quinta-feira, 26 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (4)

O retorno de Perón à Argentina e mais transformações na vida do país e também na minha

Logo após a eleição de Campora o humor da população de um modo geral sofreu uma radiante mudança, passaram a ser respirados os ares de uma plena democracia. Antes as pessoas não se atreviam a emitir qualquer opinião política contra o governo militar por puro medo das possíveis retaliações que poderiam vir a sofrer, mas agora, porém, diante da nova realidade de plena liberdade, tudo transpirava política. A partir daí pude me dar conta do alto grau de politização que fazia parte da alma do argentino, desde o mais simples cidadão do ponto de vista educacional e sócio-cultural, passando por todas as estratificações, até o mais refinado intelectual. Em todos os ambientes que eu freqüentava, tanto no hospital quanto no bairro onde eu morava, a política era o tema que predominava em todas as conversas. Como no Brasil vivíamos uma ditadura militar que já durava nove anos, o que muito embora a mim não agradasse para nada, eu não tinha uma participação política ativa contra a ditadura, entendia que minha função era trabalhar como médico atendendo a população e continuar a estudar para manter-me atualizado na minha área de atuação. Na verdade, afora a Medicina meu grande envolvimento era com o esporte, mais particularmente o futebol, minha eterna paixão, a qual perdura até os dias atuais. A política não me entusiasmava e, na verdade, eu não tinha a consciência da importância do exercício da plena cidadania, poderia mesmo me considerar um alienado politicamente falando, o tema até mesmo me aborrecia. Foi o convívio com meus pares no hospital e no bairro onde morava que, pouco a pouco, fui percebendo, quase de forma inconsciente, que a política permeia todas as nossas ações na vida, queiramos ou não ela está intimamente ligada aos nossos destinos. Assim é que no hospital, como que em um passe de mágica, o assunto das conversas que girava apenas em torno da Medicina, até então, começou a dar lugar, mais e mais, às questões políticas pelos quais o país passava, mas muito além disso, vivíamos a época da plena guerra fria, portanto, a política mundial também entrava em cena, em particular o antagonismo direita-esquerda, capitalismo-socialismo, democracia-comunismo. Eu me considerava absolutamente neófito neste campo do conhecimento, principalmente porque meus interlocutores conheciam, pelo menos sob meu ponto de vista, profundamente o assunto, e, como me sentia um total ignorante, me calava para escutar e aprender. Mas como me referi anteriormente, política também se discutia no bairro, muito embora em nível bem menos elitizado. Eu morava em um prédio de três andares pertencente a um único dono e aí praticamente habitava apenas a sua família que era numerosa. O andar térreo era todo constituído por lojas que o patriarca alugava para o comércio. Dentre as várias lojas existentes havia uma quitanda e um açougue como parte do mesmo negócio que era dirigido por um senhor mais idoso e seus dois filhos que tinham aproximadamente a minha idade, o Negro e o Pepe. Como aí fazíamos as compras do dia a dia, pouco a pouco fomos nos tornando amigos, no princípio por causa do futebol, mas depois do retorno à democracia a discussão política passou a preponderar. Alguns dias da semana depois de chegar do hospital, no começo da noite, como na Argentina não se costuma jantar antes das 21 horas, enquanto minha mulher preparava a comida eu descia para a quitanda para conversar com eles que sempre me esperavam com uma garrafa de vinho e algum aperitivo. Aí passávamos longos minutos divagando sobre os mais variados temas políticos, e, como já havia aprendido algo no hospital com meus colegas médicos, aqui eu me atrevia a dar algumas opiniões, já me sentia seguro para tal. Freqüentemente outras pessoas, geralmente fornecedores de mercadorias, também participavam desses deliciosos encontros. Uma delas, em particular, o fornecedor de cigarros que vinha em seu furgãozinho, também da nossa idade, era um peronista fanático, e por mais que se criticasse Perón, ele apresentava um argumento infalível para defendê-lo. Dizia ele, meu pai era muito pobre, um simples operário, mas foi no governo de Perón que ele conseguiu adquirir a sua casa própria, e, isto tem um valor incalculável, é uma dívida de honra contraida com Perón para todo o sempre. Foi aí que pude entender duas coisas ao mesmo tempo, primeira, porque praticamente não havia imóveis para serem alugados em Buenos Aires, e, segunda, o real significado da expressão “realizar o sonho de ter a casa própria”, o que a imensa maioria dos meus compatriotas não possuía. Foi assim, paulatinamente que eu fui me politizando e desfrutando com entusiasmo o direito da livre expressão, sem censuras externas ou autocensura, fui sorvendo com enorme alegria esse ambiente de democracia na sua mais pura conceituação. Havia atingido o que se denomina, em algumas situações críticas, “o ponto do não retorno”, não conseguiria mais me calar diante da falta de liberdade de expressão, esta salutar transformação me havia atingido em cheio e me conquistado definitivamente. Havia assumido um compromisso moral comigo mesmo que ao retornar ao Brasil iria lutar ativamente pela reconquista da democracia, e assim o fiz de forma incansável, pacificamente, dentro das minhas possibilidades. Eu que havia viajado apenas para fazer uma especialização em Gastroenterologia Pediátrica, retornaria com mais uma bagagem no meu currículo pessoal, ter me transformado em um ser político, um defensor incondicional da democracia.

As discussões políticas, entretanto, não impediam que eu continuasse a desempenhar ativamente minhas tarefas assistenciais e de pesquisa, mesmo porque, estas conversas ocorriam nos intervalos das nossas atividades, durante o café no meio da manhã e o almoço, como ficou comprovado conforme está escrito no meu diário:

”...tenho aproveitado muito as seções de Raios-X, uma vez por semana as rotineiras, mas na realidade tenho ido de duas a três vezes por semana para acompanhar os meus pacientes. É muito interessante principalmente acompanhar os exames contrastados visualizando também a radioscopia, o que nos dá uma excelente noção da dinâmica do trato digestivo. Nunca tinha visto tanta chapa de estômago em toda minha vida e mais uma vez a verdade se repete, quem procura acha, e tenho achado úlceras gástricas e duodenais em crianças.

Tenho estudado bastante e procurado muita bibliografia sobre tudo que diz respeito à gastroenterologia. Fiz, ou melhor, estou terminando de fazer, pelo Current Contents (
era a melhor e mais moderna forma de se pesquisar a literatura médica na época, não existia internet nem o Google), uma completa revisão de 1972 e praticamente enchi um caderno com referências bibliográficas. Continuo, porém, angustiado em querer estudar tudo e aprender tudo sobre esse mundo que é a gastroenterologia, e, evidentemente, não consigo dominar nem sobre 1/10 das informações disponíveis. No entanto, continuo buscando coisas novas para estudar.

Meu entendimento com o pessoal aqui é muito bom e já fiz grandes amizades, principalmente com dois especializandos de La Plata. Um deles, Eduardo Cueto Rua (Figura 1), desenvolve um trabalho sobre Balanço Metabólico, que por sinal é uma coisa muito interessante.


Figura 1- Eduardo Cueto Rua cuidando de uma criança colocada em "Balance" (Balanço Metabólico), notar embaixo da cama a proveta volumétrica que era utilizada para mensurar as perdas fecais separadas de urina. Cueto era um dos especializandos de La Plata de quem tornei-me íntimo amigo, amizade que perdura inabalável até os dias atuais. Cueto trabalha no Hospital Soror Ludovica em La Plata aonde é chefe do Serviço de Gastroenterologia; ele tem especial interesse pela Doença Celíaca.


