segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sensibilidade ao Glúten Não Celíaca: um novo transtorno digestivo funcional altamente desafiador (Parte 2)

Fisiopatologia

É importante assinalar que até o presente momento não se tem conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese da SGNC e nem tampouco se encontra disponível um marcador bioquímico que possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial. A inexistência de biomarcadores para caracterizar a SGNC representa ainda uma das principais limitações aos estudos clínicos. Este obstáculo reflete uma dificuldade significativa para a diferenciação da SGNC com os outros transtornos relacionados ao glúten.

A ausência de autoanticorpos e de lesões intestinais não exclui a toxicidade intrínseca do glúten, cuja ingestão, mesmo em pacientes não-celíacos, tem sido associada a danos a outros tecidos e órgãos, além do intestino.

Estudos mais recentes sugerem que, além do glúten, os inibidores da amilase–tripsina do trigo e os carboidratos pouco fermentáveis (frutanos), de baixa absorção e de cadeia curta, podem contribuir para a ocorrência dos sintomas (ao menos os relacionados à SII) vivenciados pelos pacientes com SGNC (8).

Carroccio e cols. demonstraram que os HLA DQ2 e DQ8, que predispõem à DC, são encontrados em 53% dos pacientes com SGNC, uma prevalência bem mais baixa do que a descrita na DC, que é de 95%, porém um pouco mais elevada do que na população em geral, que é de 30% (7).

Sapone et cols., em 2011, comparando a SGNC com a DC, demonstraram que na primeira a mucosa do intestino delgado apresenta-se praticamente normal ou apenas levemente inflamada (Marsh 0-1), enquanto que na DC houve algum grau de atrofia. A contagem dos Linfócitos Intra-Epiteliais (LIE) CD3+ foi mais alta na DC do que na SGNC, porém, por sua vez nesta foi mais elevada do que na população geral. No caso dos LIE gama-delta, estes foram mais numerosos na DC, enquanto que na SGNC não houve diferença em relação aos controles. Além disso, estes autores também demonstraram que há uma nítida diferença quanto ao comportamento da barreira de permeabilidade intestinal entre a DC e a SGNC. Na primeira ocorre um aumento da permeabilidade enquanto que na segunda este fenômeno não é observado. Segundo eles estes dois transtornos induzidos pelo glúten se constituem em entidades clínicas diversas. A SGNC estaria associada a uma ativação do mecanismo imunológico inato, enquanto que a DC estaria associada a ativação do mecanismo imunológico adaptativo (9). 

O gatilho dos eventos da mucosa do intestino delgado que leva à SGNC não é representado pela mesma matriz de peptídeos do glúten responsáveis pelo desenvolvimento da DC. Diferentemente da mucosa dos pacientes celíacos, a mucosa daqueles com SGNC, ao ser incubada com gliadina, não expressa os marcadores de inflamação e também não provoca ativação dos basófilos. Todavia, vários estudos sugerem um aumento nos LIE, sem aquela característica atrofia das vilosidades (MARSH 1) observada na DC, o que levaria a pensar em uma reação inflamatória leve, de provável ativação imunológica, já que também se tem visto uma relação positiva na SGNC com o AGA e o HLA DQ2/DQ8.

Em resumo, diante dos inúmeros aspectos fisiopatológicos ainda não elucidados na gênese deste transtorno digestivo provocado pelo glúten, poderia se especular que, pelo fato de que a maioria dos pacientes com SGNC apresentarem HLA DQ2/DQ8 positivos (53% no estudo de Carrocio e cols.), a DC latente não estaria totalmente excluída nos pacientes com SGNC.

Diagnóstico e Tratamento

No presente momento, não existem critérios objetivos para o diagnóstico da SGNC, na nossa experiência o diagnóstico baseia-se fortemente na obtenção de uma história clínica extremamente detalhada. Inclusive em algumas circunstâncias os próprios pacientes levantam a suspeita diagnóstica com base na retirada e reintrodução de determinados alimentos contendo glúten em suas dietas, o que deve ser avaliado com a devida pertinência pelo clínico.

A Figura 1 expõe um algoritmo para auxiliar no diagnóstico diferencial entre os transtornos relacionados ao glúten, e como se pode perceber o diagnóstico geralmente se estabelece por exclusão, após terem sido descartados a DC e a AT. A proposta diagnóstica por meio do ensaio duplo cego placebo controlada, muito embora seja aceita cientificamente, torna-se de muito difícil aplicação na prática clínica, portanto, um óbice significativo de ser ultrapassado.

Urge a necessidade de se encontrar um ou mais biomarcadores associados ou não a possíveis achados histopatológicos, porém, até o presente momento, ainda não há qualquer teste bioquímico que esteja disponível como ferramenta laboratorial confiável.

O tratamento baseia-se na introdução de uma dieta isenta de glúten que deve resultar no desaparecimento dos sintomas; a reintrodução do glúten na dieta deve provocar o retorno dos sintomas, o que confirma o diagnóstico da SGNC.

Conclusões

Considerando que a SGNC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGNC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGNC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir a elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o mundo ocidental.

Referências Bibliográficas

  • 1- Sapone et al.- BMC Med 2012;152:75-80
  • 2- Catassi et al.- Nutrients 2013;5:3839-53
  • 3- Ellis – Lancet 1978;1:1358-59
  • 4- Cooper et al.- Gastroenterology 1980;79:801-06
  • 5- Sapone et al.- Int. Arch. Allergy Immunol 2010;152:75-80
  • 6- Digiacomo et al.- Scand J Gastroenterol 2013;48:921-25
  • 7- Carroccio et al.- Am J Gastroenterol 2012;107:1898-1906
  • 8- Biesiekirski et al.- Gastroenterology 2013;145:320-28
  • 9- Sapone et al.- BMC Med 2011;9-23

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