Sensibilidade ao Glúten não
Celíaca (SGNC)
Os transtornos
relacionados ao glúten são ativados pela ingestão de grãos contendo glúten
pelos indivíduos que apresentam predisposição genética e/ou imunológica a este alimento.
O trigo, assim como o centeio e a cevada, contém 2 grandes grupos de moléculas que
possuem potencial para causar sintomas gastrointestinais, a saber: carboidratos
não digeríveis e proteínas (Figura 6).
Figura 6- Estrutura e componentes do núcleo do trigo.
O glúten corresponde a
cerca de 80% da proteína do trigo. Uma grande parcela das proteínas “não
glúten” agem como enzimas ou inibidoras de enzimas. Duas relativamente pequenas
glicoproteínas, inibidoras da ᾀ-amilase/tripsina e a lectina do germe do trigo, são potentes
ativadoras de diferentes aspectos do sistema imunológico. Estas atividades têm
sido implicadas na patogênese das síndromes de alergia ao trigo, doença celíaca
e SII. Recentemente, além das síndromes acima mencionadas, têm sido relatados
casos de reações aos grãos contendo glúten que não envolvem mecanismos
alérgicos (alergia ao trigo – “asma do padeiro”) nem tampouco autoimunes
(doença celíaca – DC)). Esta nova entidade clínica passou a ser denominada
Sensibilidade ao Glúten não Celíaca (SGNC). Indivíduos que apresentam
manifestações clínicas adversas ao ingerirem produtos contendo glúten e cujos
sintomas desaparecem quando submetidos à dieta isenta de glúten podem ser
portadores da SGNC ao invés da DC. Os indivíduos que sofrem da SGNC desenvolvem
reações adversas quando ingerem
alimentos contendo glúten, entretanto, estas manifestações clínicas não
acarretam uma enteropatia autoimune, caracterizada por atrofia vilositária e
hiperplasia críptica como ocorre na DC.
A SGNC foi primeiramente
descrita por Ellis e Linaker, em 1978, em uma paciente que apresentava queixa
de diarreia crônica e dor abdominal recorrente durante 2 anos, sem perda de
peso. A investigação laboratorial não revelou anormalidades à biópsia do
intestino delgado, porém, apesar de não ter sido caracterizada DC a paciente foi
submetida a uma dieta isenta de glúten, a qual resultou em total
desaparecimento dos sintomas digestivos após 4 dias de dieta (9). A
reintrodução do glúten na dieta fez recrudescer os sintomas, porém, nova
biópsia jejunal não revelou alterações compatíveis com DC. Submetida novamente
a uma dieta isenta de glúten ocorreu desaparecimento dos sintomas
digestivos. Os autores consideraram, na
ocasião, que os sintomas da paciente se deviam a uma Sensibilidade ao Glúten.
Posteriormente, Cooper e
cols., em 1980, na Suécia, descreveram a SGNC em um grupo de 8 mulheres adultas
que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica, as quais eram geralmente
incapacitantes e frequentemente noturnas. Estas queixas apresentavam alívio significativo
com utilização de dieta isenta de glúten e recrudesciam com a reintrodução do
glúten na dieta. Múltiplas biópsias de jejuno foram realizadas e não revelaram
alterações compatíveis com DC. Diante destes achados os autores concluíram que
estas pacientes apresentavam um quadro diarreico Sensível ao Glúten, porém, sem quaisquer evidências de DC (10).
A despeito destas
descrições, esta entidade clínica permaneceu no esquecimento até 2010, quando
Sapone e cols. (11) redescobriram esta enfermidade, cujos sintomas digestivos e
extra-digestivos estavam relacionados com a ingestão de alimentos contendo
glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou alergia ao trigo. Nesta ocasião,
os autores investigaram 24 pacientes adultos que apresentavam indistintamente os
seguintes sintomas digestivos: diarreia crônica, dor abdominal, constipação,
perda de peso, flatulência e esteatorreia. Além disso, apresentavam também os
seguintes sintomas extra-digestivos: fraqueza anemia, dores articulares,
câimbras, formigamento e/ou adormecimento das pernas, descoloração dentária,
glossite e tireoidite autoimune. Um grupo controle foi constituído por 7
pacientes portadores de dispepsia. As manifestações clínicas e os resultados
das investigações laboratoriais estão descritos nas Figuras 7 e 8.
Figura 7- Comparação das características clínicas entre os 3 diferentes grupos de pacientes estudados de acordo com o diagnóstico final estabelecido.
Figura 8- Comparação entre os achados histológicos das biópsias duodenais dos 3 grupos de pacientes estudados: a) controles (7); b) SGNC (11); DC (13)
A partir desta pesquisa,
Sapone e cols. demonstraram que os 11 pacientes portadores da SGNC apresentavam
mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos 13 pacientes
celíacos ocorreu atrofia vilositária sub-total e hiplerplasia críptica, muito
embora a sintomatologia clínica fosse absolutamente similar em ambos os grupos
de pacientes.
