Uma
manifestação clínica pouco descrita e aparentemente contraditória, mas que deve
ser considerada em determinadas circunstâncias
Caso
2
Paciente
do sexo feminino, 30 meses de idade, apresentava queixa de constipação crônica
com escape fecal, a partir da retirada das fraldas, o que ocorreu aos 27 meses
de vida.
Segundo
a mãe, a paciente apresentava dor para evacuar, com fezes endurecidas e
volumosas, sem presença de sangue ou outros elementos patológicos, com
frequência de a cada 5 dias. Era medicada com lactulose (Farlac) em dose abaixo
da preconizada, sem sucesso.
Paciente
recebeu aleitamento misto até os 8 meses de vida e, durante este período,
evacuava 2 a
3 vezes por dia, fezes pastosas sem dificuldade.
Mãe
introduziu dieta sólida a partir dos 6 meses constituída por leite de vaca
(fórmula adequada para a faixa etária) e dieta sólida própria para a idade de
acordo com a orientação do pediatra. A introdução de farinhas derivadas do
trigo se deu nesta ocasião.
Como
antecedente familiar relevante o avô é portador de Doença de Crohn (sic) e a
mãe sofre de constipação crônica.
Ao
exame físico: peso= 11,7 kg
e estatura= 92 cm
(escore z peso/idade=-1,37; estatura/idade=-0,78; peso-estatura=-1,04).
Apresentava aspecto emagrecido, abdome distendido com massa palpável no flanco
esquerdo. Na
ocasião foram consideradas as seguintes hipóteses diagnósticas: 1- baixo peso
2- constipação crônica.
Foi
solicitado raio X simples de abdome que revelou imagem com excesso de gases e
fezes em toda a topografia colônica, e sugestão de existência de massa fecal
retida na ampola retal. A mãe foi, então, orientada a realizar desimpactação
fecal com clister de Fosfoenema e posteriormente manutenção com lactulose à
dose de 2 ml/kg/dia e óleo mineral à dose de 2 ml/kg/dia.
Como
a paciente mantivesse a queixa de constipação e retardo do ritmo de crescimento
um ano após a conduta inicial, peso= 13,1 kg
e estatura= 98 cm
(escore z peso/idade=-1,07) foram
solicitados os seguintes exames laboratoriais: hemograma, hormônio
tireoestimulante, tirosina, tirosina livre, triiodotironina, glicemia de jejum,
IgE, ferro, ferritina, cálcio, fósforo e fosfatase alcalina séricos. Foram
também solicitados os seguintes testes sorológicos para rastreamento de DC, a
saber: anticorpo anti-gliadina IgA e IgG, anticorpo anti-endomíseso, anticorpo
antitransglutaminase tecidual e determinação dos antígenos de
hiscompatibilidade leucocitária (HLA) DQ2 e DQ8.
Diante
dos resultados positivos para os marcadores de DC, a saber: EMA 1/320, AGA 9,9,
AATG 165, HLA DQ2 +, foi realizada a biópsia de duodeno por via endoscópia que
revelou à macroscopia imagem da mucosa duodenal em ladrilho, sugestiva da DC. A
microscopia óptica comum evidenciou atrofia vilositária de grau moderado com
significativo aumento dos linfócitos intra-epiteliais; na lâmina própria havia
aumento do infiltrado linfo-plasmocitário e hiperplasia das glândulas crípticas
(Marsh 2) (7).
A
paciente foi orientada a realizar dieta isenta de glúten, a qual foi bem
sucedida, com desaparecimento da queixa de constipação após 1 mês do tratamento
dietético.
O
presente projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Paulista de
Medicina/Universidade Federal de São Paulo.
DISCUSSÃO
A
DC celíaca é uma intolerância permanente ao glúten, e é considerada uma
enteropatia crônica imunomediada (2).
A
prevalência da DC na Europa e Estados Unidos da América tem sido descrita
variando de 1 caso para cada 100-200 indivíduos (4). Oliveira et al.
(8), em São Paulo, Brasil investigando doadores de sangue
demonstraram que a DC não deve ser considerada uma enfermidade rara, sendo sua
prevalência de, pelo menos, 1:214 indivíduos.