Consiste em colocar a criança (tem que ser do sexo masculino) em uma cama cujo colchão tem um orifício na sua porção central, de tal forma a permitir que sejam coletadas separadamente fezes de urina. Sabendo-se rigorosamente o que a criança ingeriu de líquidos e nutrientes, pode-se determinar com alto grau de precisão, confrontando-se os ingressos com as excreções urinárias e fecais, bem como medindo-se o volume das excretas e dosando-se a quantidade de gorduras, proteínas e açúcares nas fezes, se as perdas são normais ou anormais, e neste último caso qual a intensidade da anormalidade (Vale ressaltar que quando voltei ao Brasil, trabalhando no hospital Umberto I, na década de 1980, consegui implantar uma unidade metabólica para determinar o balanço de crianças com diarréia aguda e persistente, com a colaboração irrestrita dos médicos residentes, que denominavam a cama metabólica de “cama diabólica”, pelo insano trabalho para controlar todas as variáveis, mas que são de uma utilidade inestimável para oferecer o melhor cuidado assistencial ao paciente (Fguras 2-3 & 4).

Figura 2- Visão da entrada da Unidade Metabólica do Hospital Umberto I inaugurada no final da década de 1980 em homenagem a Dr. Horácio Toccalino.

Figura 3- Paciente portador de diarréia persistente e desnutrição grave colocado em balanço metabólico no Hospital Umberto I.
Figura 4- Visão de uma das salas da Unidade Metabólica Dr. Horácio Toccalino no Hospital Umberto I, observando-se as enfermeiras cuidando de pacientes que se recuperaram do quadro diarréico enquanto um outro paciente encontra-se na cama "diabólica" realizando balanço metabólico.
A implantação deste método, com sucesso, passou a nos permitir o cálculo, com exatidão, das perdas hidro-eletrolíticas e nutricionais dos pacientes, o que nos trouxe conhecimentos fantásticos a respeito dessas doenças. As taxas de mortalidade intra-hospitalar por diarréia aguda caíram a ZERO e as por diarréia persistente se mantiveram sempre abaixo dos 5%. Estes resultados espetaculares no tratamento destas enfermidades que, em passado não remoto, haviam sido as principais causas de mortalidade intra-hospitalar no nosso meio, conseqüentemente, possibilitaram a realização de inúmeras publicações em periódicos médicos nacionais e internacionais, nos quais relatávamos os meios pelos quais os êxitos haviam sido alcançados).

Aqui no hospital meu cartaz com o pessoal médico e da manutenção está grande por causa do futebol, estamos disputando um campeonato inter-hospitalar e temos ganhado todas as partidas, eu sou o artilheiro do torneio (o futebol sempre me ajudou na vida).

Em resumo estou muito feliz aqui e penso que sentirei muita saudade de tudo e de todos quando voltar ao Brasil, e como experiência médica, mas, principalmente de vida, acho que todos deveriam experimentar uma coisa assim. Vale a pena!”

Perón finalmente decidiu retornar à Argentina depois de décadas de exílio em Madri. Um grande reboliço se armou no país para receber de volta o velho caudilho, o pai dos descamisados como se autodenominava. A Argentina literalmente parou em um dia de setembro de 1973, mais de oito milhões de argentinos (a Argentina, naquela época, tinha 30 milhões de habitantes), vindos de todos os rincões se acotovelaram ao longo da autopista que liga o aeroporto de Ezeiza ao centro de Buenos Aires, para celebrar delirantemente o retorno daquele que o povo havia alcunhado como “El primer trabajador”. Poucos dias após seu retorno já se falava abertamente que Campora renunciaria para que houvesse nova eleição, possibilitando, assim, que Perón retornasse ao poder. Dito e feito, Campora renunciou, uma nova eleição presidencial teve lugar e Perón com Isabel de Perón de vice-presidente, obteve uma vitória esmagadora. Mais uma vez Juan Domingo Perón, agora com Isabelita, mas sem Evita, governaria a República Argentina. Entretanto, desta vez, já muito idoso e completamente debilitado mental e fisicamente, Perón veio a falecer logo no começo de 1974, deixando o posto para sua vice Isabelita, que seria deposta em 1976, por uma nova ditadura militar, que se instalou por longos anos, espalhando a desgraça entre muitas famílias, gerando os famosos desaparecidos.

No tocante às questões sociais a vida na Argentina, naquela época, era bastante barata, praticamente não havia inflação, e o câmbio nos favorecia significativamente, de tal forma que embora o salário de residente, que eu percebia, fosse apenas simbólico, como eu recebia o aluguel de uma casa em São Paulo, podíamos manter um nível de vida modesto, porém sem penúria. Como nossos amigos mais próximos eram os especializandos de La Plata, Eduardo Cueto Rua, Jorge Donatone, Luis Guimarey e “Negro” Rodrigues (Figuras 5-6-7-8 & 9) e que também levavam uma vida muito modesta porque os salários eram baixos, costumávamos com freqüência nos reunir nos fins de semana, no nosso apartamento em Buenos Aires ou viajávamos a La Plata, para longas conversas regadas com um vinho nacional barato, porém decente, e comer fantásticos “asados” (churrascos), porque a carne deles é realmente imbatível, além de barata.

Figura 5- Nosso filho Uly passeando em pleno inverno portenho no parque Centenário em um fim de semana. Neste parque que se localizava próximo ao nosso apartamento eu costumava dar minhas corridas na volta do hospital.
Figura 6- Desfrutando com os amigos de la Plata um "Asado" na casa quinta do sogro de Cueto, o advogado Dr. Carrera.

Figura 7- Mais uma visão do galpão aonde se comiam os "Asados", na casa quinta em Villa Eliza próximo de La Plata.


Figura 8- Nosso filho Uly brincando com Mercedita, filha de Cueto, na casa quinta de Dr. Carrera.

Figura 9- Uma foto histórica, que nunca mais pode ser repetida, com os quatro amigos "Platenses", da esquerda para a direita, Guimarey, Donatone, Cueto, eu e "Negro" Rodrigues.

Vivíamos modestamente, mas a família estava profundamente unida e feliz, tamanha era a felicidade que em Buenos Aires, como uma homenagem a quem nos acolheu com tanto carinho, foi gerada nossa segunda filha, Juliana, a "portenha", que se tornou professora de inglês e extraordinária atriz e cantora.

No nosso próximo encontro terminarei de descrever minha vivência portenha pessoal e profissional, com especial referência ao meu querido mestre e amigo Dr. Horácio Toccalino.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (3)

Os acontecimentos políticos que afetaram a vida do país e da população, inclusive a minha pessoal e profissional

O ano de 1973 reservou grandes transformações e surpresas que modificaram de forma dramática o modelo político da Argentina, o que afetou diretamente a vida da população inclusive a minha profissional e pessoal. Naquele ano o país teve três Presidentes da República, inicialmente saiu de uma ditadura militar, em seguida elegeu um novo Presidente da ala moderada da esquerda peronista e finalmente teve de volta o velho caudilho, Juan Domingo Perón, já completamente decadente física e mentalmente.
Quando cheguei, em janeiro, governava o país o general Lanusse que havia se comprometido a entregar a nação de volta à normalidade democrática, e para tal, foi marcada a data da eleição para a presidência da república, a qual foi vencida por Hector Campora, um tradicional e fiel peronista da ala moderada da esquerda, mas que imediatamente se tornou refém dos radicais de esquerda, em especial do grupo denominado os Montoneros. Assim que Campora assumiu o governo, no meio do ano, os Montoneros desencadearam uma série de invasões em propriedades públicas destituindo diretorias em nome do povo e de uma pretensa revolução de libertação do jugo militar. Isto também ocorreu no Posadas, e toda a direção foi sumariamente demitida em uma assembléia geral convocada de última hora, na qual todos os funcionários do hospital tinham direito a voz e voto. Esta convocação incluía desde os trabalhadores de apoio até os profissionais da saúde, inclusive eu, que aparentemente não tinha nada que ver com os acontecimentos, ainda por cima sendo estrangeiro e temporário no país. Foi uma reunião extremamente tensa e interminável, assustadora mesmo, porque em determinado momento parecia que iria descambar para uma pancadaria generalizada, tão intensamente alterados estavam os ânimos entre os participantes que se digladiavam verbalmente, com violência e insultos recíprocos. Finalmente, o Diretor Superintendente foi destituído por meio de uma votação, praticamente simbólica, totalmente manipulada pelos Montoneros, os quais dirigiam a sessão. Quando a reunião terminou conversei com Dr. Toccalino que externou todo seu desânimo quanto ao destino futuro, pelo menos em breve prazo, do hospital; a sensação por ele transmitida era de que uma catástrofe havia se abatido sobre a instituição, e, tudo que pudesse existir de pior, corria-se o risco de vir a ocorrer daí em diante. Isto me afetou profundamente, fiquei tremendamente preocupado com a minha vida e a da minha família, afinal de contas eu tinha uma enorme responsabilidade com o bem estar dos meus entes queridos e também um compromisso moral de realizar a especialização. Estava no meio do caminho, havia aprendido muita coisa, porém havia muito mais conhecimento a ser incorporado, ainda mais em um momento crescente da minha formação. A angustia que em mim se abateu foi intensa, não tinha a menor idéia de como nem quando essa desordem iria terminar. De fato, durante as duas semanas seguintes pouco se fez em matéria de trabalho, éramos sistematicamente convocados para assembléias gerais para discutirmos os destinos do hospital, reuniões tensas, intermináveis e sem quaisquer soluções práticas. Felizmente, dia após dia as coisas foram se acalmando, os Montoneros se retiraram do hospital, e a vida foi paulatinamente voltando à rotina anterior, e assim registrei em meu diário:

“Parece mentira, mas já se passaram 5 meses da minha especialização e fazendo um balanço das coisas penso que o saldo tem sido bastante positivo apesar de todas as intercorrências políticas que praticamente paralisaram o serviço durante uns quinze dias, somando-se ainda a greve dos Residentes que, por falta de pagamento dos seus salários, paralisaram suas atividades durante dez dias. Eu, em solidariedade, os acompanhei e deixei de cumprir com as minhas atividades assistenciais rotineiras. Agora, felizmente, tudo já voltou ao normal.

Do ponto de vista das minhas atividades assistenciais tenho aproveitado bastante, visto uma série grande de doenças com as quais ainda não havia tido experiência prévia, tais como hepatite tóxica, hepatite crônica, pólipo juvenil, cavernomatose da veia porta com hipertensão portal (Figura 1),


Figura 1- Da esquerda para a direita Dr. Mairon Lima, médico brasileiro, radicado em Brasília, que chegou no segundo semestre para realizar a especialização, Dra. Sonia Malowiski, residente de terceiro ano do Posadas, Dr. Ricardo Licastro, médico senior e Chefe da Hepatologia, e a paciente AC, natural de Tucuman, portadora de cavernomatose da porta. Foi minha paciente durante o tempo em que esteve internada, fui seu padrinho de crisma juntamente com Sonia. Apresentava hematêmese devido a presença de varizes esofágicas, e, na época, foi submetida a uma cirurgia bastante delicada, uma derivação porto-esplênica; sobreviveu, voltou para Tucuman, e em 1998, quando lá estive, ela veio me visitar no hotel, já tinha mais de trinta anos, totalmente assintomática, e trazia consigo sua filhinha, foi um momento de enorme emoção, nunca mais eu tinha tido conhecimento da sua evolução. Mairon voltou a Brasília e lá montou o serviço de Gastropediatria no hospital de Base, nos tornamos amigos íntimos, amizade que perdura até os dias atuais. Sonia se casou com "Chango" Córdoba e foi com êle viver em La Pampa. Licastro depois de alguns anos abandonou a Medicina para se dedicar a outra atividade profissional.
cirrose, alergia ao leite de vaca e à soja, intolerância aos carboidratos, várias formas de apresentação da doença celíaca, inclusive com constipação, glicogenose, divertículo de Meckel, doença inflamatória intestinal, linfangiectasia intestinal, úlcera duodenal, estenose hipertrófica do piloro, afora aquelas comumente vistas no nosso meio, tais como, diarréia aguda e diarréia prolongada. Inclusive no que diz respeito à doença celíaca vale a pena frisar a espetacular recuperação clínica e nutricional que os pacientes apresentam quando são colocados em dieta isenta de glúten, ou seja, com restrição de trigo, aveia e centeio (Figuras 2-3-4 & 5).
Figura 2- Paciente portadora de doença celíaca por ocasião do diagnóstico com grau intenso de desnutrição.


Figura 3- A mesma paciente vista de perfil.

Figura 4- A mesma paciente depois de algumas semanas em dieta isenta de gluten. Notar a espetacular recuperação clínica e nutricional; a distensão abdominal costuma perdurar por certo tempo em virtude da hipotonia da musculatura abdominal durante o período de desnutrição.

Figura 5- A mesma paciente em visão frontal.

No tocante à parte de procedimentos tenho realizado um bom número de biópsias de intestino delgado, em média 2 a 3 por semana ( por sinal a primeira que realizei foi no final de março), e realmente a coisa não é segredo algum. Tenho também realizado retosigmóidoscopias com biópsia retal uma vez por semana, e já fiz uma biópsia hepática.

Uma vez por semana faço ambulatório com Dr. Toccalino, e isto tem sido de grande utilidade prática, pois além de atender pacientes de consultório também acompanhamos a evolução dos pacientes que estiveram internados. Uma grande experiência, sem dúvida alguma!”

Como se pode depreender do relato acima nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados, mas tudo o que viria depois suplantou totalmente às mais exigentes expectativas, e, pelo menos para mim não fazia parte dos planos iniciais, mesmo porque sequer havia sido imaginado. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a Pesquisa! Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, e me absorvia integralmente, mas não conflitava com as atividades clínicas, bem ao contrário, era uma complementação. Em virtude da grande empatia e amizade que foi sendo construída entre nós dois e como o estudo da Bacteriologia do Intestino estava sendo a grande curiosidade da pesquisa clínica e experimental, com muitos artigos sendo publicados na literatura internacional, Dr. Toccalino me propôs o desafio de realizar um projeto de investigação em pacientes portadores de diarréia aguda e crônica. Iríamos estudar a microflora bacteriana do intestino delgado destas crianças com a hipótese de que iríamos encontrar um sobrecrescimento bacteriano da flora fecal anormalmente elevado na secreção jejunal e com isto demonstrar que este achado seria pelo menos mais um fator responsável pela perpetuação da diarréia. Para se conseguir obter amostras da secreção jejunal era necessário fazer com que os pacientes se submetessem a introdução de uma sonda de polietileno radiopaca por via nasal, até que sua extremidade distal alcançasse as primeiras porções do jejuno. A evolução da sonda era acompanhada por radioscopia e quando a mesma atingisse o local desejado era feita aspiração da secreção com uma seringa, todo o procedimento realizado em condições estéreis. Após a obtenção da secreção jejunal, esta era semeada em placas de Agar para cultura e identificação das colônias bacterianas (Figura 6-7-8 & 9).

Figura 6- Foto das sondas de polietileno de tripla via usadas para obter sescreção jejunal. Ao fundo Guimaray e mais atrás o bosque na parte posterior do hospital.

Figura 7- Fotografia de uma chapa de raio X mostrando a localização do trajeto da sonda ao longo do tubo digestivo.

Figura 8- Realização do procedimento de coleta da secreção jejunal.


Figura 9- Dra. Norma (Bacteriologista) semeando na placa de agar o líquido jejunal.
A partir desta proposta que imediatamente aceitei, passei a fazer um vastíssimo levantamento da literatura a respeito do tema e que possibilitou publicar meu primeiro trabalho na literatura médica, um artigo de revisão publicado em 1973 na revista Acta Gastroenterologica Latino Americana, em espanhol. Os dois outros trabalhos realizados foram escritos e publicados em inglês na literatura médica internacional, em 1976, a saber, Archives of Gastroenterology e Acta Paediatrica Scandinavica. Além disso, anteriormente foram também apresentados oralmente como temas livres no Congresso Mundial de Pediatria, que se realizou em Buenos Aires, em 1974. Estes trabalhos nos colocavam no topo da produção científica a respeito da bacteriologia do intestino, estávamos naquele dado momento nos limites da fronteira do conhecimento. Esta experiência teve uma valia incalculável, porque quando voltei ao Brasil me associei ao grupo do Prof. Luis Rachid Trabulsi, na Escola Paulista de Medicina, um dos maiores pesquisadores de enterobactérias em nível internacional, e inúmeros trabalhos de pesquisa passamos a realizar em conjunto nos anos vindouros. Desde então a pesquisa passou a ser uma das minhas mais importantes prioridades no plano profissional como docente, pois produzir novos conhecimentos é um dos pilares básicos da vida universitária.

