segunda-feira, 15 de julho de 2019

Pancreatite Aguda na infância: uma atualização do manejo clínico (Parte 1B)


Prof. Dr Ulysses Fagundes Neto

Exames de Imagens

Estudos de imagens tornam-se relevantes para documentar a necrose pancreática, complicações da pancreatite incluindo coleções fluidas, e a etiologia da pancreatite, tais como, litíase biliar e anormalidades anatômicas. O critério padrão para o diagnóstico de imagem permanece sendo a tomografia computadorizada com contraste, e o contraste intravenoso é estratégico para a distinção de áreas de necrose do pâncreas. Considerando-se que estudos de imagem muito precoces podem subestimar a extensão da doença, mesmo porque as complicações se desenvolvem com o passar do tempo, os achados patológicos podem não estar presentes nas fases iniciais da enfermidade.  O estudo da tomografia deve ser idealmente realizado após 96 horas do início dos sintomas. Nos casos leves a tomografia pode mostrar um aumento homogêneo do órgão, alterações inflamatórias da gordura peripancreática ou a presença de fluido circundando o pâncreas. Nos casos graves a tomografia pode mostrar aumento heterogêneo do órgão, necrose no interior do pâncreas ou circundando o tecido peripancreático. Além disso a tomografia também pode identificar coleções de fluido ou pseudocistos (Figura 8).



Figura 8 - Pancreatite aguda edematosa com pseudocistos. A,B: Imagens axiais de TC pós-contraste fase venosa mostram alguns pseudocistos comprimindo o parênquima pancreático e outros na retrocavidade dos epíploons (setas).
Cunha, EFC; Rocha, MS; Pereira, FP; Blasbalg, R; Baroni, RH. Necrose pancreática delimitada e outros conceitos atuais na avaliação radiológica da pancreatite aguda. Revista do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem. 2014:47-3.

A ultrassonografia é usada extensivamente quando se suspeita fortemente de pancreatite biliar, cuja situação necessita intervenção terapêutica precoce. A ultrassonografia apresenta excelente perfil de segurança, posto que, não é invasiva e não utiliza radiação. A utilidade da ultrassonografia pode, entretanto, estar limitada na avaliação do pâncreas devido a interferência de outras estruturas, tais como, gás no interior do intestino e obesidade, e, além disso, apresenta uma baixa sensibilidade em comparação com a tomografia.       

A ressonância nuclear magnética não é classicamente utilizada como uma técnica de imagem inicial na PA, mas pode ser útil para as complicações tardias. A ressonância magnética também pode ser mais sensível na avaliação de tecido necrótico em comparação com a tomografia. 

Considerações no manejo da PA 

Manejo hidroeletrolítico

A terapêutica fluida intravenosa é um pilar do tratamento durante o episódio da PA. A recuperação hidroeletrolítica adequada mantém o estado clínico geral do paciente e sua função renal, mas, recentemente a atenção tem sido focalizada na utilização de fluidos intravenosos para prevenir complicações potenciais da PA, tais como, a necrose e a falência do pâncreas. A patogenia da PA e sua progressão para as formas mais graves é secundária à alteração da microcirculação do pâncreas devido a uma série de eventos que incluem hipovolemia, aumento da permeabilidade capilar e formação de microtrombos (Figura 9).

Figura 9 – Imagem da tomografia computadorizada com contraste evidenciando trombose da veia porta.

A reposição fluida além de corrigir a hipovolemia também auxilia na preservação da microcirculação pancreática provendo perfusão adequada e prevenindo a possível formação de microtrombos, e, desta forma, prevenindo o surgimento de complicações e a progressão para doença grave.

Monitoração das manifestações extra pancreáticas

A monitoração dos pacientes na PA fornece indicações precisas de possíveis complicações incluindo a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS) e a falência pancreática. A hipovolemia no momento da hospitalização é um forte preditor de morbidade e mortalidade nos pacientes com PA e parece estar diretamente relacionada com a intensidade da SRIS. A taquicardia tem sido utilizada como um sistema de pontuação para prever a gravidade da PA e o seu retorno ao batimento cardíaco basal tem sido utilizado para comprovar a reposição adequada de fluido associada a monitoração da diurese e o turgor da pele. A variação rotineira da função pulmonar deve ser levada a efeito em todos os pacientes que venham apresentar dificuldade respiratória inexplicada. Lesão renal aguda devido à síndrome do compartimento abdominal ou devido a lesão do túbulo contornado proximal causam aumento da ureia e da creatinina séricas, e, concomitantemente há uma diminuição da diurese o que é uma conhecida complicação precoce da PA. A determinação dos valores da ureia e da creatinina séricas são, portanto, importantes marcadores para o seguimento do manuseio da avaliação fluida e para monitorar a função renal durante as primeiras 48 horas da evolução da PA.

O manejo da dor na PA
A dor abdominal é o sintoma mais comumente presente na PA; cerca de 80% a 95% dos pacientes queixam-se de dor abdominal. Dor epigástrica está presente entre 62 e 89% e dor difusa entre 12 e 20% dos pacientes. A clássica apresentação de dor epigástrica com irradiação para as costas ocorre somente entre 1,6% e 5,6% dos pacientes.

A fisiopatologia da PA caracteriza-se pela perda da compartimentalização intra e extra celular, a qual pode resultar a partir de diferentes mecanismos, a saber: obstrução do transporte secretor pancreático, ativação enzimática, ou incapacidade de frear a cascata de ativação inflamatória. A PA ocorre em indivíduos geneticamente susceptíveis nos quais a reação inflamatória provoca a pancreatite. Este fato, por sua vez estimula os receptores de dor viscerais pancreáticos e somáticos peritoneais. Outro mecanismo causador de dor na PA se deve a aumento da pressão no interior da glândula do ducto pancreático com subsequente isquemia do órgão.

O controle da dor é um importante ato terapêutico no manuseio da PA, e como os clássicos analgésicos de ação periférica (tal como o acetaminofeno) são geralmente insuficientes na pancreatite grave, opiáceos são frequentemente necessários para controlar a dor. Uma série de estudos concluiu que os opiáceos devem ser uma escolha apropriada no tratamento da dor relacionada à PA; baseando-se nesta conduta passa-se a necessitar uma menor quantidade de analgesia suplementar. Em resumo, a utilização de morfina intravenosa ou outros opioides está indicada no alívio da dor na PA, naquelas situações em que o uso de acetaminofeno ou drogas anti-inflamatórios fracassaram.

Nutrição oral e enteral na PA

Tradicionalmente, em passado recente, a proposta nutricional no manejo da PA era jejum oral e nutrição parenteral. A hipótese para justificar tal proposta de pausa alimentar, devia-se à hipótese de que deveria se dar um descanso ao pâncreas e que com esta conduta, ocorreria uma cura mais rápida. O racional que embasava esta teoria seria que a presença do alimento no intestino poderia estimular a liberação da colecistocinina, a qual por sua vez, estimularia a secreção enzimática do pâncreas, e, com isso poderia acarretar uma ativação posterior das enzimas proteolíticas, e, consequentemente exagerar o processo de auto digestão e um agravo da lesão. Inúmeros estudos realizados em adultos portadores de PA demonstraram claramente que a nutrição enteral é preferível sobre a parenteral, e que deve ser utilizada como primeira opção mesmo na presença de fistulas, ascite, e pseudo cistos.

O momento indicado para o início da nutrição enteral deve ser o mais precocemente possível, especialmente tendo como primeiro objetivo prevenir a translocação bacteriana, e, consequentemente o desenvolvimento da SRIS. A terapia nutricional precoce é também pretendida para diminuir a resposta de citocinas, bem como a incidência de gastroparesia e íleo paralitico. Tem sido claramente demostrado que o início da nutrição enteral dentro das primeiras 48 horas de apresentação clínica da PA diminui significativamente as taxas de mortalidade, infecções e falência múltipla dos órgãos em comparação com a nutrição parenteral. Vale ressaltar que o uso da nutrição enteral deve ser considerado “como uma intervenção terapêutica ativa para melhorar o desfecho dos pacientes portadores de PA”.

Nutrição parental na PA (NP)

A nutrição parenteral provê os requerimentos calóricos e nutricionais para compensar o estado catabólico. Uma possível preocupação de que a nutrição parenteral poderia estimular o pâncreas e, desta forma, resultar em um processo exagerado de auto digestão não recebeu suporte na literatura.  Em todos os casos quando a nutrição enteral não for possível por um tempo prolongado, tais como íleo paralitico, fistulas complexas e a síndrome compartimental do abdome, a nutrição parenteral tem sido indicada. Por outro lado, estudo recente propõe um retardo no início da nutrição parenteral em até 7 dias nas crianças gravemente enfermas, devido ao aumento do risco de infecção e aumento das taxas de complicação, quando a nutrição parenteral se iniciou dentro das primeiras 24 horas de internação.

Uso de antibióticos na PA

O racional para considerar o uso de antibiótico no manejo da PA relaciona-se à preocupação de infecção bacteriana devido a translocação da microbiota intestinal. Imipenem e/ou cefalosporinas de terceira geração têm sido os antibióticos historicamente mais utilizados na tentativa de reduzir a morbidade e a mortalidade. A abordagem profilática é controvertida posto que estudos prévios sugerem algum benefício, mas, por outro lado, novos estudos não têm demonstrado benefício do uso rotineiro de antibioticoterapia na ausência de infecção documentada. Recentemente, estudos de meta análise dão suporte ao uso de antibióticos no caso de pancreatite necrotizante infectada, porém, não naqueles casos de necrose estéril; a necrose infectada deve ser suspeitada quando o estado clínico do paciente se agrava associado a febre ou na presença de gás no interior de coleções detectada em estudos de imagem. No caso da pancreatite necrotizante são recomendados antibióticos que conhecidamente penetram no tecido necrótico, tais como, carbapenens, quinolonas e metronidazol, posto que, o uso de antibióticos nesta situação tem sido demonstrado com capacidade de postergar intervenções cirúrgicas e diminuem a morbidade e a mortalidade.

Papel da Cirurgia na PA 

Intervenções cirúrgicas não fazem parte do algoritmo do manuseio de um episódio típico de PA. Uma indicação precoce de cirurgia inclui o manejo da síndrome compartimental do abdome. O manejo da necrose pancreática com indicação de necrosectomia precoce dentro das primeiras 72 horas tem, entretanto, sido demonstrado acarretar aumento da morbidade e da mortalidade em comparação com esta intervenção de forma tardia além dos 12 dias de enfermidade.

Há recomendação para intervenção precoce para realização de colecistectomia durante a hospitalização devido a um episódio de pancreatite por litíase biliar, e, há também uma discussão quanto ao momento da possibilidade de indicação da colecistectomia versus outras opções terapêuticas nos casos de PA grave, especialmente na presença de necrose.

As indicações para intervenção cirúrgica aguda incluem trauma abdominal, quando o paciente apresenta instabilidade clínica e/ou na busca de uma lesão associada a outro órgão. No contexto da pancreatite biliar a colecistectomia tem sido considerada não somente segura, mas também profilática para evitar futuros episódios de PA. A colicistectomia pode ser realizada de forma segura antes da alta hospitalar nos casos de pancreatite biliar aguda não complicada. No manejo das coleções necróticas agudas, as intervenções devem ser evitadas e postergadas mesmo na necrose infectada, posto que os desfechos são melhores quando a abordagem  é postergada além de 4 semanas. Quando a drenagem ou a necrosectomia é necessária, abordagens não cirúrgicas incluindo endoscopia ou métodos percutâneos são preferíveis em comparação com  cirurgias abertas de necrosectomia ou drenagem de pseudocísticos.

Expectativas da Evolução e Prognóstico da Pancreatite Aguda

De uma maneira geral as expectativas da evolução da PA na infância são mais favoráveis do que aquelas esperadas para os adultos. O tempo médio de hospitalização na PA varia de 2,8 a 8 dias. Vale ressaltar que lactentes e pré escolares apresentam uma tendência de hospitalizações mais prolongadas, em média 20 dias. O início precoce da nutrição enteral e a rehidratação vigorosa tem sido ligada a um tempo mais curto de hospitalização, menores taxas de admissão a UTI e menores índices de gravidade da enfermidade do que os pacientes que são mantidos em jejum oral. As maiores taxas de mortalidade estão associadas com enfermidades sistêmicas, mas em geral, essas taxas são baixas (menores de 5%).

As complicações precoces da PA incluem disfunções multiorgânicas ou choque. Coleções líquidas agudas peripancreáticas são vistas na fase aguda da PA e tendem a serem solucionadas espontaneamente. A frequência da formação de pseudo cisto varia de 8 a 41% na PA, e as taxas mais altas são observadas nos pacientes que sofrem de pancreatite relacionada a trauma abdominal. Os pseudocistos são geralmente assintomáticos e podem ser conduzidos conservadoramente ou, por outro lado, podem aumentar de tamanho e causar dor abdominal, vômitos e febre. Os pseudocistos também podem se tornar infectáveis entre 10 a 15% dos casos. Uma outra complicação tardia da PA, refere-se à necrose pancreática. A necrose pancreática pode se manifestar inicialmente como uma coleção necrótica aguda e posteriormente evoluir para necrose encapsulada. As opções de tratamento de drenagem dos pseudocistos e da necrose encapsulada incluem drenagem endoscópica, drenagem percutânea por cateter ou cirurgia laparoscópica (Figura 10).

Figura 10 - Necrose pancreática delimitada (walled-off pancreatic necrosis). A,B: Imagens axiais de TC pós-contraste fase venosa. Evolução de pancreatite aguda necrosante. A: Extensa necrose do corpo e cauda pancreáticos de limites indistintos e com aspecto sólido (seta). B: Após duas semanas já pode ser identificada delimitação da área de necrose com aspecto liquefeito e com restos necróticos no seu interior (seta). C,D: Imagens axial (C) e coronal (D) de TC pós-contraste fase venosa. Homem de 42 anos com área de necrose parenquimatosa circunscrita substituindo corpo e cauda do pâncreas (setas), após três semanas da instalação do episódio de pancreatite aguda necrosante.

 A técnica escolhida depende do tamanho, localização, anatomia e dos riscos-benefícios do procedimento, embora a drenagem percutânea e a transgastrointestinal guiada tem sido ultimamente as mais universalmente aceitas.

Aproximadamente de 15 a 35% das crianças que sofrem de PA irão apresentar uma nova crise de pancreatite.  

A Tabela abaixo apresenta um resumo das recomendações do manejo da PA nas crianças.           
   
       

Referências Bibliográficas
1-   Abu-El-Haija, M et al: JPGN 2018;66:159-176
2-   Lowwe, M & Morinville, V: Textbook of Basic Science 2008:184-92
3-   Abu-El-Haija, M et al: JPGN 2014;58:689-93
4-   Suzuki, M et al: Pediatr Int 2015;57:113-8
5-   Szabo, FK et al: Pancreatology 2016;16:358-64
6-   Kumar, S et al: JAMA Pediatr 2016;170:562-9

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