A chegada a Buenos Aires e a busca por uma nova moradia
Ao chegarmos a Buenos Aires, em meados de janeiro de 1973, nos instalamos no Hotel Diplomat, localizado na “calle San Martin”, uma rua paralela à “calle Florida”. O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro. Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste. Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 1-2 & 3).
Figura 1- A família na sala de estar do nosso apartamento. O violão servia para matar as saudades de casa.Ao chegarmos a Buenos Aires, em meados de janeiro de 1973, nos instalamos no Hotel Diplomat, localizado na “calle San Martin”, uma rua paralela à “calle Florida”. O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro. Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste. Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 1-2 & 3).
Figura 2- Desfrutando o fim do verão em Palermo com o filho de 1 ano de idade.
Figura 3- A visita da minha mãe depois de longa ausência.
O hospital Policlínico Alejandro Posadas e o começo das minhas atividades de especialização
O Policlínico Alejandro Posadas, ainda nos dias atuais, é um hospital público federal, localiza-se em Haedo, fora da capital federal, mas que faz parte da área da Grande Buenos Aires, a alguns poucos quilômetros depois de se cruzar a avenida General Paz em direção a oeste (esta avenida circunda a cidade de Buenos Aires e separa a capital federal da Província de Buenos Aires, cuja capital é La Plata). Está situado em uma ampla área de terreno cercado por um enorme gramado e um lindo bosque. Foi construído na década de 1950 para ser um sanatório para tratamento de tuberculose, mas nunca funcionou como tal, e somente foi aberto em 1970, para funcionar como um hospital geral, tendo aproximadamente 1000 leitos sendo 100 deles para Pediatria (Figuras 4-5-6-7 & 8).
O hospital Policlínico Alejandro Posadas e o começo das minhas atividades de especialização
O Policlínico Alejandro Posadas, ainda nos dias atuais, é um hospital público federal, localiza-se em Haedo, fora da capital federal, mas que faz parte da área da Grande Buenos Aires, a alguns poucos quilômetros depois de se cruzar a avenida General Paz em direção a oeste (esta avenida circunda a cidade de Buenos Aires e separa a capital federal da Província de Buenos Aires, cuja capital é La Plata). Está situado em uma ampla área de terreno cercado por um enorme gramado e um lindo bosque. Foi construído na década de 1950 para ser um sanatório para tratamento de tuberculose, mas nunca funcionou como tal, e somente foi aberto em 1970, para funcionar como um hospital geral, tendo aproximadamente 1000 leitos sendo 100 deles para Pediatria (Figuras 4-5-6-7 & 8).
Figura 4- Vista da entrada principal do Policlínico Alejandro Posadas.
Figura 5- Vista lateral do hospital mostrando o bloco da Pediatria.
Figura 6- Vista desde o andar da gastropediatria para a entrada principal do hospital e visão parcial da cidade de Haedo ao fundo.
Figura 7- Vista do jardim de entrada do hospital e visão parcial do centro da cidade de Haedo ao fundo.
Figura 8- Vista da varanda de um dos apartamentos de internação do hospital, o jardim e o bosque na parte posterior. Da esquerda para a direita Jorge Donatone, especializando de La Plata, Mirta Ciocca, residente de terceiro ano, e "Negro" Rodriguez, especializando de La Plata. Donatone especializou-se em Endoscopia, trabalha no hospital Soror Ludovica em La Plata, escreveu um lindo livro sobre endoscopia e atualmente está lançando o segundo livro sobre o tema e me convidou para escrever o Prefácio do mesmo. Mirta especializou-se em Hepatologia, atualmente é Chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Garrahan, Buenos Aires, somos grandes amigos desde aqueles dias. "Negro" tornou-se ativista político contra a ditadura que se instalou em 1976 e é um dos desaparecidos.