No nosso próximo encontro darei continuidade aos aspectos políticos, sociais e científicos da minha experiência argentina.

segunda-feira, 16 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (2)

A chegada a Buenos Aires e a busca por uma nova moradia
Ao chegarmos a Buenos Aires, em meados de janeiro de 1973, nos instalamos no Hotel Diplomat, localizado na “calle San Martin”, uma rua paralela à “calle Florida”. O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro. Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste. Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 1-2 & 3).

Figura 1- A família na sala de estar do nosso apartamento. O violão servia para matar as saudades de casa.


Figura 2- Desfrutando o fim do verão em Palermo com o filho de 1 ano de idade.


Figura 3- A visita da minha mãe depois de longa ausência.
O hospital Policlínico Alejandro Posadas e o começo das minhas atividades de especialização

O Policlínico Alejandro Posadas, ainda nos dias atuais, é um hospital público federal, localiza-se em Haedo, fora da capital federal, mas que faz parte da área da Grande Buenos Aires, a alguns poucos quilômetros depois de se cruzar a avenida General Paz em direção a oeste (esta avenida circunda a cidade de Buenos Aires e separa a capital federal da Província de Buenos Aires, cuja capital é La Plata). Está situado em uma ampla área de terreno cercado por um enorme gramado e um lindo bosque. Foi construído na década de 1950 para ser um sanatório para tratamento de tuberculose, mas nunca funcionou como tal, e somente foi aberto em 1970, para funcionar como um hospital geral, tendo aproximadamente 1000 leitos sendo 100 deles para Pediatria (Figuras 4-5-6-7 & 8).

Figura 4- Vista da entrada principal do Policlínico Alejandro Posadas.



Figura 5- Vista lateral do hospital mostrando o bloco da Pediatria.
Figura 6- Vista desde o andar da gastropediatria para a entrada principal do hospital e visão parcial da cidade de Haedo ao fundo.
Figura 7- Vista do jardim de entrada do hospital e visão parcial do centro da cidade de Haedo ao fundo.



Figura 8- Vista da varanda de um dos apartamentos de internação do hospital, o jardim e o bosque na parte posterior. Da esquerda para a direita Jorge Donatone, especializando de La Plata, Mirta Ciocca, residente de terceiro ano, e "Negro" Rodriguez, especializando de La Plata. Donatone especializou-se em Endoscopia, trabalha no hospital Soror Ludovica em La Plata, escreveu um lindo livro sobre endoscopia e atualmente está lançando o segundo livro sobre o tema e me convidou para escrever o Prefácio do mesmo. Mirta especializou-se em Hepatologia, atualmente é Chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Garrahan, Buenos Aires, somos grandes amigos desde aqueles dias. "Negro" tornou-se ativista político contra a ditadura que se instalou em 1976 e é um dos desaparecidos.
O serviço de Pediatria, cujo chefe era Dr. Toccalino, já era todo dividido por especialidades pediátricas e os leitos de internação estavam localizados em amplos apartamentos, com banheiro acoplado, na maioria das vezes ocupados por apenas duas camas, nunca mais do que quatro. Os pais tinham permissão para permanecer todo o tempo que desejassem junto com seus filhos, fato totalmente inédito para mim naquela época, porque aqui no Hospital São Paulo, e possivelmente na quase totalidade dos hospitais públicos brasileiros, as crianças permaneciam internadas desacompanhadas e somente era permitida a visita dos pais duas vezes por semana durante o período de meia hora. Apenas no início da década de 1990 é que foi promulgada uma lei criando obrigatoriamente a figura dos pais participantes em todos os hospitais brasileiros. Portanto, foi para mim o primeiro choque, muito positivo por sinal, ter que travar contato direto com os pais das crianças internadas nos leitos que eu cuidava e dar a eles todas as satisfações e explicações do que estava ocorrendo com seus filhos. Diga-se de passagem, isto foi um impacto tão importante para mim que, quando voltei ao Brasil, passei a defender fervorosamente esta idéia, tendo encontrado inúmeras resistências contrárias a essa proposta, e somente consegui implementar este modelo quando me tornei chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo, em São Paulo, a partir de 1986.
O programa de Residência Médica em Pediatria estava bem consolidado e nos primeiros dois anos era semelhante ao nosso, ou seja, Pediatria Geral com rodízios nas enfermarias, ambulatórios e pronto-socorro. No terceiro ano, porém, o Residente escolhia uma especialidade pediátrica, dentre as muitas oferecidas, para se especializar. Eu entrei como médico residente de terceiro ano tendo que cuidar dos meus leitos, realizar os procedimentos de investigação diagnóstica da especialidade e atender o ambulatório de pacientes externos e ex-internados, sob a supervisão de um médico sênior. O ambulatório de pacientes externos eu fazia diretamente com Dr. Toccalino, como seu assistente. Como parte do programa de treinamento tinha também que participar das inúmeras reuniões científicas de apresentação de trabalhos, discussão de casos clínicos, revisão das lâminas das biópsias no serviço de Patologia, e da realização dos exames radiológicos, tudo isto no que se referia à especialização na Gastropediatria (Figuras 9 & 10). Além disso, uma vez por semana tinha que estar presente na reunião clínico-científica do Serviço de Pediatria, quando todos os médicos contratados, residentes e especializandos participavam com apresentações de casos clínicos das diversas especialidades, e, periodicamente, também havia alguma palestra com um médico convidado externo. Tratava-se, pois, de um programa bastante intenso de atividades assistenciais e científicas em tempo integral, afora as horas extras que eu tinha que conseguir encaixar no meu dia a dia para me dedicar aos estudos mais atualizados da literatura médica.
Figura 9- Reunião de revista com Dr. Toccalino (ao fundo à esquerda); à direita ao fundo Jorge Donatone e mais próximo Eduardo Cueto Rua (outro especializando de La Plata).


