segunda-feira, 20 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 4)

SII e SGNC: Intolerância alimentar e Sensibilidade alimentar, a possível sobreposição dos sintomas

Recentemente, Biesiekierski e cols. (21), em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias da dieta, porém, ainda que mantivessem alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs, que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc (Figura 11).

Figura 11- Concentração de frutanos em alguns alimentos da dieta comum. 

 Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. (22) propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.


Diante desta polêmica entre os possíveis causadores dos sintomas, seja o glúten (sensibilidade) ou os FODMAPs (intolerância alimentar), ou mesmo ambos, torna-se importante definir claramente as diferenças entre estas duas as condições. Portanto, para evitar maiores confusões vale a pena levar em consideração o consenso do Instituto Nacional da Alergia e Infectologia dos Estados Unidos (23), a saber: intolerância alimentar ocorre quando o organismo deixa de produzir um determinado enzima responsável pela digestão de um certo nutriente ou quando há excesso de nutriente oferecido para a enzima específica (lactose x lactase). Nestas circunstâncias, portanto, os sintomas são exclusivamente digestivos, majoritariamente secundários à fermentação do carboidrato pela ação da microbiota colônica, que leva à produção de gás, com distensão e dor abdominal, e diarreia. Exemplos frequentes destas condições incluem a intolerância à lactose e/ou o excesso dos FODMAPs. Por outro lado, as sensibilidades alimentares são reações mediadas imunologicamente induzidas por alguns nutrientes; estas reações (digestivas e extra-digestivas) nem sempre ocorrem da mesma forma quando o indivíduo ingere um determinado alimento. A SGNC é um exemplo de sensibilidade alimentar. Entretanto, tem surgido publicações atribuindo mais aos FODMAPs do que ao glúten os sintomas descritos, o que poderia levar a crer que a SGNC não seria uma entidade clínica diversa da SII, mas sim um subgrupo da mesma. Entretanto, se levarmos em consideração de forma estrita as diferenças entre as definições de intolerância alimentar e sensibilidade alimentar pode-se afirmar que a SII e a SGNC são entidades clínicas distintas, mas com algumas manifestações que se sobrepõem.

Tratamento

Como a SII trata-se de um transtorno funcional de etiologia multifatorial torna-se extremamente difícil propor uma terapêutica única que venha solucionar todo o complexo causal dos sintomas apresentados pelos pacientes. Deve-se sempre preferentemente eliminar, ou ao menos minimizar, os fatores desencadeantes da sintomatologia apresentada, em especial o estresse emocional e a restrição de algum fator dietético que comprovadamente esteja contribuindo de forma decisiva para a perpetuação do quadro clínico do paciente. Os tratamentos incluem intervenção psicológica, manipulações dietéticas, alteração da microbiota colônica (pró-bióticos e pré-bioticos). Cada paciente deve receber uma atenção individualizada com ações terapêuticas combinadas, baseada na intensidade dos sintomas, na dependência da sua personalidade e de sua preferência, na natureza dos transtornos fisiológicos e também na presença e condição das comorbidades psicológicas. A utilização rotineira de drogas anti-depressivas não parece ser a melhor escolha para solucionar os problemas, posto que irão atuar na consequência e não na causa desencadeante da sintomatologia.

O tratamento da SGNC baseia-se na introdução de uma dieta isenta de glúten que deve resultar no desaparecimento dos sintomas. Por outro lado, a reintrodução do glúten na dieta deve provocar o recrudescimento dos sintomas, o que confirma o diagnóstico.

Conclusões

Considerando que a SGNC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGNC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGNC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir a elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o mundo ocidental.

Riscos das Manipulações Dietéticas

Os profissionais da saúde ao recomendar o manejo dietético para seus pacientes devem estar cientes dos potenciais riscos que estas intervenções possam causar. Uma estratégia de intervenção nutricional inadequada pode acarretar uma super-restrição alimentar com graves consequências a médio e longo prazos. Um estudo na Noruega (24) revelou que 12% dos pacientes portadores da SII receberam orientação dietética inadequada o que resultou em exclusões alimentares excessivas e prejudiciais. Além disso, muitos pacientes que se julgam intolerantes à lactose não são mal absorvedores de lactose, o que exige, portanto, a necessidade de comprovar de forma fidedigna se tal intolerância realmente existe. A restrição indevida de lactose da dieta pode acarretar reduções na ingestão de vitamina B2, fósforo e cálcio, além de outros micronutrientes. Deve-se também considerar que dietas restritivas são economicamente mais custosas tanto do ponto de vista financeiro como social.   
  
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