O serviço de Pediatria, cujo chefe era Dr. Toccalino, já era todo dividido por especialidades pediátricas e os leitos de internação estavam localizados em amplos apartamentos, com banheiro acoplado, na maioria das vezes ocupados por apenas duas camas, nunca mais do que quatro. Os pais tinham permissão para permanecer todo o tempo que desejassem junto com seus filhos, fato totalmente inédito para mim naquela época, porque aqui no Hospital São Paulo, e possivelmente na quase totalidade dos hospitais públicos brasileiros, as crianças permaneciam internadas desacompanhadas e somente era permitida a visita dos pais duas vezes por semana durante o período de meia hora. Apenas no início da década de 1990 é que foi promulgada uma lei criando obrigatoriamente a figura dos pais participantes em todos os hospitais brasileiros. Portanto, foi para mim o primeiro choque, muito positivo por sinal, ter que travar contato direto com os pais das crianças internadas nos leitos que eu cuidava e dar a eles todas as satisfações e explicações do que estava ocorrendo com seus filhos. Diga-se de passagem, isto foi um impacto tão importante para mim que, quando voltei ao Brasil, passei a defender fervorosamente esta idéia, tendo encontrado inúmeras resistências contrárias a essa proposta, e somente consegui implementar este modelo quando me tornei chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo, em São Paulo, a partir de 1986.
O programa de Residência Médica em Pediatria estava bem consolidado e nos primeiros dois anos era semelhante ao nosso, ou seja, Pediatria Geral com rodízios nas enfermarias, ambulatórios e pronto-socorro. No terceiro ano, porém, o Residente escolhia uma especialidade pediátrica, dentre as muitas oferecidas, para se especializar. Eu entrei como médico residente de terceiro ano tendo que cuidar dos meus leitos, realizar os procedimentos de investigação diagnóstica da especialidade e atender o ambulatório de pacientes externos e ex-internados, sob a supervisão de um médico sênior. O ambulatório de pacientes externos eu fazia diretamente com Dr. Toccalino, como seu assistente. Como parte do programa de treinamento tinha também que participar das inúmeras reuniões científicas de apresentação de trabalhos, discussão de casos clínicos, revisão das lâminas das biópsias no serviço de Patologia, e da realização dos exames radiológicos, tudo isto no que se referia à especialização na Gastropediatria (Figuras 9 & 10). Além disso, uma vez por semana tinha que estar presente na reunião clínico-científica do Serviço de Pediatria, quando todos os médicos contratados, residentes e especializandos participavam com apresentações de casos clínicos das diversas especialidades, e, periodicamente, também havia alguma palestra com um médico convidado externo. Tratava-se, pois, de um programa bastante intenso de atividades assistenciais e científicas em tempo integral, afora as horas extras que eu tinha que conseguir encaixar no meu dia a dia para me dedicar aos estudos mais atualizados da literatura médica.
Figura 9- Reunião de revista com Dr. Toccalino (ao fundo à esquerda); à direita ao fundo Jorge Donatone e mais próximo Eduardo Cueto Rua (outro especializando de La Plata).O programa de Residência Médica em Pediatria estava bem consolidado e nos primeiros dois anos era semelhante ao nosso, ou seja, Pediatria Geral com rodízios nas enfermarias, ambulatórios e pronto-socorro. No terceiro ano, porém, o Residente escolhia uma especialidade pediátrica, dentre as muitas oferecidas, para se especializar. Eu entrei como médico residente de terceiro ano tendo que cuidar dos meus leitos, realizar os procedimentos de investigação diagnóstica da especialidade e atender o ambulatório de pacientes externos e ex-internados, sob a supervisão de um médico sênior. O ambulatório de pacientes externos eu fazia diretamente com Dr. Toccalino, como seu assistente. Como parte do programa de treinamento tinha também que participar das inúmeras reuniões científicas de apresentação de trabalhos, discussão de casos clínicos, revisão das lâminas das biópsias no serviço de Patologia, e da realização dos exames radiológicos, tudo isto no que se referia à especialização na Gastropediatria (Figuras 9 & 10). Além disso, uma vez por semana tinha que estar presente na reunião clínico-científica do Serviço de Pediatria, quando todos os médicos contratados, residentes e especializandos participavam com apresentações de casos clínicos das diversas especialidades, e, periodicamente, também havia alguma palestra com um médico convidado externo. Tratava-se, pois, de um programa bastante intenso de atividades assistenciais e científicas em tempo integral, afora as horas extras que eu tinha que conseguir encaixar no meu dia a dia para me dedicar aos estudos mais atualizados da literatura médica.
