quarta-feira, 4 de março de 2009

Alergia Alimentar e suas manifestações digestivas na infância: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (9)

Critérios Diagnósticos

História Clínica e Testes de ProvocaçãoA História Clínica continua a ser o principal pilar para estabelecer o diagnóstico de Alergia Alimentar, em especial nos pacientes menores de 6 meses de idade, posto que até esta idade a imensa maioria dos lactentes recebe apenas um tipo de alimento, seja leite de vaca ou de outro animal, fórmula láctea ou de soja. Por esta razão, torna-se mais fácil estabelecer uma relação direta causa-efeito, devido à monotonia da dieta ofertada ao lactente, diferentemente daquelas situações em que o paciente de maior idade já recebe uma dieta bastante diversificada. Vale salientar que mesmo lactentes em uso de aleitamento natural exclusivo, embora raramente, também podem apresentar manifestações clínicas de Alergia Alimentar devido à passagem de antígenos alimentares via leite materno. Por outro lado, naquelas crianças maiores, que já recebem uma dieta com grande seleção de alimentos, inúmeras outras variáveis passam a entrar em jogo, o que vai dificultar sobremaneira estabelecer a qual ou a quais alimentos o paciente apresenta Alergia. A confecção de diários alimentares costuma ser útil, principalmente quando a dieta do paciente é bastante diversificada e, também, quando o problema se torna crônico.

Do ponto de vista diagnóstico é interessante tentar categorizar a afecção alérgica pelo órgão alvo predominantemente atingido e pelo mecanismo de resposta imunológica observado. Reações mediadas por IgE costumam surgir rapidamente, enquanto que as não mediadas por IgE tornam-se evidentes apenas algumas horas ou dias após a ingestão do alergeno.
Atualmente há um consenso internacional de que o Padrão Ouro (“Gold Standard”) para o diagnóstico de Alergia Alimentar é o teste de Provocação Duplo-Cego Controlado com Placebo (PDCCP). Entretanto, há também uma aceitação geral de que na imensa maioria das vezes a realização do teste de PDCCP é praticamente inviável, em especial quanto menor for a idade do paciente. Diante da notória dificuldade de se realizar rotineiramente o teste PDCCP, tem sido também preconizada a realização de testes de provocação abertos ou simples-cegos no rastreamento de possíveis alergenos alimentares. Para aumentar a acurácia dos testes de provocação, o alimento ou os alimentos supostamente provocadores de Alergia devem ser retirados da dieta do paciente por um período de 7 a 14 dias antes da realização do teste de provocação. Vale lembrar que alguns pacientes podem sofrer de Alergia a múltiplos alimentos e, então, nestes casos é recomendável submetê-los a uma dieta à base de hidrolizado protéico por um período de 4 a 6 semanas antes de serem iniciados os testes de provocação.

Testes Laboratoriais

Para as afecções mediadas por IgE, os testes cutâneos (“prick tests”) se constituem em um rápido e sensível método de rastreamento para alimentos específicos. Testes negativos essencialmente confirmam a ausência de reação alérgica mediada por IgE (acurácia preditiva negativa >95%). Em geral, respostas negativas aos testes cutâneos são extremamente úteis para excluir Alergias Alimentares mediadas por IgE, e, por outro lado, testes cutâneos positivos, na maioria das vezes, sugerem a existência de Alergia Alimentar, embora sua especificidade (taxa de falso positivos) não seja tão elevada quanto a sensibilidade. Idealmente, ao se obter uma resposta positiva do teste cutâneo deve-se considerar confirmatório o diagnóstico de Alergia Alimentar quando este vier associado a uma história clínica altamente sugestiva de reação alérgica ao alimento em questão.

É importante assinalar que até o presente momento não se dispõe de nenhum teste cutâneo que seja confiável para o diagnóstico de Alergia Alimentar NÃO mediada por IgE.
O teste sorológico qualitativo denominado “Radioallergosorbent test” (RAST) fornece evidências sugestivas de Alergia Alimentar mediadas por IgE, porém este método tem a tendência de vir a ser progressivamente substituído por outros que são quantitativos, como por exemplo o CAP System FEIA, os quais tem demonstrado experimentalmente serem mais eficientes quanto aos seus valores preditivos.

