terça-feira, 10 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (1)

As motivações, os preâmbulos e as tratativas para a viagem de especialização

A Residência Médica

Corria o ano de 1970, eu estava cursando o último ano de Medicina (naquela época já era denominado internato), na Escola Paulista de Medicina. Havia muito tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha uma meta obsessiva que era fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo, posto que tinha absoluta consciência de que não me sentiria seguro em exercer a profissão sem ter passado por esta extraordinária vivência de treinamento em serviço. A instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio, representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que tornava o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas disponíveis para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental importância aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de internato para obter tão almejado êxito. Naquele tempo, isto era tudo o que meu pensamento alcançava, até então, em termos futuros como médico e possivelmente como professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico prestei o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui aprovado, e assim, um novo horizonte surgiu na minha vida profissional, pelo menos para os três anos seguintes haveria uma definição clara dos próximos desafios a serem enfrentados.

Antes, porém, durante o internato, quando eu estava fazendo o estágio na Pediatria, por coincidência, concomitantemente como parte dos eventos comemorativos dos 50 anos de fundação da Associação Paulista de Medicina, foi organizado um curso de atualização em várias especialidades médicas, inclusive em Pediatria. Convidado pelo preceptor do internato e residência naquela época, professor Jamal Wehba, fui assistir às aulas que eram ministradas por três professores convidados do exterior. Dois deles eram professores seniores, Svoboda, alemão, especialista em ortopedia e o outro Fred Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas magistrais. Mas quem mais me chamou a atenção foi um jovem professor argentino, Horácio Nestor Toccalino, gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas extremamente práticos condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles tempos. Abordava, sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarréia aguda e diarréia crônica, demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos tão freqüentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de morbidade e mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes às famílias sócio-economicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou também uma enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida a Doença Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que aprendi naqueles dias e creio que aí começou minha inclinação pela Gastroenterologia Pediátrica, a qual se tornou irremediavelmente irreversível.

Os dois primeiros anos de residência reforçaram a idéia da necessidade imperiosa de escolher uma super-especialidade dentro da Pediatria, porém sem jamais negar a formação generalista. Naquela época eram raras as especialidades pediátricas reconhecidas, tais como, neonatologia, neurologia, cirurgia pediátrica, genética para citar as mais consolidadas, as outras encontravam-se em estágio ainda muito incipiente de implantação. O Pediatra tinha uma formação de generalista e quando necessitava a opinião de um especialista era chamado um clínico de adultos, o que não trazia na prática, na maioria das vezes, grande contribuição para a solução dos problemas. Esta situação associada ao fato de que eu não conseguia dominar com segurança todas as diversas patologias que tinha que enfrentar no dia a dia me gerava grande angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um pouco de tudo, mas apenas na superficialidade, o que me deixava profundamente frustrado, queria conhecer as patologias mais profundamente, queria entender as causas dos processos, não apenas as conseqüências. Além disso, uma das principais causas de internação nas nossas enfermarias era por diarréia aguda e/ou crônica associada à desnutrição e que acarretavam altíssimas taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era freqüente deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários pacientes com diarréia e quando voltava na manhã seguinte encontrava estes mesmos leitos vazios porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela situação me deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução para estes problemas tão freqüentes e tão graves, era preciso conhecer mais a fundo os mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente agressor e o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental enveredar para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que vinha cercada de conflitos, posto que as resistências contra a especialização no campo da Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e justificado orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do médico generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam, pois, a perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da época provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo que havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu grande sonho era encaminhar-me para a vida universitária, e para ter êxito neste desejo era imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico.

O Grupo de Estudo

No início do segundo ano da Residência, como conseqüência de todas as angústias e frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente observados no manejo dos pacientes portadores de diarréia e desnutrição, resolvemos constituir um grupo de estudo composto pelo nosso preceptor Prof. Jamal e por um grande amigo desde os bancos do curso universitário e agora colega na Residência Dr. Fernando Fernandes, para nos aprimorar nos novos conhecimentos que se avolumavam na literatura a respeito deste terrível binômio diarréia-desnutrição. Passamos, então, a nos reunir semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal para ler os artigos mais recentemente publicados na literatura médica sobre os principais aspectos relacionados com a fisiologia dos processos digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que envolviam a interação dos diferentes agentes enteropatogênicos e o hospedeiro, e suas conseqüentes intolerâncias alimentares. À medida que avançávamos em nossos estudos mais e mais nos conscientizávamos do quanto ignorávamos sobre o tema; isto, no entanto, serviu sempre de estímulo desafiador para que nos mantivéssemos em permanente contato. Entrávamos, assim, no mundo recentemente descrito das intolerâncias aos carboidratos da dieta, em especial da lactose, fatores perpetuadores da diarréia e agravantes da desnutrição. Começava a surgir uma nova luz na perspectiva de oferecermos uma melhor conduta nutricional aos nossos pacientes, porém, eram conhecimentos teóricos, faltava uma experiência prática para podermos ter mais segurança nas nossas propostas terapêuticas. Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a idéia de tentar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.