Figura 10- Os temíveis "pases de sala" (visitas aos leitos) sob o comando do Dr. Toccalino, quando ele cobrava de todos a eficiência no atendimento aos pacientes internados. No primeiro plano à direita está Luis Guimarey especializando de La Plata, tornou-se Nutrólogo, foi preso político durante a ditadura, exilou-se no Brasil por meu intermédio juntamente com sua família, foi professor da UNICAMP e retornou à La Plata assim que terminou a ditadura e atualmente é Chefe do Serviço de Nutrologia do hospital Soror Ludovica. Ainda em primeiro plano à esquerda está "Chango" Córdoba, residente do Posadas, natural de Tucuman, nos tornamos grandes amigos jogando futebol nos fins de semana. Quando terminou a residência foi para La Pampa, interior da Argentina, exercer pediatria como intensivista do hospital local. Depois de 25 anos sem vê-lo, em 1998, recebi um chamado telefônico de sua mulher contando que êle havia sofrido um infarto e estava em Buenos Aires para ser operado e que êle havia dito a ela que queria me ver de qualquer maneira. Por coincidência na semana seguinte eu iria a Tucuman, havia sido convidado para dar palestras em um evento científico, então, fiz uma escala em Buenos Aires para vê-lo; êle já havia sido operado, tendo sido colocadas umas quantas pontes de safena, e estava convalescendo da cirurgia, recuperando-se muito bem; nosso reencontro foi cercado de uma emoção enorme para nós, depois de tantos anos sem nos vermos. Voltei a vê-lo pela última vez em Córdoba durante o Congresso Latinoamericano de Gastroenterologia Pediátrica em 2001, ele viajou desde sua cidade, mais de 400 km de distância, especialmente para vir me ver, nos divertimos muito naqueles dias, êle estava especialmente alegre e parecia muito feliz. Na semana seguinte, já de volta a São Paulo, recebi um telefonema da sua mulher contando-me que êle havia falecido, sofreu uma parada cardíaca fulminante enquanto estava atendendo um paciente no hospital da sua cidade.
Era, enfim, uma experiência maravilhosa e eu me sentia fascinado por tudo aquilo que estava vendo e vivenciando, não somente pelo conhecimento médico adquirido, mas principalmente pelo enriquecimento global como ser humano, sob todos os aspectos que se queira considerar. Além de tudo isso, a oportunidade de poder exercer ativamente a minha profissão, naquele momento específico da carreira, em circunstâncias absolutamente ímpares até então, representava algo de extraordinária importância pelo próprio desafio que encerrava. Participar como protagonista e não como mero espectador dessa nova situação significava vencer uma série de barreiras, e, dentre elas, a primeira e a mais crucial, a adaptação. Tratava-se de um hospital estranho, em uma nação que não era a minha, aonde se falava um idioma diferente do nosso, (ainda que quase todo brasileiro acredite que saiba falar espanhol, eu incluído, o que isto vale, em parte, para os lugares turísticos porque os nativos estão treinados no nosso idioma e tem necessidade profissional de entender e serem entendidos), e que precisava ser totalmente dominado porque era requisito fundamental para tornar possível o relacionamento com colegas e pacientes. Enfim, tudo era novidade na minha existência até então, a primeira experiência de vida no exterior, como ser humano e como médico, o que em determinados momentos me deixava profundamente inseguro, para não dizer desesperado, tudo podia ser um grande fracasso pessoal e profissional, mas ao mesmo tempo altamente excitante. Com efeito, na prática todas estas dificuldades foram sentidas logo no início das minhas atividades como está registrado no meu diário, três semanas após haver começado a especialização: “devo dizer que fui muito bem recebido, sou muito bem tratado, sinto-me quase que à vontade, mas é claro que o problema da língua atrapalha um bocado, não tanto para compreender, muito