Figura 10- Os temíveis "pases de sala" (visitas aos leitos) sob o comando do Dr. Toccalino, quando ele cobrava de todos a eficiência no atendimento aos pacientes internados. No primeiro plano à direita está Luis Guimarey especializando de La Plata, tornou-se Nutrólogo, foi preso político durante a ditadura, exilou-se no Brasil por meu intermédio juntamente com sua família, foi professor da UNICAMP e retornou à La Plata assim que terminou a ditadura e atualmente é Chefe do Serviço de Nutrologia do hospital Soror Ludovica. Ainda em primeiro plano à esquerda está "Chango" Córdoba, residente do Posadas, natural de Tucuman, nos tornamos grandes amigos jogando futebol nos fins de semana. Quando terminou a residência foi para La Pampa, interior da Argentina, exercer pediatria como intensivista do hospital local. Depois de 25 anos sem vê-lo, em 1998, recebi um chamado telefônico de sua mulher contando que êle havia sofrido um infarto e estava em Buenos Aires para ser operado e que êle havia dito a ela que queria me ver de qualquer maneira. Por coincidência na semana seguinte eu iria a Tucuman, havia sido convidado para dar palestras em um evento científico, então, fiz uma escala em Buenos Aires para vê-lo; êle já havia sido operado, tendo sido colocadas umas quantas pontes de safena, e estava convalescendo da cirurgia, recuperando-se muito bem; nosso reencontro foi cercado de uma emoção enorme para nós, depois de tantos anos sem nos vermos. Voltei a vê-lo pela última vez em Córdoba durante o Congresso Latinoamericano de Gastroenterologia Pediátrica em 2001, ele viajou desde sua cidade, mais de 400 km de distância, especialmente para vir me ver, nos divertimos muito naqueles dias, êle estava especialmente alegre e parecia muito feliz. Na semana seguinte, já de volta a São Paulo, recebi um telefonema da sua mulher contando-me que êle havia falecido, sofreu uma parada cardíaca fulminante enquanto estava atendendo um paciente no hospital da sua cidade.
Era, enfim, uma experiência maravilhosa e eu me sentia fascinado por tudo aquilo que estava vendo e vivenciando, não somente pelo conhecimento médico adquirido, mas principalmente pelo enriquecimento global como ser humano, sob todos os aspectos que se queira considerar. Além de tudo isso, a oportunidade de poder exercer ativamente a minha profissão, naquele momento específico da carreira, em circunstâncias absolutamente ímpares até então, representava algo de extraordinária importância pelo próprio desafio que encerrava. Participar como protagonista e não como mero espectador dessa nova situação significava vencer uma série de barreiras, e, dentre elas, a primeira e a mais crucial, a adaptação. Tratava-se de um hospital estranho, em uma nação que não era a minha, aonde se falava um idioma diferente do nosso, (ainda que quase todo brasileiro acredite que saiba falar espanhol, eu incluído, o que isto vale, em parte, para os lugares turísticos porque os nativos estão treinados no nosso idioma e tem necessidade profissional de entender e serem entendidos), e que precisava ser totalmente dominado porque era requisito fundamental para tornar possível o relacionamento com colegas e pacientes. Enfim, tudo era novidade na minha existência até então, a primeira experiência de vida no exterior, como ser humano e como médico, o que em determinados momentos me deixava profundamente inseguro, para não dizer desesperado, tudo podia ser um grande fracasso pessoal e profissional, mas ao mesmo tempo altamente excitante. Com efeito, na prática todas estas dificuldades foram sentidas logo no início das minhas atividades como está registrado no meu diário, três semanas após haver começado a especialização: “devo dizer que fui muito bem recebido, sou muito bem tratado, sinto-me quase que à vontade, mas é claro que o problema da língua atrapalha um bocado, não tanto para compreender, muito embora de algumas pessoas, especialmente de outro especializando que vem de La Plata, consigo entender muito pouco do que falam. Mas, sem dúvida a dificuldade maior é para me fazer comunicar, posto que eles não conseguem entender qualquer palavra que não seja em espanhol, e isto me deixa muito angustiado, sinto-me como um verdadeiro débil mental, enquanto eu falo as pessoas me olham como se eu fosse de outro planeta. Espero que logo mais isto deixe de ser um problema... pelo menos assim espero”. E, de fato, com muito esforço diário para suplantar estas dificuldades, algum tempo depois deixou de ser um problema, o que indiscutivelmente contribuiu de forma decisiva para um ótimo relacionamento pessoal com colegas e pacientes, bem como para aquilo que eu havia me proposto realizar.

Em pouco tempo mais já estava familiarizado com todos aqueles procedimentos da especialidade, teoricamente a razão primordial da minha viagem, mas que na prática resultou em parcela significativa, mas longe de ser a única, pois a experiência de vida que se incorpora nestas circunstâncias tão especiais é incalculavelmente maior. Para demonstrar meu domínio com os procedimentos da especialidade assim ficou registrado em meu diário, em 14 de maio, após três meses e quinze dias de trabalho: “agora já estou totalmente adaptado, tanto na parte médica quanto na comunicação, felizmente superei este obstáculo que muito me preocupava; tenho a responsabilidade direta sobre quatro leitos, os quais me ocupam uma parcela significativa do tempo pela gravidade dos casos e em relação às minhas atividades com os usos das sondas de intubação intestinal e as biópsias de intestino delgado sinto-me completamente à vontade e não tenho tido quaisquer problemas mais. Tenho realizado também algumas retosigmoidoscopias (vale salientar que naquela época não existiam ainda os endoscópios flexíveis específicos para uso em crianças) e participado ativamente, também, em muitos exames radiológicos, bem como, tomado muita radiação. Na parte clínica tenho visto muitas novidades, tanto doenças totalmente desconhecidas, até então, quanto outras já conhecidas, mas cuja conduta aqui é bastante diferente daquilo que estava acostumado a ver aí em São Paulo, e a mortalidade destes pacientes é praticamente nula. Fazer o ambulatório com Dr. Toccalino tem sido uma fantástica experiência, ele atende os pacientes, eu me sento ao seu lado e fico observando tudo àquilo que ele faz; no fim da jornada repassamos todos os pacientes atendidos e discutimos cada caso individualmente, o diagnóstico e a conduta a serem tomadas. Estamos construindo um relacionamento extremamente amistoso, ele tem sido muito paciente com minhas dificuldades com o idioma e a rotina do serviço, o que me deixa cada dia mais à vontade e mais seguro de que estou no caminho certo com a escolha que fiz. Vi também o primeiro caso de Doença Celíaca, esta enfermidade tão misteriosa para mim até então (Figuras 11 & 12). Tenho a mais absoluta certeza de que muitos desnutridos que vemos em São Paulo, e que são considerados casos de desnutrição por problemas sócio-econômicos, na verdade são portadores de Doença Celíaca. Quando voltar a São Paulo irei investigar estes pacientes obsessivamente, e estou seguro que irei encontrar esta enfermidade no Brasil (o que na verdade ocorreu assim que retornei a São Paulo, e a partir deste primeiro caso, inúmeros outros passaram a ser diagnosticados). O que está me angustiando agora é a quantidade de coisas que a especialidade apresenta e o desejo de estudar tudo ao mesmo tempo, o que é claro, não é possível. Não sei o que fazer! Ultimamente (3 semanas para cá) não tenho estudado muito, ou pelo menos com a mesma continuidade que o vinha fazendo anteriormente, devido as minhas obrigações de cuidar dos meus leitos (pacientes internados) e dos meus dois trabalhos de investigação clínica.”

Figura 11- A primeira paciente com Doença Celíaca que eu vi, cuidada pela Dra. Mirta Ciocca.




Figura 12- A mesma paciente vista de perfil para melhor evidenciar o importante agravo nutricional, desnutrição intensa devido à síndrome de má absorção provocada pela Doença Celíaca.
Como se depreende do relato acima, nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados na minha rotina; tudo o que viria depois suplantou totalmente as melhores expectativas e os planos iniciais. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a investigação. Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, me absorvia quase que integralmente, mas que não conflitava com as atividades clínicas, muito ao contrário, as complementava.

No nosso próximo encontro além de continuar relatando minhas atividades hospitalares também descreverei um pouco da vida familiar, social e política vivenciada naquela época de muitas transformações na Argentina, as quais vieram a afetar de forma dramática a vida de toda a população por muitos anos, posto que em um breve futuro chegaria uma feroz e sangrenta ditadura que ceivou a vida de mais de 30.000 pessoas.

terça-feira, 10 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (1)

As motivações, os preâmbulos e as tratativas para a viagem de especialização

A Residência Médica

Corria o ano de 1970, eu estava cursando o último ano de Medicina (naquela época já era denominado internato), na Escola Paulista de Medicina. Havia muito tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha uma meta obsessiva que era fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo, posto que tinha absoluta consciência de que não me sentiria seguro em exercer a profissão sem ter passado por esta extraordinária vivência de treinamento em serviço. A instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio, representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que tornava o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas disponíveis para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental importância aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de internato para obter tão almejado êxito. Naquele tempo, isto era tudo o que meu pensamento alcançava, até então, em termos futuros como médico e possivelmente como professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico prestei o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui aprovado, e assim, um novo horizonte surgiu na minha vida profissional, pelo menos para os três anos seguintes haveria uma definição clara dos próximos desafios a serem enfrentados.