Os problemas a serem vencidos e a viagem a Córdoba

Diante da situação de imobilismo que se nos apresentava, para tentar dar uma solução prática para tal impasse, eu me dispus a tentar um contato com Dr. Toccalino para solicitar a realização do treinamento na especialidade em seu serviço, posto que no terceiro ano da Residência tínhamos a permissão para realizar um estágio eletivo. Havia, no entanto, dois problemas a serem enfrentados e vencidos; o primeiro deles dizia respeito a realizar um estágio no exterior, coisa que era absolutamente inédita até então nos programas da Residência Médica da Escola Paulista de Medicina, não sabíamos como reagiriam nossos dirigentes a esta proposta. O segundo problema era saber se Dr. Toccalino me aceitaria como especializando em seu serviço, posto que não o conhecia pessoalmente e tampouco tinha qualquer informação da possível existência deste tipo de programa em seu serviço. Em relação ao segundo problema recebemos uma notícia alvissareira da parte do Prof. Fernando Nóbrega, naquela época chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que nos informou que uma residente de terceiro ano da sua Faculdade estava estagiando no serviço do Dr. Toccalino, portanto, uma porta começava a se abrir. Em seguida havia que ser solucionado o primeiro problema, a permissão para realizar o estágio eletivo no exterior. Conversando com o Prof. Azarias Andrade de Carvalho, chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, ele viu com grande entusiasmo essa possibilidade e se responsabilizou pela autorização da possível viagem.

Estávamos em 1972, em outubro realizava-se o Congresso Panamericano de Pediatria, por coincidência, em Córdoba, Argentina, e, imaginávamos que muito provavelmente Dr. Toccalino deveria estar presente no aludido evento; seria, portanto, a oportunidade ideal para contatá-lo para solicitar a permissão para trabalhar em seu serviço em 1973. Como Prof. Jamal tivesse aprovado um trabalho de pesquisa para ser apresentado no Congresso e dispunha de duas passagens aéreas, com a autorização do Prof. Azarias, viajamos os dois para Córdoba esperançosos em alcançar nossos objetivos, ou seja, encontrar Dr. Toccalino e dele receber a aprovação sobre a minha especialização em seu serviço em Buenos Aires.
Como era esperado Dr. Toccalino estava em Córdoba, em determinado momento nos recebeu com toda gentileza e para nossa agradabilíssima surpresa disse que me receberia em seu serviço com a maior satisfação a partir de janeiro de 1973. A alegria foi tamanha que antes de voltarmos ao Brasil, como era fim de semana, decidimos comemorar o êxito da nossa missão visitando Buenos Aires, cidade que viria a ser a minha morada no ano vindouro (Figuras 1 & 2).

Figua 1- Imagem ao fundo da tradicional Casa Rosada, sede do Governo da Argentina.

Figura 2- Prof. Jamal e eu à beira o rio da Prata, famoso local turístico portenho.

A viagem com destino a Buenos Aires


Finalmente, ambos os problemas foram devidamente superados, e, a tênue e nebulosa idéia inicial havia definitivamente se materializado, surgia límpida e cristalina, totalmente delineável e palpável. Agora eu e minha família (mulher e filho) estávamos prontos e ansiosos para partir rumo ao desconhecido, para os braços da nossa primeira aventura no exterior.
No nosso próximo encontro já estaremos a caminho do nosso destino, vencendo os 2.000 km que separam São Paulo de Buenos Aires, em nossa valorosa Variant, mas antes, porém, passaremos por Punta Del Este e Colônia de Sacramento (Figuras 5-6 & 7) aonde tomaremos o ferry-boat Nicolas Mianovich (atualmente este barco está ancorado no bairro da Boca e tornou-se um museu náutico) para cruzar o rio da Prata e chegarmos, por fim, à capital portenha.

Figura 3- Uma das conhecidas praias de Punta del Este, a Playa Brava. Ao fundo vê-se o centro da cidade.


Figura 3- Visão do centro histórico de Colônia do Sacramento.
Figura 4- Nossa valorosa Variant antes de cruzar o rio da Prata, ainda em Colônia do Sacramento.

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