Além
da forma clássica as outras formas reconhecidas são: 1- assintomática ou
silenciosa: enteropatia típica sensível ao glúten, porém com ausência de
manifestações clínicas. Grande parte deste grupo é composto por parentes de
primeiro grau de pacientes com DC e pacientes com diabetes insulino-dependente (4);
2- não clássica ou atípica é caracterizada por quadro mono ou
paucissintomático. Tem início mais tardio na infância. Os pacientes podem
apresentar manifestações isoladas como baixa estatura, anemia por deficiência
de ferro refratária ao tratamento, artrite ou artralgia, convulões, hipoplasia
do esmalte dentário, dermatite herpetiforme, hipertransaminasemia, puberdade
precoce, dor abdominal recorrente e constipação (4).
As
citações de constipação como um dos sintomas de forma atípica da DC,
particularmente em artigos de revisão, são recorrentes, porém, são raras as
descrições comprovadas de constipação como sintoma da enfermidade, disponíveis
na literatura.
No
extenso levantamento bibliográfico realizado encontramos apenas 2 artigos que
descrevem constipação como sintoma de DC na faixa pediátrica. Egan-Mitchell et
al, em 1972, estudaram 112 crianças com diagnóstico de DC e encontraram que
10,7% (12 crianças) apresentavam constipação (5). Por outro lado,
Sharma A et al, em 2007, investigaram crianças com suspeita diagnóstica
de DC e constataram que constipação, como manifestação atípica, esteve presente
em 4% (1/18) dos casos (6). Estas raras descrições de constipação
como manifestação atípica de DC levaram Hungerford C, em 1996, a enviar uma carta ao
editor da revista Australian Family Physician, na qual revelou seu
desapontamento pela falta da descrição deste sintoma em crianças, pois em sua
experiência pessoal, constipação crônica é um sintoma não raro em pacientes
adultos portadores de DC (10).
A
DC é cada vez mais reconhecida na população adulta sem que conste a queixa de
diarréia, com uma porcentagem maior de pacientes que se apresentam como
indivíduos assintomáticos, frequentemente detectados em exames de triagem. As
formas atípicas estão na verdade se tornando típicas (11).
A Sociedade Norte Americana de
Gastroenterologia Pediátrica Hepatologia e Nutrição recomenda que a DC seja
considerada no diagnóstico diferencial das crianças com sintomas persistentes
do trato gastrointestinal, incluindo dor abdominal recorrente, constipação e
vômitos (12). Em 2007, um estudo multicêntrico realizado nos EUA,
demonstrou que uma intensificação na realização de testes de triagem para DC
poderia aumentar a detecção destes pacientes no país (13). Neste
estudo realizado entre 2002 e 2004, foram diagnosticados 22 casos de DC em 976
pessoas investigadas e destas, 4 apresentavam sintomas de constipação.
Comparando-se com as taxas de diagnóstico anteriores a esta intensificação nos
testes de triagem, observou-se um aumento bastante significativo de novos
casos, saltando de 0,27 casos para 11,6 casos para cada 1000 pacientes
investigados.
Nos
nossos 2 casos as pacientes apresentavam quadro de constipação crônica além de
também apresentar valores negativos nas relações do z-escore para peso e
estatura. É do conhecimento geral que a prevalência de constipação crônica é
bastante elevada na população pediátrica que busca atenção médica em gastroenterologia,
e que, em sua imensa maioria a queixa é decorrente de um transtorno funcional.
Entretanto, quando a constipação se manifesta acompanhada de outros sinais de
alarme, como, por exemplo, algum grau de agravo nutricional, este evento deve
servir de indicador para que se aprofunde a investigação diagnóstica. Em ambos
os nossos casos durante o seguimento ambulatorial a constipação persistiu
associada a um agravo nutricional, e, por esta razão, foi decidido realizar uma
avaliação da função digestivo-absortiva, a qual resultou positiva para DC.
Em
conclusão, é necessário enfatizar que a DC pode se apresentar de múltiplas
formas, a saber: sintomática, assintomática e atípica. Apesar de ser escassa a
descrição da DC cursar com constipação crônica, esta não parece ser uma
manifestação atípica de prevalência desprezível. Torna-se, portanto, de extrema
importância que os profissionais da saúde estejam atentos para esta
manifestação considerada atípica, como possível forma de apresentação da DC e
quando tal suspeita for levantada, deve-se realizar a investigação pertinente.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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