sexta-feira, 3 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 1)

Síndrome do Intestino Irritável (SII) 

A SII constitui-se no transtorno funcional gastrointestinal mais frequente. A prevalência da SII varia de 10% a 25% no mundo ocidental afetando indistintamente crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. Estima-se que a prevalência alcance entre 5 e 14% das crianças em idade escolar e de 12 a 45% entre os adolescentes e adultos, cifras estas identificadas em clínicas de referência terciária, aplicando-se os critérios de Roma III. Há também variações geográficas na prevalência da SII alcançando 7% na Ásia até 21% na América do Sul (1). 

Manifestações Clínicas e Diagnóstico

As manifestações clínicas e o diagnóstico da SII baseiam-se essencialmente nas definições estabelecidas pelos critérios de Roma III, os quais foram elaborados em 2006 por um grupo de experts na especialidade (2). 

A SII é um transtorno funcional cujas manifestações clínicas devem ser recorrentes, com a frequência de pelo menos uma vez por semana, durante pelo menos os últimos 2 meses anteriores ao diagnóstico, caracterizada pelos seguintes sintomas:

1- Desconforto e/ou dor abdominal associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas, durante pelo menos 25% do tempo: 
- Alívio com a evacuação;
- Início associado com alteração na frequência das       evacuações;
- Início associado com alteração no formato das fezes.

2- Ausência de processo inflamatório, anatômico, metabólico ou neoplásico que possa justificar os sintomas.

Além disso, a SII pode estar associada a manifestações extra digestivas, tais como: fadiga cefaleia, depressão, dor musculoesquelética, formigamento e/ou adormecimento das mãos e dos pés.

É importante enfatizar que a SII pode também cursar com alguns sintomas subjacentes cuja presença pode auxiliar como suporte diagnóstico, na dependência do subtipo da sua apresentação, ou seja, Diarreia (D), Constipação (C) ou Mista (M), tais como:

1- Frequência aumentada das evacuações, podendo alcançar 4 ou mais evacuações por dia.
2- Frequência diminuída das evacuações de apenas 1 ou menos por semana.
3- Formato anormal das fezes, líquidas (D) ou endurecidas (C).
4- Evacuação anormal com esforço, urgência e sensação de evacuação incompleta (D).
5- Eliminação de muco.
6- Flatulência: sensação subjetiva de inchaço abdominal.
7- Distensão abdominal: aumento objetivo da circunferência abdominal.

É de fundamental importância, além dos critérios de Roma III, também levar em consideração os sintomas subjacentes acima relacionados, pois eles são de extrema valia para auxiliar na confirmação diagnóstica, visto que não se encontra disponível, até o presente momento, a existência de algum marcador específico, seja sorológico ou histopatológico, portanto, a SII trata-se de um transtorno cujo diagnóstico se estabelece por meio da análise detalhada dos sintomas referidos associado ao exame físico, que não deve revelar alterações dignas de nota.

Fisiopatologia

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na SII ainda não estão totalmente esclarecidos, porém, admite-se a ocorrência da interação de múltiplos fatores biológicos, psicológicos e sociais na sua gênese, os quais são responsáveis pelas alterações da motilidade, em especial a indução do trânsito colônico acelerado (subtipo Diarreia) ou espástico (subtipo Constipação) e da sensibilidade do intestino (hipersensibilidade visceral).

Deve-se também levar em consideração que pesquisas realizadas nos últimos anos têm identificado outros fatores contribuintes para o surgimento da SII. Entre estes fatores devem ser incluídos os que se seguem, atuando de forma independente ou em associação, a saber: episódio prévio de gastroenterite, genética, irritantes intraluminais (má absorção de sais biliares), alterações na microbiota intestinal (sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado), transtornos na eliminação de gases, inflamação da mucosa colônica (alteração da barreira de permeabilidade), hipersensibilidade retal, bem como a ação não fisiológica de alguns mediadores químicos, tais como a serotonina. Admite-se que respostas imunológicas anormais desencadeadas por estímulos de alguns componentes da dieta possam estar presentes como geradores dos sintomas da SII. Além disso, considera-se também que a persistência de um baixo grau de inflamação possa favorecer o surgimento dos sintomas da SII (3).

Dentre os sintomas da SII destacam-se a flatulência e a distensão abdominal. Estudos realizados utilizando-se a tomografia computadorizada têm claramente demonstrado que a distensão abdominal é um fenômeno real e que pode alcançar até 12 cm em determinados pacientes. Por outro lado, aqueles pacientes que se queixam de flatulência, embora tenham a sensação de distensão abdominal, em apenas cerca de metade deles pode-se objetivamente demonstrar tal transtorno. Vale salientar que no grupo de pacientes que apresenta uma real distensão abdominal, constipação e hiposensibilidade visceral são os mais frequentemente observados, enquanto que o grupo que apresenta flatulência, sem distensão abdominal, predomina o subtipo diarreia e hipersensibilidade visceral. Tem sido demonstrado que a causa da flatulência e/ou da distensão abdominal se deve a retenção de gás e/ou a uma percepção aumentada de sobrecarga de gás exógeno, devido a uma combinação de deficiência no trânsito e aumento da sensibilidade visceral (4).   

Enfim, há um consenso geral para considerar a etiopatogenia da SII como um processo multifatorial em que estão envolvidos inúmeros aspectos da economia interna do indivíduo associados a fatores externos, na gênese dos sintomas, conforme encontra-se ilustrado na Figura 1 (5).  

 
Figura 1- Representação esquemática dos múltiplos fatores envolvidos na gênese da SII.

Dentre os aspectos psicossociais está bem estabelecida a existência de um eixo cérebro-trato digestivo, sendo este último metaforicamente denominado de “segundo cérebro”, pois trata-se do órgão de choque das tensões emocionais, responsável pela somatização visceral das situações de estresse, ansiedade e depressão. As comunicações bidirecionais envolvendo as regiões neuroanatômicas, entre o cérebro e o trato digestivo conforme ilustradas na Figura 2, são as responsáveis pelas diversas síndromes de dor abdominal (6).

Figura 2- Representação esquemática do eixo Cérebro-Trato digestivo.

Uma grande proporção de pacientes associa o surgimento dos sintomas abdominais a alguns alimentos da dieta, porém, torna-se difícil estabelecer uma relação direta entre um determinado alimento específico com os sintomas relatados. Esta dificuldade se deve à complexidade da composição dos alimentos e, também, aos supostos múltiplos mecanismos pelos quais os alimentos e/ou seus componentes afetam o trato digestivo na gênese dos sintomas. Dentre os inúmeros mecanismos potencialmente envolvendo os alimentos e consequentemente o surgimento dos sintomas digestivos, o primeiro deles é a fase cefálica. Na fase cefálica os efeitos sobre as secreções e a motilidade gastrointestinais são influenciados pelo visual, odor, imaginação e o sabor dos alimentos; tais efeitos ocorrem por meio de sinais neurológicos enviados desde o córtex cerebral e o centro do apetite localizado no cérebro ao trato digestivo. Os sintomas também podem ser induzidos pela estimulação química de receptores intestinais. Estes receptores localizam-se ao longo de todo o trato digestivo e podem ser ativados por moléculas bioativas dos alimentos ou por produtos da sua digestão, como por exemplo peptídeos, ou ainda por subprodutos do seu metabolismo, tais como os ácidos graxos de cadeia curta. A ativação destes receptores pode levar a liberação de múltiplos neurotransmissores e hormônios, incluindo a 5-hidroxitriptamina, colecistoquinina, peptídeo-1 similar ao glucagon, peptídeo YY, motilina, incretina e cefalina, sendo esta ativação um potencial mecanismo dos sintomas digestivos referidos pelos pacientes.    

Recentemente, um novo aspecto de significativa importância quanto a etiopatogenia da SII se agrega, aos outros já conhecidos, e diz respeito à intolerância a determinados carboidratos da dieta, os quais são lentamente digeridos ou não são digeridos no intestino delgado. Estes carboidratos podem ser agrupados de acordo com o comprimento da cadeia (grau de polimerização) em 3 diferentes categorias funcionais de importância relevante na SII, a saber: fibras, prebióticos e o complexo de carboidratos que recebeu a denominação de FODMAPs (fermentable oligo-, di-, monosaccharides and polyols). Estes últimos se constituem em um grupo de oligossacarídeos não digeríveis, e que, portanto, não são devidamente absorvidos no intestino delgado por falta de hidrolases específicas (7). Além disso, aí também devem ser incluídos alguns monossacarídeos, como por exemplo a frutose, pois este monossacarídeo para sofrer absorção ótima necessita estar presente no lúmen intestinal em uma concentração equimolar de glicose, condição que facilita sua absorção pelo mecanismo da draga do solvente. No entanto, no caso de haver excesso de frutose em relação a glicose pode ocorrer intolerância à mesma, quando esta fração excedente não é totalmente absorvida de forma passiva pelo transportador GLUT5. Caso uma proporção significativa destes FODMAPs não venha a ser absorvida no intestino delgado, por efeito osmótico aumenta a concentração intra-luminal de água no intestino delgado, cuja sobrecarga é levada ao intestino grosso. No cólon ocorre o processo de fermentação por ação das bactérias da microflora colônica o que leva à produção aumentada de gás e ácidos graxos de cadeia curta. Estes fatores provocam distensão abdominal a qual induz a sensação de dor, flatulência e alteração da motilidade, com consequente diarreia pelo excesso de água gerada no intestino delgado. Estes mecanismos estão exemplificados nas Figuras 3 e 4 (8).

Figura 3- Representação esquemática da ação dos FODMAPs sobre o trato digestivo.

Figura 4- Mecanismo fisiopatológico da má absorção da frutose e dos frutanos.

A associação entre os FODMAPs e os sintomas apresentados pelos pacientes portadores da SII tornou-se evidente a partir de várias observações bem documentadas. A administração oral de FODMAPs individualmente foi capaz de provocar sintomas similares à SII baseada no princípio da dose dependência, e, tais sintomas, ao que tudo indica, surgem devido a hipersensibilidade visceral, fenômeno similar ao que se observa nos pacientes portadores de intolerância à lactose. Os sintomas se agravam quando estes carboidratos são consumidos em combinação entre si, como por exemplo, frutanos com lactose, frutose com sorbitol, frutose com frutanos, indicando a existência de um efeito aditivo (Figuras 5-6).

Figura 6- Manifestações clínicas da má absorção dos carboidratos da dieta.

Figura 6- Representação esquemática da ação fisiopatológica dos diferentes carboidratos da dieta.

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