Vale ressaltar que até o presente momento não se conhecem os
possíveis mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta entidade e nem
tampouco encontra-se disponível algum marcador bioquímico ou histopatológico
que possibilite estabelecer um diagnóstico definitivo de certeza. Entretanto, considerando-se
o elevado interesse despertado pela recentemente reconhecida SGNC, desde 2010 foram
realizadas 3 Conferências de Consenso, a última
delas foi realizada em dezembro de 2012, em Munique, sob a denominação de
Encontro de Experts para avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais
tendências da SGNC, cujas principais conclusões estão descritas, a seguir: “A SGNC é uma entidade clínica na qual os
sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos
celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado
observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da
primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado,
a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGNC tem se revelado muito baixa
(7,7%). É importante salientar que os marcadores sorológicos mais confiáveis
(anticorpo antitransglutaminase e antiendomisio) para DC têm sempre se revelado
negativos nos pacientes com SGNC”. No entanto, deve-se fazer a ressalva que
este painel de experts concordou que
a nomenclatura SGNC deve ser provisória e que muito provavelmente haverá um
refinamento da mesma em breve futuro (12).
Prevalência
A prevalência da SGNC na população geral ainda é desconhecida,
principalmente em decorrência dos elevados “autodiagnósticos” e da consequente
utilização de dieta isenta de glúten, de forma indiscriminada, sem comprovação
diagnóstica a partir da necessária investigação clínica e laboratorial.
De qualquer maneira, a SGNC não parece ser uma enfermidade rara,
pois um estudo realizado nos Estados Unidos, em 2009, por Digiacomo e cols. entrevistando
aleatoriamente 7762 pessoas com idades a partir dos 6 anos revelou que 0,55%
dos indivíduos haviam aderido à dieta isenta de glúten de forma espontânea.
Vale ressaltar que esta investigação foi realizada em data anterior aos novos
conhecimentos disponíveis sobre a SGNC (13).
Embora os fatores de risco para a SGNC ainda não estejam
definitivamente identificados tudo indica que ela é mais comum em mulheres
jovens ou de meia-idade.
Manifestações Clínicas
A SGNC caracteriza-se pela ocorrência de sintomas digestivos e extra
digestivos relacionados à ingestão de alimentos contendo glúten, nas pessoas
não afetadas por DC, nem tampouco por AT.
A apresentação “clássica” da SGNC caracteriza-se por sintomas que
usualmente aparecem logo após a ingestão de glúten, desaparecem com a retirada
do glúten da dieta e reaparecem nas próximas horas ou nos poucos dias
subsequentes, após um teste de provocação com glúten. A manifestação clínica
típica da SGNC é uma combinação de sintomas incluindo dor abdominal,
flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e
manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores
musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os
pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles
espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos
contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGNC manifesta-se
tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e
diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes
nas crianças, e quando elas surgem o sintoma mais comum tem sido cansaço (14).
Fisiopatologia
A ausência de autoanticorpos e de lesões intestinais não exclui a
toxicidade intrínseca do glúten, cuja ingestão, mesmo em pacientes
não-celíacos, tem sido associada a danos a outros tecidos e órgãos, além do
intestino.
Estudos mais recentes sugerem que, além do glúten, os inibidores da
amilase–tripsina do trigo e os carboidratos pouco fermentáveis (frutanos), de
baixa absorção e de cadeia curta, podem contribuir para a ocorrência dos
sintomas vivenciados pelos pacientes com SGNC.
Carroccio e cols. demonstraram que os HLA DQ2 e DQ8, que predispõem
à DC, são encontrados em 53% dos pacientes com SGNC, uma prevalência bem mais
baixa do que a descrita na DC, que é de 95%, porém um pouco mais elevada do que
na população em geral, que é de 30% (15).
Sapone et cols., em 2011, comparando a SGNC com a DC, demonstraram que
na primeira a mucosa do intestino delgado apresenta-se praticamente normal ou
apenas levemente inflamada (Marsh 0-1), enquanto que na DC houve algum grau
significativo de atrofia. A contagem dos Linfócitos Intra-Epiteliais (LIE) CD3+
foi mais alta na DC do que na SGNC, porém, por sua vez nesta foi mais elevada
do que na população geral. No caso dos LIE gama-delta, estes foram mais
numerosos na DC, enquanto que na SGNC não houve diferença em relação aos
controles. Além disso, estes autores também demonstraram que há uma nítida
diferença quanto ao comportamento da barreira de permeabilidade intestinal
entre a DC e a SGNC. Na primeira ocorre um aumento da permeabilidade enquanto
que na segunda este fenômeno não é observado. Segundo eles estes dois
transtornos induzidos pelo glúten se constituem em entidades clínicas diversas.
A SGNC estaria associada a uma ativação do mecanismo imunológico inato,
enquanto que a DC estaria associada a ativação do mecanismo imunológico
adaptativo (16).
O gatilho dos eventos na mucosa do intestino delgado que leva à SGNC
não é representado pela mesma matriz de peptídeos do glúten responsáveis pelo
desenvolvimento da DC. Diferentemente da mucosa dos pacientes celíacos, a
mucosa daqueles com SGNC, ao ser incubada com gliadina, não expressa os
marcadores de inflamação e também não provoca ativação dos basófilos. Todavia,
vários estudos sugerem um aumento nos LIE, sem aquela característica atrofia das
vilosidades (Marsh 1) observada na DC, o que levaria a pensar em uma reação
inflamatória leve, de provável ativação imunológica, já que também se tem visto
uma relação positiva na SGNC com o AGA e o HLA DQ2/DQ8.
Em resumo, diante dos inúmeros
aspectos fisiopatológicos ainda não elucidados na gênese deste transtorno
digestivo provocado pelo glúten, poderia se especular que pelo fato da maioria
dos pacientes com SGNC apresentarem HLA DQ2/DQ8 positivos (53% no estudo de
Carrocio e cols.), a DC latente não estaria totalmente excluída nos pacientes
com SGNC.