Antes, porém, durante o internato, quando eu estava fazendo o estágio na Pediatria, por coincidência, concomitantemente como parte dos eventos comemorativos dos 50 anos de fundação da Associação Paulista de Medicina, foi organizado um curso de atualização em várias especialidades médicas, inclusive em Pediatria. Convidado pelo preceptor do internato e residência naquela época, professor Jamal Wehba, fui assistir às aulas que eram ministradas por três professores convidados do exterior. Dois deles eram professores seniores, Svoboda, alemão, especialista em ortopedia e o outro Fred Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas magistrais. Mas quem mais me chamou a atenção foi um jovem professor argentino, Horácio Nestor Toccalino, gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas extremamente práticos condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles tempos. Abordava, sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarréia aguda e diarréia crônica, demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos tão freqüentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de morbidade e mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes às famílias sócio-economicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou também uma enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida a Doença Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que aprendi naqueles dias e creio que aí começou minha inclinação pela Gastroenterologia Pediátrica, a qual se tornou irremediavelmente irreversível.

Os dois primeiros anos de residência reforçaram a idéia da necessidade imperiosa de escolher uma super-especialidade dentro da Pediatria, porém sem jamais negar a formação generalista. Naquela época eram raras as especialidades pediátricas reconhecidas, tais como, neonatologia, neurologia, cirurgia pediátrica, genética para citar as mais consolidadas, as outras encontravam-se em estágio ainda muito incipiente de implantação. O Pediatra tinha uma formação de generalista e quando necessitava a opinião de um especialista era chamado um clínico de adultos, o que não trazia na prática, na maioria das vezes, grande contribuição para a solução dos problemas. Esta situação associada ao fato de que eu não conseguia dominar com segurança todas as diversas patologias que tinha que enfrentar no dia a dia me gerava grande angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um pouco de tudo, mas apenas na superficialidade, o que me deixava profundamente frustrado, queria conhecer as patologias mais profundamente, queria entender as causas dos processos, não apenas as conseqüências. Além disso, uma das principais causas de internação nas nossas enfermarias era por diarréia aguda e/ou crônica associada à desnutrição e que acarretavam altíssimas taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era freqüente deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários pacientes com diarréia e quando voltava na manhã seguinte encontrava estes mesmos leitos vazios porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela situação me deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução para estes problemas tão freqüentes e tão graves, era preciso conhecer mais a fundo os mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente agressor e o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental enveredar para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que vinha cercada de conflitos, posto que as resistências contra a especialização no campo da Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e justificado orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do médico generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam, pois, a perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da época provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo que havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu grande sonho era encaminhar-me para a vida universitária, e para ter êxito neste desejo era imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico.

O Grupo de Estudo

No início do segundo ano da Residência, como conseqüência de todas as angústias e frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente observados no manejo dos pacientes portadores de diarréia e desnutrição, resolvemos constituir um grupo de estudo composto pelo nosso preceptor Prof. Jamal e por um grande amigo desde os bancos do curso universitário e agora colega na Residência Dr. Fernando Fernandes, para nos aprimorar nos novos conhecimentos que se avolumavam na literatura a respeito deste terrível binômio diarréia-desnutrição. Passamos, então, a nos reunir semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal para ler os artigos mais recentemente publicados na literatura médica sobre os principais aspectos relacionados com a fisiologia dos processos digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que envolviam a interação dos diferentes agentes enteropatogênicos e o hospedeiro, e suas conseqüentes intolerâncias alimentares. À medida que avançávamos em nossos estudos mais e mais nos conscientizávamos do quanto ignorávamos sobre o tema; isto, no entanto, serviu sempre de estímulo desafiador para que nos mantivéssemos em permanente contato. Entrávamos, assim, no mundo recentemente descrito das intolerâncias aos carboidratos da dieta, em especial da lactose, fatores perpetuadores da diarréia e agravantes da desnutrição. Começava a surgir uma nova luz na perspectiva de oferecermos uma melhor conduta nutricional aos nossos pacientes, porém, eram conhecimentos teóricos, faltava uma experiência prática para podermos ter mais segurança nas nossas propostas terapêuticas. Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a idéia de tentar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.

Os problemas a serem vencidos e a viagem a Córdoba

Diante da situação de imobilismo que se nos apresentava, para tentar dar uma solução prática para tal impasse, eu me dispus a tentar um contato com Dr. Toccalino para solicitar a realização do treinamento na especialidade em seu serviço, posto que no terceiro ano da Residência tínhamos a permissão para realizar um estágio eletivo. Havia, no entanto, dois problemas a serem enfrentados e vencidos; o primeiro deles dizia respeito a realizar um estágio no exterior, coisa que era absolutamente inédita até então nos programas da Residência Médica da Escola Paulista de Medicina, não sabíamos como reagiriam nossos dirigentes a esta proposta. O segundo problema era saber se Dr. Toccalino me aceitaria como especializando em seu serviço, posto que não o conhecia pessoalmente e tampouco tinha qualquer informação da possível existência deste tipo de programa em seu serviço. Em relação ao segundo problema recebemos uma notícia alvissareira da parte do Prof. Fernando Nóbrega, naquela época chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que nos informou que uma residente de terceiro ano da sua Faculdade estava estagiando no serviço do Dr. Toccalino, portanto, uma porta começava a se abrir. Em seguida havia que ser solucionado o primeiro problema, a permissão para realizar o estágio eletivo no exterior. Conversando com o Prof. Azarias Andrade de Carvalho, chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, ele viu com grande entusiasmo essa possibilidade e se responsabilizou pela autorização da possível viagem.

Estávamos em 1972, em outubro realizava-se o Congresso Panamericano de Pediatria, por coincidência, em Córdoba, Argentina, e, imaginávamos que muito provavelmente Dr. Toccalino deveria estar presente no aludido evento; seria, portanto, a oportunidade ideal para contatá-lo para solicitar a permissão para trabalhar em seu serviço em 1973. Como Prof. Jamal tivesse aprovado um trabalho de pesquisa para ser apresentado no Congresso e dispunha de duas passagens aéreas, com a autorização do Prof. Azarias, viajamos os dois para Córdoba esperançosos em alcançar nossos objetivos, ou seja, encontrar Dr. Toccalino e dele receber a aprovação sobre a minha especialização em seu serviço em Buenos Aires.
Como era esperado Dr. Toccalino estava em Córdoba, em determinado momento nos recebeu com toda gentileza e para nossa agradabilíssima surpresa disse que me receberia em seu serviço com a maior satisfação a partir de janeiro de 1973. A alegria foi tamanha que antes de voltarmos ao Brasil, como era fim de semana, decidimos comemorar o êxito da nossa missão visitando Buenos Aires, cidade que viria a ser a minha morada no ano vindouro (Figuras 1 & 2).

Figua 1- Imagem ao fundo da tradicional Casa Rosada, sede do Governo da Argentina.

Figura 2- Prof. Jamal e eu à beira o rio da Prata, famoso local turístico portenho.

A viagem com destino a Buenos Aires


Finalmente, ambos os problemas foram devidamente superados, e, a tênue e nebulosa idéia inicial havia definitivamente se materializado, surgia límpida e cristalina, totalmente delineável e palpável. Agora eu e minha família (mulher e filho) estávamos prontos e ansiosos para partir rumo ao desconhecido, para os braços da nossa primeira aventura no exterior.
No nosso próximo encontro já estaremos a caminho do nosso destino, vencendo os 2.000 km que separam São Paulo de Buenos Aires, em nossa valorosa Variant, mas antes, porém, passaremos por Punta Del Este e Colônia de Sacramento (Figuras 5-6 & 7) aonde tomaremos o ferry-boat Nicolas Mianovich (atualmente este barco está ancorado no bairro da Boca e tornou-se um museu náutico) para cruzar o rio da Prata e chegarmos, por fim, à capital portenha.