embora de algumas pessoas, especialmente de outro especializando que vem de La Plata, consigo entender muito pouco do que falam. Mas, sem dúvida a dificuldade maior é para me fazer comunicar, posto que eles não conseguem entender qualquer palavra que não seja em espanhol, e isto me deixa muito angustiado, sinto-me como um verdadeiro débil mental, enquanto eu falo as pessoas me olham como se eu fosse de outro planeta. Espero que logo mais isto deixe de ser um problema... pelo menos assim espero”. E, de fato, com muito esforço diário para suplantar estas dificuldades, algum tempo depois deixou de ser um problema, o que indiscutivelmente contribuiu de forma decisiva para um ótimo relacionamento pessoal com colegas e pacientes, bem como para aquilo que eu havia me proposto realizar.
Em pouco tempo mais já estava familiarizado com todos aqueles procedimentos da especialidade, teoricamente a razão primordial da minha viagem, mas que na prática resultou em parcela significativa, mas longe de ser a única, pois a experiência de vida que se incorpora nestas circunstâncias tão especiais é incalculavelmente maior. Para demonstrar meu domínio com os procedimentos da especialidade assim ficou registrado em meu diário, em 14 de maio, após três meses e quinze dias de trabalho: “agora já estou totalmente adaptado, tanto na parte médica quanto na comunicação, felizmente superei este obstáculo que muito me preocupava; tenho a responsabilidade direta sobre quatro leitos, os quais me ocupam uma parcela significativa do tempo pela gravidade dos casos e em relação às minhas atividades com os usos das sondas de intubação intestinal e as biópsias de intestino delgado sinto-me completamente à vontade e não tenho tido quaisquer problemas mais. Tenho realizado também algumas retosigmoidoscopias (vale salientar que naquela época não existiam ainda os endoscópios flexíveis específicos para uso em crianças) e participado ativamente, também, em muitos exames radiológicos, bem como, tomado muita radiação. Na parte clínica tenho visto muitas novidades, tanto doenças totalmente desconhecidas, até então, quanto outras já conhecidas, mas cuja conduta aqui é bastante diferente daquilo que estava acostumado a ver aí em São Paulo, e a mortalidade destes pacientes é praticamente nula. Fazer o ambulatório com Dr. Toccalino tem sido uma fantástica experiência, ele atende os pacientes, eu me sento ao seu lado e fico observando tudo àquilo que ele faz; no fim da jornada repassamos todos os pacientes atendidos e discutimos cada caso individualmente, o diagnóstico e a conduta a serem tomadas. Estamos construindo um relacionamento extremamente amistoso, ele tem sido muito paciente com minhas dificuldades com o idioma e a rotina do serviço, o que me deixa cada dia mais à vontade e mais seguro de que estou no caminho certo com a escolha que fiz. Vi também o primeiro caso de Doença Celíaca, esta enfermidade tão misteriosa para mim até então (Figuras 11 & 12). Tenho a mais absoluta certeza de que muitos desnutridos que vemos em São Paulo, e que são considerados casos de desnutrição por problemas sócio-econômicos, na verdade são portadores de Doença Celíaca. Quando voltar a São Paulo irei investigar estes pacientes obsessivamente, e estou seguro que irei encontrar esta enfermidade no Brasil (o que na verdade ocorreu assim que retornei a São Paulo, e a partir deste primeiro caso, inúmeros outros passaram a ser diagnosticados). O que está me angustiando agora é a quantidade de coisas que a especialidade apresenta e o desejo de estudar tudo ao mesmo tempo, o que é claro, não é possível. Não sei o que fazer! Ultimamente (3 semanas para cá) não tenho estudado muito, ou pelo menos com a mesma continuidade que o vinha fazendo anteriormente, devido as minhas obrigações de cuidar dos meus leitos (pacientes internados) e dos meus dois trabalhos de investigação clínica.”
