segunda-feira, 29 de julho de 2019

Transtornos Alimentares na Infância (Parte 1)


Introdução

A alimentação é um processo complexo que requer a interação do sistema nervoso central e periférico, mecanismos oro-faringeanos, sistema cardiopulmonar, e o trato gastrointestinal, com sustentação das estruturas crânio faciais e do sistema músculo esquelético. Essa interação coordenada requer a aquisição de habilidades apropriadas para os diferentes estágios fisiológicos do desenvolvimento da criança. Nos anos mais precoces a alimentação ocorre no contexto de uma íntima correlação com o cuidador. A perturbação em quaisquer desses sistemas coloca a criança em risco de um transtorno alimentar e as respectivas complicações associadas. Em geral, mais de um desses sistemas podem apresentar uma ruptura, o que irá contribuir para o desenvolvimento e a persistência dos transtornos alimentares. Consequentemente, a efetiva avaliação e o tratamento do transtorno alimentar requerem um envolvimento multidisciplinar (Figura 1).


Figura 1

É importante assinalar que os transtornos alimentares podem provocar um grande impacto negativo nas funções físicas, sociais, emocionais e cognitivas da criança e, também, provocar um elevado estresse no cuidador. Um sistema de classificação contendo a descrição dos efeitos dos transtornos alimentares sobre a função, possibilitaria aos clínicos e pesquisadores uma melhor caracterização das necessidades das heterogenias populações de pacientes, facilitaria a inclusão de todas as disciplinas relevantes de tratamento, e, permitiria que o time de profissionais da saúde venha a utilizar o uso comum de terminologia precisa para atender às necessidades de uma melhoria na prática clínica e na pesquisa.

Definição dos Transtornos Alimentares

O transtorno alimentar é definido como uma ingestão oral prejudicada, que é inapropriada para uma determinada idade e está associada com uma disfunção clínica, nutricional, habilidade alimentar e ou psicossocial.

Na tabela 1 abaixo, estão listados os critérios diagnósticos propostos dos transtornos alimentares, os quais podem ser classificados em agudos (menores de três meses de duração) e crônicos (igual ou maior a três meses de duração). 

Tabela 1 – Critérios diagnósticos propostos para os Transtornos Alimentares na infância
A.   Anormalidade na ingestão oral de nutrientes, inapropriada para a idade, com duração de pelo menos duas semanas e associada com 1 ou mais dos seguintes fatores:
1.   Disfunção clínica, a saber:
a.   Comprometimento cardiorrespiratório durante a alimentação oral.
b.   Aspiração ou pneumonite aspirativa recorrente.
2.   Anormalidade nutricional, a saber:
a.   Desnutrição.
b. Deficiência nutricional específica ou ingestão significantemente restringida de um ou mais nutrientes resultantes de uma diversidade dietética diminuída.
c.    Dependência exclusiva da alimentação enteral ou de suplementos orais para manter o estado nutricional e ou de hidratação.
3.   Habilidade prejudicada para se alimentar, a saber:
a.   Necessidade de modificação da textura de líquidos ou sólidos.
b.   Uso de modificação da posição da criança ou do equipamento para a alimentação.
c.    Uso de estratégias modificadas para a alimentação.
4.   Disfunção psicossocial durante o processo de alimentação da criança, a saber:
a.   Comportamentos de recusa alimentar ativa ou passiva.
b.   Manejo inapropriado do cuidador.
c.    Ruptura do funcionamento social.
d. Ruptura da relação cuidador/criança associada ao processo de alimentação.
B.   Ausência da consistência dos processos cognitivos nos transtornos alimentares e padrão de ingestão oral, que não estão relacionados com escassez de alimento ou que contrariam as normas culturais da família.

O padrão de referência proposto para a ingestão oral está relacionado com a alimentação apropriada para uma determinada idade; a progressiva aquisição das habilidades alimentares possibilitando a progressão desde a amamentação (natural ou artificial) até a independência em se alimentar, passa por uma variedade de alimentos apropriados para as respectivas idades. As crianças que apresentam um atraso no desenvolvimento poderão ter habilidades alimentares apropriadas para o seu nível de desenvolvimento, porém, não para a sua respectiva idade; consequentemente essas crianças receberão o diagnóstico de serem portadoras de um transtorno alimentar.

Na definição proposta, a ingestão oral prejudicada se refere a uma falta de habilidade para consumir de forma suficiente alimentos sólidos e líquidos para alcançar os requisitos nutricionais e hídricos. A definição exclui a falta de habilidade para a ingestão de medicamentos ou alimentos atípicos não palatáveis. Para eliminar problemas alimentares transitórios resultantes de enfermidades agudas, a ingestão oral prejudicada deve se fazer presente por pelo menos duas semanas.

Para se distinguir entre transtorno alimentar e distúrbios alimentares (por exemplo, anorexia nervosa), o transtorno alimentar deve ser diagnosticado somente na ausência de distúrbios da imagem corporal. Os transtornos alimentares estão baseados em quatro domínios importantes: clínico, nutricional, habilidades alimentares e psicossocial. Em virtude da interação entre esses 4 domínios, quando um deles está prejudicado pode levar a disfunção de quaisquer dos outros três, e isto resulta em transtorno alimentar, o que será abordado a seguir (Figura 2).      
Figura 2- Esquema didático dos principais fatores de Transtorno Alimentar.

