Introdução
A
alimentação é um processo complexo que requer a interação do sistema nervoso
central e periférico, mecanismos oro-faringeanos, sistema cardiopulmonar, e o
trato gastrointestinal, com sustentação das estruturas crânio faciais e do
sistema músculo esquelético. Essa interação coordenada requer a aquisição de
habilidades apropriadas para os diferentes estágios fisiológicos do desenvolvimento da criança. Nos anos mais precoces a alimentação ocorre no
contexto de uma íntima correlação com o cuidador. A perturbação em quaisquer
desses sistemas coloca a criança em risco de um transtorno alimentar e as
respectivas complicações associadas. Em geral, mais de um desses sistemas podem
apresentar uma ruptura, o que irá contribuir para o desenvolvimento e a
persistência dos transtornos alimentares. Consequentemente, a efetiva avaliação
e o tratamento do transtorno alimentar requerem um envolvimento
multidisciplinar (Figura 1).
Figura
1
É
importante assinalar que os transtornos alimentares podem provocar um grande
impacto negativo nas funções físicas, sociais, emocionais e cognitivas da
criança e, também, provocar um elevado estresse no cuidador. Um sistema de
classificação contendo a descrição dos efeitos dos transtornos alimentares
sobre a função, possibilitaria aos clínicos e pesquisadores uma melhor
caracterização das necessidades das heterogenias populações de pacientes,
facilitaria a inclusão de todas as disciplinas relevantes de tratamento, e,
permitiria que o time de profissionais da saúde venha a utilizar o uso comum de
terminologia precisa para atender às necessidades de uma melhoria na prática
clínica e na pesquisa.
Definição
dos Transtornos Alimentares
O transtorno
alimentar é definido como uma ingestão oral prejudicada, que é inapropriada
para uma determinada idade e está associada com uma disfunção clínica,
nutricional, habilidade alimentar e ou psicossocial.
Na
tabela 1 abaixo, estão listados os critérios diagnósticos propostos dos
transtornos alimentares, os quais podem ser classificados em agudos (menores de
três meses de duração) e crônicos (igual ou maior a três meses de
duração).
Tabela
1 – Critérios diagnósticos propostos para os Transtornos Alimentares na
infância
A.
Anormalidade na ingestão oral de nutrientes,
inapropriada para a idade, com duração de pelo menos duas semanas e associada
com 1 ou mais dos seguintes fatores:
1.
Disfunção clínica, a saber:
a.
Comprometimento cardiorrespiratório durante a
alimentação oral.
b.
Aspiração ou pneumonite aspirativa
recorrente.
2.
Anormalidade nutricional, a saber:
a.
Desnutrição.
b. Deficiência nutricional específica ou
ingestão significantemente restringida de um ou mais nutrientes resultantes de
uma diversidade dietética diminuída.
c.
Dependência exclusiva da alimentação enteral
ou de suplementos orais para manter o estado nutricional e ou de hidratação.
3.
Habilidade prejudicada para se alimentar, a
saber:
a.
Necessidade de modificação da textura de
líquidos ou sólidos.
b.
Uso de modificação da posição da criança ou do
equipamento para a alimentação.
c.
Uso de estratégias modificadas para a
alimentação.
4.
Disfunção psicossocial durante o processo de
alimentação da criança, a saber:
a.
Comportamentos de recusa alimentar ativa ou
passiva.
b.
Manejo inapropriado do cuidador.
c.
Ruptura do funcionamento social.
d. Ruptura da relação cuidador/criança associada
ao processo de alimentação.
B.
Ausência da consistência dos processos
cognitivos nos transtornos alimentares e padrão de ingestão oral, que não estão
relacionados com escassez de alimento ou que contrariam as normas culturais da
família.
O
padrão de referência proposto para a ingestão oral está relacionado com a
alimentação apropriada para uma determinada idade; a progressiva aquisição das
habilidades alimentares possibilitando a progressão desde a amamentação (natural
ou artificial) até a independência em se alimentar, passa por uma variedade de
alimentos apropriados para as respectivas idades. As crianças que apresentam um
atraso no desenvolvimento poderão ter habilidades alimentares apropriadas para
o seu nível de desenvolvimento, porém, não para a sua respectiva idade;
consequentemente essas crianças receberão o diagnóstico de serem portadoras de
um transtorno alimentar.
Na
definição proposta, a ingestão oral prejudicada se refere a uma falta de
habilidade para consumir de forma suficiente alimentos sólidos e líquidos para
alcançar os requisitos nutricionais e hídricos. A definição exclui a falta de
habilidade para a ingestão de medicamentos ou alimentos atípicos não
palatáveis. Para eliminar problemas alimentares transitórios resultantes de
enfermidades agudas, a ingestão oral prejudicada deve se fazer presente por
pelo menos duas semanas.
Para
se distinguir entre transtorno alimentar e distúrbios alimentares (por exemplo,
anorexia nervosa), o transtorno alimentar deve ser diagnosticado somente na
ausência de distúrbios da imagem corporal. Os transtornos alimentares estão
baseados em quatro domínios importantes: clínico, nutricional, habilidades
alimentares e psicossocial. Em virtude da interação entre esses 4 domínios,
quando um deles está prejudicado pode levar a disfunção de quaisquer dos outros
três, e isto resulta em transtorno alimentar, o que será abordado a seguir
(Figura 2).
Figura
2- Esquema didático dos principais fatores de Transtorno Alimentar.
Fatores
Clínicos
A
deficiência da função/estrutura do trato gastrointestinal e dos sistemas
cardiorrespiratório e neurológico, estão frequentemente associados com disfagia
que resulta na disfunção de um ou mais domínios alimentares. Estes prejuízos
relacionados às condições clínicas dão lugar a disfunção por meio de diversos
mecanismos.
A
disfunção do trato gastrointestinal superior está associada a transtorno
alimentar surgindo primariamente por uma anomalia do trato gastrointestinal ou
enfermidade, ou secundariamente, devido a uma doença respiratória ou das vias
aéreas. Anomalias orofaríngeas e laríngeas podem prejudicar os mecanismos da
alimentação normal. Doenças inflamatórias do trato gastrointestinal superior
também podem prejudicar a alimentação normal.
Muito embora não existam suficientes evidências documentadas para apoiar
uma forte associação entre refluxo gastroesofágico e transtorno alimentar, o
elo entre transtorno alimentar e esofagite eosinofílica está bem estabelecido. Enfermidades do
trato gastrointestinal funcionais ou da motilidade também podem prejudicar a
alimentação, incluindo mesmo aquelas crianças com atresia esofágica
reconstruída, pós fundoplicatura e intolerância ao volume dos alimentos,
independentemente de gastroparesia, naqueles pacientes com enfermidades
clínicas complexas.
Doenças
das vias áreas e dos pulmões são os outros componentes das enfermidades
respiratórias que também podem resultar em transtornos alimentares, e,
particularmente nos lactentes com taquipneia crônica, quando a coordenação de
sugar-deglutir-respirar se encontra particularmente afetada. Doença pulmonar
crônica da prematuridade geralmente causa taquipneia e dispneia que afetam a
deglutição e a aquisição da habilidade alimentar. A aspiração pulmonar
resultante de um transtorno alimentar pode se manifestar como infecções do
trato respiratório inferior (pneumonia), mas esta aspiração é mais comumente
identificada por meio da fluoroscopia, a qual se baseia em sinais sutis
respiratórios e/ou outras manifestações clínicas, como por exemplo, recusa
alimentar. Crianças que sofrem de doença cardíaca congênita podem necessitar
hospitalização prolongada com cuidados de intervenção intensivos, que podem retardar
e dificultar a aquisição das habilidades
alimentares. Cirurgia cardíaca pode resultar em lesão do nervo laríngeo recorrente,
acarretando paralisia da prega vocal esquerda e diminuição da proteção das vias
áreas. Hipóxia crônica e possível lesão vagal podem desempenhar um papel
importante na intolerância alimentar e vômitos nessas crianças.
Crianças
com comprometimentos neurológicos apresentam um elevado risco de transtorno
alimentar, particularmente à medida que elas crescem e alcançam situações aonde
as necessidades nutricionais excedem suas habilidades alimentares. Em geral,
crianças que apresentam retardos motores mais graves e cognitivos, tem maiores
dificuldades alimentares. Disfagia neurogênica é comum durante a infância, mas,
pode estar presente em idades mais avançadas secundárias a paralisia cerebral,
que pode acarretar morbidade e mortalidade devido a aspiração crônica.
Transtornos
do desenvolvimento neurológico, especificamente aqueles do espectro autista,
também estão associados com transtornos alimentares. Finalmente, algumas
crianças que consomem quantidade calórica inadequada para o crescimento normal,
podem apresentar um transtorno do apetite, sinalizando mecanismos causadores de
transtornos alimentares.
Fatores
Nutricionais
Inúmeras
crianças que sofrem de transtorno alimentar passam a ter uma restrição na
qualidade, quantidade e/ou variedade no consumo de bebidas e alimentos, o que
as coloca sob o risco de desnutrição, deficiência de micronutrientes e
desidratação. Desnutrição é definida como uma ingestão insuficiente de
nutrientes para alcançar os requerimentos nutricionais, resultando em uma
deficiência cumulativa de energia, proteína ou micronutrientes, o que irá
impactar de forma negativa no crescimento e no desenvolvimento. Desnutrição
afeta entre 25 a 50% das crianças que apresentam transtorno alimentar e é mais
prevalente entre aquelas que sofrem de enfermidades crônicas ou do desenvolvimento
do sistema nervoso.
A restrição
da diversidade dietética que é comum nos transtornos alimentares pode
apresentar outras consequências nutricionais adversas. A exclusão de grupos
inteiros de alimentos, tais como frutas e vegetais, pode resultar em
deficiência de micronutrientes a despeito da ingestão adequada de
macronutrientes. Crianças que ingerem quantidades excessivas de alimentos
específicos, bebidas ou suplementos dietéticos, podem apresentar um excesso de
micronutrientes, mas raramente toxicidade. A ingestão excessiva de calorias,
especialmente nas condições em que os requerimentos energéticos são baixos,
pode resultar em obesidade.
Referências
Bibliográficas
1-
Godoy PS & cols. -JPGN 2019;68:124-29
2-
Jadcherla
S – Am J Clin Nutr 2016;103:622-28
3-
Becker
P & cols. – Nutr Clin Pract 2015;30:147-61
4-
Chandran
JL & cols. – Int J Eat Disord 2015;48:1176-9
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