Era, enfim, uma experiência maravilhosa e eu me sentia fascinado por tudo aquilo que estava vendo e vivenciando, não somente pelo conhecimento médico adquirido, mas principalmente pelo enriquecimento global como ser humano, sob todos os aspectos que se queira considerar. Além de tudo isso, a oportunidade de poder exercer ativamente a minha profissão, naquele momento específico da carreira, em circunstâncias absolutamente ímpares até então, representava algo de extraordinária importância pelo próprio desafio que encerrava. Participar como protagonista e não como mero espectador dessa nova situação significava vencer uma série de barreiras, e, dentre elas, a primeira e a mais crucial, a adaptação. Tratava-se de um hospital estranho, em uma nação que não era a minha, aonde se falava um idioma diferente do nosso, (ainda que quase todo brasileiro acredite que saiba falar espanhol, eu incluído, o que isto vale, em parte, para os lugares turísticos porque os nativos estão treinados no nosso idioma e tem necessidade profissional de entender e serem entendidos), e que precisava ser totalmente dominado porque era requisito fundamental para tornar possível o relacionamento com colegas e pacientes. Enfim, tudo era novidade na minha existência até então, a primeira experiência de vida no exterior, como ser humano e como médico, o que em determinados momentos me deixava profundamente inseguro, para não dizer desesperado, tudo podia ser um grande fracasso pessoal e profissional, mas ao mesmo tempo altamente excitante. Com efeito, na prática todas estas dificuldades foram sentidas logo no início das minhas atividades como está registrado no meu diário, três semanas após haver começado a especialização: “devo dizer que fui muito bem recebido, sou muito bem tratado, sinto-me quase que à vontade, mas é claro que o problema da língua atrapalha um bocado, não tanto para compreender, muito embora de algumas pessoas, especialmente de outro especializando que vem de La Plata, consigo entender muito pouco do que falam. Mas, sem dúvida a dificuldade maior é para me fazer comunicar, posto que eles não conseguem entender qualquer palavra que não seja em espanhol, e isto me deixa muito angustiado, sinto-me como um verdadeiro débil mental, enquanto eu falo as pessoas me olham como se eu fosse de outro planeta. Espero que logo mais isto deixe de ser um problema... pelo menos assim espero”. E, de fato, com muito esforço diário para suplantar estas dificuldades, algum tempo depois deixou de ser um problema, o que indiscutivelmente contribuiu de forma decisiva para um ótimo relacionamento pessoal com colegas e pacientes, bem como para aquilo que eu havia me proposto realizar.