Figura 3- Uma das conhecidas praias de Punta del Este, a Playa Brava. Ao fundo vê-se o centro da cidade.


Figura 3- Visão do centro histórico de Colônia do Sacramento.
Figura 4- Nossa valorosa Variant antes de cruzar o rio da Prata, ainda em Colônia do Sacramento.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Alergia Alimentar e suas manifestações digestivas na infância: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (9)

Critérios Diagnósticos

História Clínica e Testes de ProvocaçãoA História Clínica continua a ser o principal pilar para estabelecer o diagnóstico de Alergia Alimentar, em especial nos pacientes menores de 6 meses de idade, posto que até esta idade a imensa maioria dos lactentes recebe apenas um tipo de alimento, seja leite de vaca ou de outro animal, fórmula láctea ou de soja. Por esta razão, torna-se mais fácil estabelecer uma relação direta causa-efeito, devido à monotonia da dieta ofertada ao lactente, diferentemente daquelas situações em que o paciente de maior idade já recebe uma dieta bastante diversificada. Vale salientar que mesmo lactentes em uso de aleitamento natural exclusivo, embora raramente, também podem apresentar manifestações clínicas de Alergia Alimentar devido à passagem de antígenos alimentares via leite materno. Por outro lado, naquelas crianças maiores, que já recebem uma dieta com grande seleção de alimentos, inúmeras outras variáveis passam a entrar em jogo, o que vai dificultar sobremaneira estabelecer a qual ou a quais alimentos o paciente apresenta Alergia. A confecção de diários alimentares costuma ser útil, principalmente quando a dieta do paciente é bastante diversificada e, também, quando o problema se torna crônico.

Do ponto de vista diagnóstico é interessante tentar categorizar a afecção alérgica pelo órgão alvo predominantemente atingido e pelo mecanismo de resposta imunológica observado. Reações mediadas por IgE costumam surgir rapidamente, enquanto que as não mediadas por IgE tornam-se evidentes apenas algumas horas ou dias após a ingestão do alergeno.
Atualmente há um consenso internacional de que o Padrão Ouro (“Gold Standard”) para o diagnóstico de Alergia Alimentar é o teste de Provocação Duplo-Cego Controlado com Placebo (PDCCP). Entretanto, há também uma aceitação geral de que na imensa maioria das vezes a realização do teste de PDCCP é praticamente inviável, em especial quanto menor for a idade do paciente. Diante da notória dificuldade de se realizar rotineiramente o teste PDCCP, tem sido também preconizada a realização de testes de provocação abertos ou simples-cegos no rastreamento de possíveis alergenos alimentares. Para aumentar a acurácia dos testes de provocação, o alimento ou os alimentos supostamente provocadores de Alergia devem ser retirados da dieta do paciente por um período de 7 a 14 dias antes da realização do teste de provocação. Vale lembrar que alguns pacientes podem sofrer de Alergia a múltiplos alimentos e, então, nestes casos é recomendável submetê-los a uma dieta à base de hidrolizado protéico por um período de 4 a 6 semanas antes de serem iniciados os testes de provocação.

Testes Laboratoriais

Para as afecções mediadas por IgE, os testes cutâneos (“prick tests”) se constituem em um rápido e sensível método de rastreamento para alimentos específicos. Testes negativos essencialmente confirmam a ausência de reação alérgica mediada por IgE (acurácia preditiva negativa >95%). Em geral, respostas negativas aos testes cutâneos são extremamente úteis para excluir Alergias Alimentares mediadas por IgE, e, por outro lado, testes cutâneos positivos, na maioria das vezes, sugerem a existência de Alergia Alimentar, embora sua especificidade (taxa de falso positivos) não seja tão elevada quanto a sensibilidade. Idealmente, ao se obter uma resposta positiva do teste cutâneo deve-se considerar confirmatório o diagnóstico de Alergia Alimentar quando este vier associado a uma história clínica altamente sugestiva de reação alérgica ao alimento em questão.

É importante assinalar que até o presente momento não se dispõe de nenhum teste cutâneo que seja confiável para o diagnóstico de Alergia Alimentar NÃO mediada por IgE.
O teste sorológico qualitativo denominado “Radioallergosorbent test” (RAST) fornece evidências sugestivas de Alergia Alimentar mediadas por IgE, porém este método tem a tendência de vir a ser progressivamente substituído por outros que são quantitativos, como por exemplo o CAP System FEIA, os quais tem demonstrado experimentalmente serem mais eficientes quanto aos seus valores preditivos.

No caso específico das manifestações das hipersensibilidades gastrointestinais uma variedade de outros testes laboratoriais podem ser extremamente úteis. Por exemplo, cerca de 50% dos pacientes portadores de Esofagite Eosinofílica e de Gastroenteropatia Eosinofílica apresentam eosinofilia periférica e podem também sofrer de anemia por perda de sangue nas fezes e diminuição nos níveis das proteínas séricas, em especial a albumina. A Endoscopia e/ou Colonoscopia com a realização das respectivas biópsias se constituem em excelentes testes diagnósticos complementares, muitas vezes evidenciando aspectos bastante característicos das lesões causadas pelos alergenos alimentares.

Os Esquemas 1 e 2 abaixo mostrados, extraídos de Philippe Eigenmann (Pediatr Allergy Immunol 2008: 19: 276-8) e por mim modificados, ilustram uma sugestão, quanto à realização dos testes de provocação, para os passos diagnósticos das Alergias Alimentares mediadas por IgE e as não mediadas por IgE.



Tratamento

O tratamento da Alergia Alimentar baseia-se estritamente na eliminação do alergeno da dieta do paciente. Enquanto o paciente estiver recebendo uma dieta baseada em apenas um determinado alimento, como geralmente ocorre com os lactentes menores de 6 mêses, seja fórmula láctea ou fórmula de soja, torna-se facilmente identificável qual a proteína que deve ser retirada da dieta. Entretanto, quando a dieta do paciente passa a ser mais variada já tendo ocorrido a introdução de outros alimentos a identificação do alergeno pode ser uma tarefa extremamente difícil de ser exercida com sucesso. Portanto, quanto mais diversificada for a dieta de um paciente que se suspeita ser portador de alergia alimentar mais trabalhoso será identificar um ou mais agentes alergênicos. Por esta razão, estrategicamente, deve-se sempre restringir ao máximo o número e a variedade dos alimentos empregados na dieta do paciente, porém, é imperioso que se tome todo o cuidado para não provocar alguma deficiência nutricional.
Lactente em Aleitamento Artificial

Nesta circunstância o paciente deve receber única e exclusivamente uma dieta hipoalergênica, ou seja, uma fórmula à base de hidrolizado protéico durante um período não inferior a 12 semanas, podendo inclusive prolongar-se até o final do primeiro ano de vida dependendo do critério do médico assistente. É esperado que as manifestações clínicas desapareçam dentro das próximas 48 horas depois da introdução da fórmula hipoalergênica. Caso os sintomas persistam ou reapareçam dentro de alguns dias após a introdução da fórmula hipoalergênica, deve-se suspeitar de intolerância à fórmula à base de hidrolizado protéico. Apesar das proteínas serem extensivamente hidrolizadas nas fórmulas à base de hidrolizado proteíco disponíveis no mercado ainda assim apresentam em sua composição pequenas frações peptídicas que podem desenvolver estímulo antigênico. Tem sido nossa experiência pessoal, aliada à experiencia internacional, que cêrca de 10 a 15% dos pacientes podem desenvolver intolerância às fórmulas à base de hidrolizado protéico. Ao se suspeitar ou mesmo se caracterizar a ocorrência de intolerância à fórmula à base de hidrolizado protéico, deve-se substituí-la para uma fórmula à base de mistura de amino-ácidos, a qual não tem qualquer estímulo antigênico, visto que são desprovidas de frações peptídicas potencialmente alergênicas. Após o sexto mês de vida devem ser introduzidos novos alimentos, porém, sempre tendo-se a devida precaução de evitar a utilização de leite de vaca e derivados, bem como produtos contendo soja. A introdução desses novos alimentos deve ser feita de forma gradual para que se possa ter uma observação criteriosa da sua tolerabilidade por parte do paciente. Como esta enfermidade tem caráter transitório, no final do primeiro ano de vida pode-se realizar um teste de desencadeamento com fórmula láctea. O desencadeamento deve ser realizado com supervisão médica, posto que, embora muito raramente, pode ocorrer choque anafilático caso o paciente ainda seja alérgico ao leite de vaca.
Lactente em Aleitamento Natural

Como já foi referido anteriormente o leite humano pode ser veículo de transporte de proteínas estranhas, potencialmente alergênicas, e desta forma, indiretamente, provocar manifestações de Alergia Alimentar. Entretanto, é de fundamental importância que NÃO seja suspenso o Aleitamento Materno, e SIM tratar de eliminar da dieta da mãe o suposto alergeno. Inicialmente deve-se eliminar o leite de vaca e seus derivados, bem como a soja e todos os produtos industrializados que contenham esta substância. Após a eliminação destes alimentos a sintomatologia deve regredir significativamente, ou mesmo desaparecer dentro das próximas 48 horas. Caso a sintomatologia persista deve-se pensar que outros alimentos, além dos anteriormente referidos, também podem estar envolvidos como causa da alergia. Nem sempre é fácil detectar qual ou quais outros alimentos podem estar perpetuando as manifestações clínicas, porém, deve-se buscar à exaustação o possível alergeno por meio da elaboração de diários da alimentação da mãe, na tentativa de se estabelecer uma relação causa-efeito.
Como motivo de inspiração e estímulo a todas as atuais e futuras mães para que tenham o desejo, o sucesso e a satisfação de amamentar seus filhos, para terminar este capítulo sobre Alergia Alimentar, deixo abaixo a fotografia de uma pintura de El Greco intitulada La Virgen de la Buena Leche que está exposta em seu museu em Toledo, Espanha.


Prevenção da Alergia Alimentar
Um grupo de “experts” da seção de Pediatria da Academia Européia de Alergologia e Imunologia Clínica recentemente publicou as recomendações para prevenir as doenças alérgicas em lactentes e pré-escolares (Pediatr Allergy Immunol 2008: 19: 1-4), as quais abaixo estão transcritas:

O aleitamento natural exclusivo é altamente recomendado para todos os lactentes independentemente da sua hereditariedade quanto à Alergia. As seguintes observações baseadas em evidências devem ser levadas em consideração:

1- A adoção de um regime dietético para a prevenção de Alergia, nos lactentes de alto risco (antecedentes hereditários de Alergia nos pais e/ou irmãos), particularmente em relação à Alergia Alimentar (Alergia ao Leite de Vaca) e Eczema (atópico ou não atópico) mostra-se altamente eficiente. O regime dietético de maior eficácia é o aleitamento natural exclusivo por pelo menos 6 meses; porém, no caso de não ser possível a prática do aleitamento natural, a introdução de fórmula com documentada hipoalergenicidade, por pelo menos 4 meses, combinada com a restrição da introdução de alimentos sólidos e leite de vaca durante o mesmo período, é altamente recomendada.

2- Não há evidências conclusivas documentadas de que qualquer exclusão dietética na mãe durante a gravidez ou no período de lactação apresenta efeito protetor sobre o lactente.

3- Não há qualquer evidência quanto a um possível efeito preventivo no que diz respeito a imposições de restrições dietéticas após os 6 meses de vida. Além disso, há insuficiente evidência para que se faça qualquer recomendação quanto às estratégias para a dieta do desmame.
E, assim, terminamos por agora, este fascinante capítulo da Pediatria, mas a êle poderemos voltar a qualquer momento quando novas informações científicas que mereçam ser divulgadas surgirem na literatura médica, posto que, inúmeras dúvidas ainda persistem e necessitam ser elucidadas.
No nosso próximo encontro passarei a descrever minha experiência de vida pessoal e profissional, quando ainda era um jovem médico, e fui fazer minha especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires, em 1973.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (8)

Enteropatia Alérgica Pós-Enterite

O quadro clínico dessa síndrome em muito se assemelha à anterior, a diferença fundamental reside no fato de as manifestações clínicas surgirem em um lactente, até aquele momento sem qualquer sintomatologia suspeita de Alergia Alimentar, após um episódio de gastroenterite aguda por algum agente enteropatogênico capaz de provocar uma lesão importante na mucosa do intestino delgado levando à ruptura da barreira de permeabilidade intestinal (Figuras 1-2-3-4 & 5), proporcionando, assim, a penetração maciça das proteínas heterólogas da dieta, potencialmente alergênicas.

Figura 1- Esquema de ruptura da barreira de permeabilidade intestinal e surgimento de Alergia Alimentar pós gastroenterite.

Figura 2- Material de biópsia de intestino delgado à microscopia óptica comum, grande aumento, mostrando nichos de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa do intestino delgado provocando intensa atrofia vilositária.

Figura 3- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia óptica comum, corte semi-fino, evidenciando nichos de Escherichia coli aderidas à superfície epitelial do intestino delgado.


Figura 4- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia eletrônica mostrando o início da lesão provocada por cêpa de Escherichia coli sobre as microvilosidades, levando a distorsão e alongamento das mesmas.


Figura 5- Material de biópsia do intestino delgado à microscopia eletrônica evidenciando a típica lesão em pedestal provocada por cêpa de Escherichia coli enteropatogênica. Notar que há total destruição das microvilosidades.

Em pacientes susceptíveis de Alergia, pode-se instalar um quadro clínico de perpetuação da diarréia (diarréia persistente) associada à síndrome de má absorção com perda de peso e parada do ritmo de crescimento (Figura 6 - 7 & 8).




Figura 6- Gráfico do crescimento pondero-estatural da paciente portadora de Alergia Alimentar pós gastroenterite. Notar a significativa perda de peso e completa parada do rítmo de crescimento.



Figuras 7 & 8- Paciente portadora de Alergia Alimentar (a mesma do gráfico acima) evidenciando grave desnutrição devido à síndrome de má absorção por ocasião do diagnóstico de Alergia Alimentar.


Os principais agentes enteropagênicos potencialmente causadores deste tipo de lesão da mucosa do intestino delgado são as cepas enteropatogênicas de Escherichia coli e o Rotavirus. As Alergias Alimentares podem ser a múltiplos alimentos, e igualmente à situação acima descrita, a duração da Alergia Alimentar é transitória, e após a introdução de tratamento dietético apropriado ocorre completa recuperação clínica e nutricional (Figuras 9 & 10).
Figura 9- Gráfico de crescimento da paciente acima após a introdução de dietoterapia apropriada; notar a significativa recuperação pondero-estatural, mas ao mesmo tempo a ocorrência de Alergia Alimentar múltipla por tempo prolongado.

Figura 10- Paciente em fase de total recuperação clínica e nutricional.

Outro agente bacteriano patogênico para o ser humano que deve ser considerado como potencial causador de Alergia Alimentar devido às suas propriedades de invasão da mucosa gástrica é o Helicobacter pylori (Figuras 11 & 12). Como é do conhecimento geral, a prevalência da infecção por esta bactéria é extremamente elevada em ambientes desprovidos de saneamento ambiental, com alto grau de confinamento e íntimo contacto físico interpessoal, o que pode se tornar em fator altamente propício para a deflagração de Alergia Alimentar nos indivíduos susceptíveis.

Figura 11- Esquema de lesão da mucosa gástrica provocada pelo Helicobacter pylori.

Figura 12- Esquema de proposta de provocação de Alergia Alimentar devido a infecção pelo Helicobacter pylori.
No nosso próximo encontro discutiremos os critérios diagnósticos e o tratamento desta tão desafiante e ao mesmo tempo fascinante síndrome que é a Alergia Alimentar.