No caso específico das manifestações das hipersensibilidades gastrointestinais uma variedade de outros testes laboratoriais podem ser extremamente úteis. Por exemplo, cerca de 50% dos pacientes portadores de Esofagite Eosinofílica e de Gastroenteropatia Eosinofílica apresentam eosinofilia periférica e podem também sofrer de anemia por perda de sangue nas fezes e diminuição nos níveis das proteínas séricas, em especial a albumina. A Endoscopia e/ou Colonoscopia com a realização das respectivas biópsias se constituem em excelentes testes diagnósticos complementares, muitas vezes evidenciando aspectos bastante característicos das lesões causadas pelos alergenos alimentares.

Os Esquemas 1 e 2 abaixo mostrados, extraídos de Philippe Eigenmann (Pediatr Allergy Immunol 2008: 19: 276-8) e por mim modificados, ilustram uma sugestão, quanto à realização dos testes de provocação, para os passos diagnósticos das Alergias Alimentares mediadas por IgE e as não mediadas por IgE.



Tratamento

O tratamento da Alergia Alimentar baseia-se estritamente na eliminação do alergeno da dieta do paciente. Enquanto o paciente estiver recebendo uma dieta baseada em apenas um determinado alimento, como geralmente ocorre com os lactentes menores de 6 mêses, seja fórmula láctea ou fórmula de soja, torna-se facilmente identificável qual a proteína que deve ser retirada da dieta. Entretanto, quando a dieta do paciente passa a ser mais variada já tendo ocorrido a introdução de outros alimentos a identificação do alergeno pode ser uma tarefa extremamente difícil de ser exercida com sucesso. Portanto, quanto mais diversificada for a dieta de um paciente que se suspeita ser portador de alergia alimentar mais trabalhoso será identificar um ou mais agentes alergênicos. Por esta razão, estrategicamente, deve-se sempre restringir ao máximo o número e a variedade dos alimentos empregados na dieta do paciente, porém, é imperioso que se tome todo o cuidado para não provocar alguma deficiência nutricional.
Lactente em Aleitamento Artificial

Nesta circunstância o paciente deve receber única e exclusivamente uma dieta hipoalergênica, ou seja, uma fórmula à base de hidrolizado protéico durante um período não inferior a 12 semanas, podendo inclusive prolongar-se até o final do primeiro ano de vida dependendo do critério do médico assistente. É esperado que as manifestações clínicas desapareçam dentro das próximas 48 horas depois da introdução da fórmula hipoalergênica. Caso os sintomas persistam ou reapareçam dentro de alguns dias após a introdução da fórmula hipoalergênica, deve-se suspeitar de intolerância à fórmula à base de hidrolizado protéico. Apesar das proteínas serem extensivamente hidrolizadas nas fórmulas à base de hidrolizado proteíco disponíveis no mercado ainda assim apresentam em sua composição pequenas frações peptídicas que podem desenvolver estímulo antigênico. Tem sido nossa experiência pessoal, aliada à experiencia internacional, que cêrca de 10 a 15% dos pacientes podem desenvolver intolerância às fórmulas à base de hidrolizado protéico. Ao se suspeitar ou mesmo se caracterizar a ocorrência de intolerância à fórmula à base de hidrolizado protéico, deve-se substituí-la para uma fórmula à base de mistura de amino-ácidos, a qual não tem qualquer estímulo antigênico, visto que são desprovidas de frações peptídicas potencialmente alergênicas. Após o sexto mês de vida devem ser introduzidos novos alimentos, porém, sempre tendo-se a devida precaução de evitar a utilização de leite de vaca e derivados, bem como produtos contendo soja. A introdução desses novos alimentos deve ser feita de forma gradual para que se possa ter uma observação criteriosa da sua tolerabilidade por parte do paciente. Como esta enfermidade tem caráter transitório, no final do primeiro ano de vida pode-se realizar um teste de desencadeamento com fórmula láctea. O desencadeamento deve ser realizado com supervisão médica, posto que, embora muito raramente, pode ocorrer choque anafilático caso o paciente ainda seja alérgico ao leite de vaca.
Lactente em Aleitamento Natural