Fatores Clínicos

A deficiência da função/estrutura do trato gastrointestinal e dos sistemas cardiorrespiratório e neurológico, estão frequentemente associados com disfagia que resulta na disfunção de um ou mais domínios alimentares. Estes prejuízos relacionados às condições clínicas dão lugar a disfunção por meio de diversos mecanismos.

A disfunção do trato gastrointestinal superior está associada a transtorno alimentar surgindo primariamente por uma anomalia do trato gastrointestinal ou enfermidade, ou secundariamente, devido a uma doença respiratória ou das vias aéreas. Anomalias orofaríngeas e laríngeas podem prejudicar os mecanismos da alimentação normal. Doenças inflamatórias do trato gastrointestinal superior também podem prejudicar a alimentação normal.  Muito embora não existam suficientes evidências documentadas para apoiar uma forte associação entre refluxo gastroesofágico e transtorno alimentar, o elo entre transtorno alimentar e esofagite eosinofílica está bem estabelecido. Enfermidades do trato gastrointestinal funcionais ou da motilidade também podem prejudicar a alimentação, incluindo mesmo aquelas crianças com atresia esofágica reconstruída, pós fundoplicatura e intolerância ao volume dos alimentos, independentemente de gastroparesia, naqueles pacientes com enfermidades clínicas complexas.

Doenças das vias áreas e dos pulmões são os outros componentes das enfermidades respiratórias que também podem resultar em transtornos alimentares, e, particularmente nos lactentes com taquipneia crônica, quando a coordenação de sugar-deglutir-respirar se encontra particularmente afetada. Doença pulmonar crônica da prematuridade geralmente causa taquipneia e dispneia que afetam a deglutição e a aquisição da habilidade alimentar. A aspiração pulmonar resultante de um transtorno alimentar pode se manifestar como infecções do trato respiratório inferior (pneumonia), mas esta aspiração é mais comumente identificada por meio da fluoroscopia, a qual se baseia em sinais sutis respiratórios e/ou outras manifestações clínicas, como por exemplo, recusa alimentar. Crianças que sofrem de doença cardíaca congênita podem necessitar hospitalização prolongada com cuidados de intervenção intensivos, que podem retardar e  dificultar a aquisição das habilidades alimentares. Cirurgia cardíaca pode resultar em lesão do nervo laríngeo recorrente, acarretando paralisia da prega vocal esquerda e diminuição da proteção das vias áreas. Hipóxia crônica e possível lesão vagal podem desempenhar um papel importante na intolerância alimentar e vômitos nessas crianças.  

Crianças com comprometimentos neurológicos apresentam um elevado risco de transtorno alimentar, particularmente à medida que elas crescem e alcançam situações aonde as necessidades nutricionais excedem suas habilidades alimentares. Em geral, crianças que apresentam retardos motores mais graves e cognitivos, tem maiores dificuldades alimentares. Disfagia neurogênica é comum durante a infância, mas, pode estar presente em idades mais avançadas secundárias a paralisia cerebral, que pode acarretar morbidade e mortalidade devido a aspiração crônica.

Transtornos do desenvolvimento neurológico, especificamente aqueles do espectro autista, também estão associados com transtornos alimentares. Finalmente, algumas crianças que consomem quantidade calórica inadequada para o crescimento normal, podem apresentar um transtorno do apetite, sinalizando mecanismos causadores de transtornos alimentares.

Fatores Nutricionais

Inúmeras crianças que sofrem de transtorno alimentar passam a ter uma restrição na qualidade, quantidade e/ou variedade no consumo de bebidas e alimentos, o que as coloca sob o risco de desnutrição, deficiência de micronutrientes e desidratação. Desnutrição é definida como uma ingestão insuficiente de nutrientes para alcançar os requerimentos nutricionais, resultando em uma deficiência cumulativa de energia, proteína ou micronutrientes, o que irá impactar de forma negativa no crescimento e no desenvolvimento. Desnutrição afeta entre 25 a 50% das crianças que apresentam transtorno alimentar e é mais prevalente entre aquelas que sofrem de enfermidades crônicas ou do desenvolvimento do sistema nervoso.

A restrição da diversidade dietética que é comum nos transtornos alimentares pode apresentar outras consequências nutricionais adversas. A exclusão de grupos inteiros de alimentos, tais como frutas e vegetais, pode resultar em deficiência de micronutrientes a despeito da ingestão adequada de macronutrientes. Crianças que ingerem quantidades excessivas de alimentos específicos, bebidas ou suplementos dietéticos, podem apresentar um excesso de micronutrientes, mas raramente toxicidade. A ingestão excessiva de calorias, especialmente nas condições em que os requerimentos energéticos são baixos, pode resultar em obesidade.  

Referências Bibliográficas

1-   Godoy PS & cols. -JPGN 2019;68:124-29
2-   Jadcherla S – Am J Clin Nutr 2016;103:622-28
3-   Becker P & cols. – Nutr Clin Pract 2015;30:147-61
4-   Chandran JL & cols. – Int J Eat Disord 2015;48:1176-9     

Nenhum comentário: