Introdução
Está
cientificamente comprovado que a introdução de grãos contendo glúten ocorreu há
cerca de 10.000 anos (Período Neolítico ou
da Pedra Polida, que corresponde à sedentarização e
ao surgimento da agricultura, aproximadamente 300 gerações), época em que o
ser humano abandonou os hábitos nômades e também deixou de ser apenas
coletor-caçador, passou a viver em comunidades assentadas e tornou-se
agricultor. Uma teoria popular afirma que os grãos, em virtude da sua
composição química, são prejudiciais à saúde, e, portanto, representam um “erro
da evolução” na cultura alimentar. Esta hipótese admite que do ponto de vista
evolutivo este período de tempo foi muito curto para que o ser humano fosse
capaz de se adaptar aos conteúdos específicos do trigo. Dentro desta possível
falta de adaptação, estariam aí incluídos os elevados teores de carboidratos
absorvíveis e não absorvíveis contidos no trigo, os quais têm sido
responsabilizados por muitos efeitos prejudiciais à saúde provocados pelos
grãos, tais como as epidemias de obesidade e os transtornos digestivos e/ou
extra digestivos, presentemente vivenciadas no mundo ocidental. Assim sendo, esta
profunda transformação socioambiental do ser humano teria criado as condições
para o surgimento das enfermidades relacionadas à exposição ao glúten, tais como
a Alergia ao Trigo (AT), a Doença Celíaca (DC) e, mais recentemente, a Sensibilidade
ao Glúten Não Celíaca (SGNC). Esta teoria exposta em um livro que se tornou best seller rapidamente se disseminou
nos meios sociais de comunicação e da imprensa leiga, ganhando enorme aceitação
popular. Atualmente, como inúmeras celebridades abraçaram esta ideia e aderiram
às dietas isentas de glúten, como método para perder peso, fez com que mais
combustível fosse colocado para popularizar esta hipótese. Entretanto, esta
teoria deve ser claramente diferenciada, do ponto de vista científico, da
questão de que o glúten pode ou não causar outros transtornos além da DC e da
AT. O objetivo desta revisão é enfocar esta pretensa polêmica com base nas
evidências científicas até o presente momento disponíveis na literatura médica.
Diante destas tão controvertidas circunstâncias
envolvendo o glúten como potencial provocador de transtornos à saúde no ser
humano, foi organizado um encontro de especialistas em Londres, em 2011, com o
intuito de se desenvolver um consenso sobre as novas nomenclatura e
classificação dos transtornos relacionados ao glúten, que culminou com a
proposta de um algoritmo diagnóstico para melhor diferenciá-las entre si (1). Portanto, atualmente há um entendimento global, no
meio científico, que o termo “transtornos relacionados ao glúten” é uma
denominação “guarda-chuva” que deve ser utilizado para descrever todas as
condições clínicas relacionadas à ingestão de alimentos que contém glúten, tais
como o trigo, centeio e cevada, a saber: DC, AT e SGNC.
Considerando-se
o elevado interesse despertado pela recentemente reconhecida SGNC, foi
realizado em dezembro de 2012, em Munique, o Segundo Encontro de Experts para
avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais tendências da SGNC, cujas principais
conclusões estão descritas, a seguir: “A SGNC é uma entidade clínica na qual os
sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos
celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado
observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da
primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado,
a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGNC tem se revelado muito baixa
(7,7%). É importante salientar que os marcadores sorológicos mais confiáveis (anticorpo
antitransglutaminase e antiendomisio) para DC têm sempre se revelado negativos
nos pacientes com SGNC” (2).
Vale
ressaltar que este painel de experts
concordou que a nomenclatura SGNC deve ser provisória e que muito provavelmente
haverá um refinamento da mesma em breve futuro.
Histórico
Ellis
e Linaker, em 1978, publicaram o caso de uma paciente que se queixava de
diarreia e dor abdominal intermitente. A investigação laboratorial não mostrou
anormalidades à biópsia do intestino delgado, mas apesar de não ter sido
caracterizada a doença celíaca (DC), ela foi submetida a uma dieta isenta de
glúten, a qual levou ao desaparecimento dos sintomas. Esse foi, ao que tudo
indica, o primeiro caso cientificamente reconhecido de SGNC (3).
Seguindo-se
a essa observação, Cooper e cols., na Suécia, em 1988, publicaram esta síndrome
envolvendo 8 mulheres adultas, que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica.
As investigações laboratoriais excluíram DC, porém, ainda assim, elas foram
submetidas a uma dieta isenta de glúten. As pacientes apresentaram uma melhora clínica
dramática com o uso da dieta isenta de glúten, e ao serem desafiadas com glúten
ocorreu retorno dos sintomas. Biópsias de jejuno nessas pacientes evidenciaram
pequenas, porém significantes alterações na celularidade, que regrediram com a utilização
da dieta isenta de glúten. Nenhuma outra alteração imunológica ou clínica que
sugerisse DC foi encontrada (4).
Desde
então, a SGNC permaneceu no esquecimento, e, somente foi “redescoberta” em
2010, por Sapone e cols. Estes autores caracterizaram-na pela presença de
sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de
alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou AT. A partir
deste novo relato da SGNC, rapidamente um número cada vez maior de artigos tem
sido publicado por inúmeros grupos independentes, confirmando que a SGNC deve
ser definitivamente incluída no espectro dos transtornos relacionados ao
glúten. Entretanto, os mais diversos aspectos da epidemiologia, fisiopatologia,
espectro clínico e tratamento da SGNC ainda permanecem obscuros. Os
esclarecimentos destes aspectos até o momento não elucidados deverão ser
alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais utilizando
metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos
multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGNC (5).
Prevalência
A
prevalência da SGNC na população geral ainda é desconhecida, principalmente em
decorrência dos elevados “autodiagnósticos” e da consequente utilização de
dieta isenta de glúten, de forma indiscriminada, sem comprovação diagnóstica
após a devida investigação clínica e laboratorial.
De
qualquer maneira, a SGNC não parece ser uma enfermidade rara, pois um estudo
realizado nos Estados Unidos, em 2009, por Digiacomo e cols. entrevistando aleatoriamente
7762 pessoas com idades a partir dos 6 anos revelou que 0,55% dos indivíduos
haviam aderido à dieta isenta de glúten de forma espontânea. Vale ressaltar que
esta investigação foi realizada em data anterior aos novos conhecimentos
disponíveis sobre a SGNC (6).
Embora
os fatores de risco para a SGNC ainda não estejam definitivamente identificados
tudo indica que ela é mais comum em mulheres jovens ou de meia-idade.
A
análise da epidemiologia da Síndrome do Intestino Irritável (SII) indiretamente
estima a frequência da SGNC. No nordeste da Europa, a prevalência da SII na
população adulta em geral é de 16-25%. Em uma série de pacientes com SII, a
frequência de SGNC, em estudo duplo-cego, placebo-controlado foi de 28%.
Um
amplo estudo realizado por Carroccio e cols., em 2012, revelou que 30% dos
indivíduos com sintomas compatíveis da SII de acordo com os critérios de Roma
II sofriam de sensibilidade ao trigo e/ou a múltiplos alimentos. Assim, se for
levado em consideração este estudo, uma proporção consistente de pacientes com
SII é afetada pela SGNC, o que faz crer que a prevalência desta síndrome na
população geral parece ser maior que a da DC, que é cerca de 1%, na maioria dos
países do mundo ocidental, inclusive no Brasil. Entretanto, a prevalência da
SGNC na faixa etária pediátrica ainda é desconhecida (7).
Manifestações Clínicas
A
SGNC caracteriza-se pela ocorrência de sintomas digestivos e extra digestivos relacionados
à ingestão de alimentos contendo glúten, nas pessoas não afetadas por DC, nem tampouco
por AT.A
apresentação “clássica” da SGNC caracteriza-se por sintomas que usualmente
aparecem logo após a ingestão de glúten, desaparecem com a retirada do glúten
da dieta e reaparecem nas próximas horas ou poucos dias subsequentes, após um
teste de provocação com glúten. A manifestação clínica típica da SGNC é uma
combinação de sintomas similares aos observados na SII incluindo dor abdominal,
flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e
manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores
musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os
pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles
espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos
contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGNC manifesta-se
tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e
diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes
nas crianças, e quando elas surgem o sintoma mais comum tem sido cansaço.
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