Como já foi referido anteriormente o leite humano pode ser veículo de transporte de proteínas estranhas, potencialmente alergênicas, e desta forma, indiretamente, provocar manifestações de Alergia Alimentar. Entretanto, é de fundamental importância que NÃO seja suspenso o Aleitamento Materno, e SIM tratar de eliminar da dieta da mãe o suposto alergeno. Inicialmente deve-se eliminar o leite de vaca e seus derivados, bem como a soja e todos os produtos industrializados que contenham esta substância. Após a eliminação destes alimentos a sintomatologia deve regredir significativamente, ou mesmo desaparecer dentro das próximas 48 horas. Caso a sintomatologia persista deve-se pensar que outros alimentos, além dos anteriormente referidos, também podem estar envolvidos como causa da alergia. Nem sempre é fácil detectar qual ou quais outros alimentos podem estar perpetuando as manifestações clínicas, porém, deve-se buscar à exaustação o possível alergeno por meio da elaboração de diários da alimentação da mãe, na tentativa de se estabelecer uma relação causa-efeito.
Como motivo de inspiração e estímulo a todas as atuais e futuras mães para que tenham o desejo, o sucesso e a satisfação de amamentar seus filhos, para terminar este capítulo sobre Alergia Alimentar, deixo abaixo a fotografia de uma pintura de El Greco intitulada La Virgen de la Buena Leche que está exposta em seu museu em Toledo, Espanha.


Prevenção da Alergia Alimentar
Um grupo de “experts” da seção de Pediatria da Academia Européia de Alergologia e Imunologia Clínica recentemente publicou as recomendações para prevenir as doenças alérgicas em lactentes e pré-escolares (Pediatr Allergy Immunol 2008: 19: 1-4), as quais abaixo estão transcritas:

O aleitamento natural exclusivo é altamente recomendado para todos os lactentes independentemente da sua hereditariedade quanto à Alergia. As seguintes observações baseadas em evidências devem ser levadas em consideração:

1- A adoção de um regime dietético para a prevenção de Alergia, nos lactentes de alto risco (antecedentes hereditários de Alergia nos pais e/ou irmãos), particularmente em relação à Alergia Alimentar (Alergia ao Leite de Vaca) e Eczema (atópico ou não atópico) mostra-se altamente eficiente. O regime dietético de maior eficácia é o aleitamento natural exclusivo por pelo menos 6 meses; porém, no caso de não ser possível a prática do aleitamento natural, a introdução de fórmula com documentada hipoalergenicidade, por pelo menos 4 meses, combinada com a restrição da introdução de alimentos sólidos e leite de vaca durante o mesmo período, é altamente recomendada.

2- Não há evidências conclusivas documentadas de que qualquer exclusão dietética na mãe durante a gravidez ou no período de lactação apresenta efeito protetor sobre o lactente.

3- Não há qualquer evidência quanto a um possível efeito preventivo no que diz respeito a imposições de restrições dietéticas após os 6 meses de vida. Além disso, há insuficiente evidência para que se faça qualquer recomendação quanto às estratégias para a dieta do desmame.
E, assim, terminamos por agora, este fascinante capítulo da Pediatria, mas a êle poderemos voltar a qualquer momento quando novas informações científicas que mereçam ser divulgadas surgirem na literatura médica, posto que, inúmeras dúvidas ainda persistem e necessitam ser elucidadas.
No nosso próximo encontro passarei a descrever minha experiência de vida pessoal e profissional, quando ainda era um jovem médico, e fui fazer minha especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires, em 1973.

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