Em pouco tempo mais já estava familiarizado com todos aqueles procedimentos da especialidade, teoricamente a razão primordial da minha viagem, mas que na prática resultou em parcela significativa, mas longe de ser a única, pois a experiência de vida que se incorpora nestas circunstâncias tão especiais é incalculavelmente maior. Para demonstrar meu domínio com os procedimentos da especialidade assim ficou registrado em meu diário, em 14 de maio, após três meses e quinze dias de trabalho: “agora já estou totalmente adaptado, tanto na parte médica quanto na comunicação, felizmente superei este obstáculo que muito me preocupava; tenho a responsabilidade direta sobre quatro leitos, os quais me ocupam uma parcela significativa do tempo pela gravidade dos casos e em relação às minhas atividades com os usos das sondas de intubação intestinal e as biópsias de intestino delgado sinto-me completamente à vontade e não tenho tido quaisquer problemas mais. Tenho realizado também algumas retosigmoidoscopias (vale salientar que naquela época não existiam ainda os endoscópios flexíveis específicos para uso em crianças) e participado ativamente, também, em muitos exames radiológicos, bem como, tomado muita radiação. Na parte clínica tenho visto muitas novidades, tanto doenças totalmente desconhecidas, até então, quanto outras já conhecidas, mas cuja conduta aqui é bastante diferente daquilo que estava acostumado a ver aí em São Paulo, e a mortalidade destes pacientes é praticamente nula. Fazer o ambulatório com Dr. Toccalino tem sido uma fantástica experiência, ele atende os pacientes, eu me sento ao seu lado e fico observando tudo àquilo que ele faz; no fim da jornada repassamos todos os pacientes atendidos e discutimos cada caso individualmente, o diagnóstico e a conduta a serem tomadas. Estamos construindo um relacionamento extremamente amistoso, ele tem sido muito paciente com minhas dificuldades com o idioma e a rotina do serviço, o que me deixa cada dia mais à vontade e mais seguro de que estou no caminho certo com a escolha que fiz. Vi também o primeiro caso de Doença Celíaca, esta enfermidade tão misteriosa para mim até então (Figuras 11 & 12). Tenho a mais absoluta certeza de que muitos desnutridos que vemos em São Paulo, e que são considerados casos de desnutrição por problemas sócio-econômicos, na verdade são portadores de Doença Celíaca. Quando voltar a São Paulo irei investigar estes pacientes obsessivamente, e estou seguro que irei encontrar esta enfermidade no Brasil (o que na verdade ocorreu assim que retornei a São Paulo, e a partir deste primeiro caso, inúmeros outros passaram a ser diagnosticados). O que está me angustiando agora é a quantidade de coisas que a especialidade apresenta e o desejo de estudar tudo ao mesmo tempo, o que é claro, não é possível. Não sei o que fazer! Ultimamente (3 semanas para cá) não tenho estudado muito, ou pelo menos com a mesma continuidade que o vinha fazendo anteriormente, devido as minhas obrigações de cuidar dos meus leitos (pacientes internados) e dos meus dois trabalhos de investigação clínica.”
Figura 11- A primeira paciente com Doença Celíaca que eu vi, cuidada pela Dra. Mirta Ciocca.
Figura 12- A mesma paciente vista de perfil para melhor evidenciar o importante agravo nutricional, desnutrição intensa devido à síndrome de má absorção provocada pela Doença Celíaca.
Como se depreende do relato acima, nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados na minha rotina; tudo o que viria depois suplantou totalmente as melhores expectativas e os planos iniciais. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a investigação. Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, me absorvia quase que integralmente, mas que não conflitava com as atividades clínicas, muito ao contrário, as complementava.
No nosso próximo encontro além de continuar relatando minhas atividades hospitalares também descreverei um pouco da vida familiar, social e política vivenciada naquela época de muitas transformações na Argentina, as quais vieram a afetar de forma dramática a vida de toda a população por muitos anos, posto que em um breve futuro chegaria uma feroz e sangrenta ditadura que ceivou a vida de mais de 30.000 pessoas.
Como se depreende do relato acima, nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados na minha rotina; tudo o que viria depois suplantou totalmente as melhores expectativas e os planos iniciais. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a investigação. Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, me absorvia quase que integralmente, mas que não conflitava com as atividades clínicas, muito ao contrário, as complementava.
No nosso próximo encontro além de continuar relatando minhas atividades hospitalares também descreverei um pouco da vida familiar, social e política vivenciada naquela época de muitas transformações na Argentina, as quais vieram a afetar de forma dramática a vida de toda a população por muitos anos, posto que em um breve futuro chegaria uma feroz e sangrenta ditadura que ceivou a vida de mais de 30.000 pessoas.
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