenta de glúten.
Levando-se em consideração
os resultados dessa importante pesquisa, e, nos colocando na expectativa de que
essas observações sejam confirmadas em outros centros, passaremos a admitir que
a parte não visível do “iceberg” é ainda maior do que aquela até o presente momento
conhecida.
Tratamento
Atualmente, o único
tratamento disponível para a DC é dietético, consistindo na eliminação do
trigo, centeio e cevada, de forma permanente, da dieta do paciente.
É fortemente recomendável
que o tratamento com a dieta isenta de glúten apenas se inicie após a
confirmação diagnóstica por meio da realização da biópsia do intestino delgado.
É de fundamental
importância o cumprimento efetivo da dieta isenta de glúten a fim de assegurar
desenvolvimento pôndero-estatural e puberal adequados, manter adequada a
densidade mineral óssea, preservar a fertilidade, reduzir o risco de anemia
ferropriva e de deficiências de outros micro-nutrientes, bem como prevenir o
surgimento de doenças malignas do trato digestivo, tal como o linfoma do
intestino delgado. Entretanto, é do conhecimento geral que, na prática, manter
a obediência restrita à dieta isenta de glúten de forma permanente é um grande
desafio para o médico e para o paciente. A transgressão alimentar pode ser
voluntária ou inadvertida. A transgressão voluntária costuma ocorrer em todas
as faixas etárias e a inadvertida ocorre devido a incorreta inscrição dos
ingredientes nos rótulos dos alimentos, ou então, à contaminação com glúten em
um determinado produto industrializado.
Vale a pena frisar que há
poucos estudos disponíveis na literatura médica a respeito das taxas de adesão
à dieta isenta de glúten. Vera Lúcia Sdepanian, juntamente com Ulysses Fagundes Neto e colaboradores (Arquivos de Gastroenterologia 2001; 38: 232-38)
Professores da
Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina da
UNIFESP realizaram uma investigação com o objetivo de avaliar a obediência à dieta
isenta de glúten, o conhecimento teórico acerca da DC e seu tratamento pelos
pacientes cadastrados na Associação dos Celíacos do Brasil (ACELBRA). Foi
enviado pelo correio um questionário para se determinar a obediência da adesão
à dieta isenta de glúten, do conhecimento teórico e do tratamento da DC a 584
membros cadastrados na ACELBRA. Foram retornados 529 (90,6%) questionários
devidamente preenchidos, os quais revelaram que 69,4% dos pacientes nunca
ingerem glúten e 29,5% reconhecem que não cumprem a dieta de forma restrita. A
proporção dos pacientes que ingere glúten freqüentemente ou que não faz
restrição alguma é maior entre aqueles com idade igual ou maior a 21 anos
(17,7%) do que os com idade menor (9,9%). A freqüência de obediência à dieta
isenta de glúten foi maior quando o intervalo de tempo em que foi estabelecido
o diagnóstico da DC foi inferior a cinco anos. Para 96,2% dos pacientes que
responderam ao questionário a dieta deve ser totalmente isenta de glúten,
enquanto que para os 3,8% restantes o glúten pode ser ingerido semanal ou
mensalmente. Segundo 67,1% dos pacientes o glúten é uma proteína, enquanto que
para 10,2% é uma enzima, 5,5% um carboidrato, 0,6% uma gordura e 16,6%
responderam que não sabiam. Quanto aos cereais onde o glúten está presente
98,7% responderam no trigo, 94,7% na cevada, 95,1% na aveia, 93,4% no centeio e
1,0% no arroz. Com relação aos possíveis substitutos dos alimentos que contém
glúten, a farinha de milho foi referida em 97,9% dos inquéritos, o polvilho em
98,3%, a fécula de mandioca em 98,9%, e a farinha de arroz em 97,5%. Este
estudo demonstra que o esclarecimento da causa da DC e seu respectivo
tratamento exercem papel fundamental no cumprimento da dieta isenta de glúten
de forma restrita.
Monitoramento
dos Pacientes
Recomenda-se que os
pacientes portadores de DC sejam monitorados por meio de visitas periódicas ao
médico, para que este possa avaliar a existência ou não de sintomas compatíveis
com transgressões dietéticas, analisar a curva de crescimento e a adesão à
dieta isenta de glúten.
Recomenda-se também a
determinação dos auto-anticorpos (ATTG ou EMA) após os primeiros 6 meses da
confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado e do início do
tratamento com dieta isenta de glúten. Caso a dieta esteja sendo rigorosamente
cumprida o título do auto-anticorpo deve cair abruptamente ou mesmo desaparecer.
Por outro lado, caso o título permaneça elevado associado ou não a alguma
manifestação clínica é muito provável que o paciente esteja transgredindo a
dieta isenta de glúten voluntária ou inadvertidamente.
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