A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica
O Pós-Doutorado: Um
Projeto de Pesquisa Experimental
Introdução
A- Aspectos de Importância da Fisiologia dos Sais Biliares
A
bile é uma solução aquosa complexa, constituída por compostos orgânicos e
inorgânicos e que se encontra armazenada na vesícula biliar. Sua composição,
cor, fluxo, viscosidade e conteúdo sólido totais variam largamente durante o
decorrer do dia, assim como de uma espécie para outra (Figura 1).
Figura 1- Representação esquemática
do ciclo de produção da bile a partir do fígado, armazenamento na vesícula
biliar, liberação no duodeno e respectiva reabsorção no íleo terminal.
Quando
a bile alcança o duodeno uma grande proporção dos seus constituintes não estará
irreversivelmente perdida nas fezes, ao contrário, em condições normais estará
destinada a ser reabsorvida, retornará ao fígado e será reexcretada na bile.
Os sais biliares e a bilirrubina são produzidos no fígado e constituem 2 dos
mais importantes solutos orgânicos componentes da bile; são também típicos
exemplos do mecanismo do reaproveitamento anteriormente mencionado, muito
embora se deem por vias distintas e independentes entre si. Os outros
componentes orgânicos da bile são o colesterol e os fosfolípides, em especial a
lecitina (Figura 2).
Figura 2- Visão esquemática da cara
posterior do fígado evidenciando a localização da vesícula biliar.
Os
sais biliares vêm despertando a curiosidade dos químicos, bioquímicos,
fisiologistas e médicos há mais de 150 anos. Como resultado direto deste
interesse uma avalanche de conhecimentos sobre a natureza química e física dos
sais biliares tem se acumulado na literatura científica. Entretanto, somente
nestas últimas décadas têm sido descritos estados de enfermidade que são causados
diretamente pelos sais biliares, ou então, de forma indireta, como resultado
das alterações do seu metabolismo e/ou fisiologia, particularmente causadas
pela degradação da microflora bacteriana intestinal sobre os mesmos.
No
fígado do ser humano, a partir da molécula do Colesterol são sintetizados 2
tipos de sais biliares, por isto são chamados Primários, a saber: Ácido Cólico
(Figura 3) e Ácido Quenodeoxicólico.
Figura 3- Estrutura química do Ácido
Cólico, sal biliar primário.
Os
sais biliares constituem-se em compostos de 24 átomos de Carbono que possuem um
núcleo com a configuração do ciclopentanoperhidrofenantreno, derivado do
Colesterol. A cadeia lateral contém 5 átomos de Carbono que termina em grupo
Carboxila (OH) e que se comporta como ácido orgânico, daí o nome Ácido Biliar;
recebe a inclusão de um ou dois radicais hidroxilas (OH) em posições 7α e 12α.
O Ácido Cólico é tri-hidroxilado (ácido 3α, 7α e 12α, trihidroxi, 5β colanóico)
e o Ácido Quenodeoxicólico é dihidroxilado (ácido 3α e7α, dihidroxi, 5β
colanóico). Os sais biliares estão ligados em forma peptídica com glicina
e/ou taurina e a relação entre os compostos conjugados glicina/taurina se faz
na proporção de 3:1. Este tipo de conjugação se dá no hepatócito via CoA e tem
por objetivo proporcionar um aumento da solubilidade dos sais biliares em
sistemas aquosos porque abaixa sua constante de dissociação. Os valores de pK
destes conjugados são mais baixos do que o pH do conteúdo intestinal, por esta
razão, os Ácidos Biliares existem no nosso organismo sob a
forma de Sais de Sódio ou Potássio, por este motivo são denominados Sais
Biliares (Figura 4).
Figura 4- Estrutura química dos
ácidos biliares primários e secundários. Observar nas cadeias laterais a
conjugação com glicina ou taurina.
Nos
vertebrados a molécula do colesterol é o mais importante constituinte das
membranas celulares, e a maioria dos tecidos do organismo sintetiza colesterol
continuamente. A retenção excessiva do colesterol está associada a elevadas
taxas do colesterol sérico e doença arterial. Assim sendo, torna-se necessário
que o organismo disponha de meios apropriados para provocar a eliminação do
excesso do colesterol sérico. Este objetivo é alcançado quimicamente pela
conversão do colesterol em seus derivados hidrossolúveis, os sais biliares, os
quais são secretados com a bile. Além disso, esta função é também fisicamente
executada pela excreção do colesterol como tal, que passa a formar um complexo
micelar constituído por sais biliares-lecitina-colesterol. Como se pode
depreender os sais biliares são praticamente os únicos responsáveis pela
excreção do colesterol do organismo; além de serem sintetizados a partir da
molécula do colesterol atuam diretamente no seu transporte, criando as
condições propicias de solubilização para eliminar seu precursor do organismo.
Os sais biliares também induzem o fluxo biliar, isto é, estimulam o movimento
dos fluidos durante sua secreção para o interior dos canalículos biliares,
ainda dentro do parênquima hepático. Além disso, um eficiente sistema de
transporte para a circulação sistêmica, localizado no íleo terminal,
possibilita conservar a maior parte das moléculas dos sais biliares, posto que
estes retornam ao fígado, e são novamente secretados na bile. Este processo é
denominado Circulação Entero-Hepática o qual permite, por um
lado, reciclar os sais biliares, e de outra parte, de forma concomitante,
controlar a excreção do colesterol (Figuras 5-6).
Figura 5- Representação esquemática
da circulação entero-hepática.
Figura 6- Visão das estruturas
anatômicas componentes da circulação entero-hepática.
A
existência da circulação entero-hepática assegura a manutenção de uma
concentração ideal dos sais biliares no organismo. Os sais biliares
participam da circulação entero-hepática sob 2 formas de estrutura química, a
saber: 1- sais biliares primários, Ácido Cólico e Ácido Quenodeoxicólico; 2-
sais biliares secundários, Ácido Deoxicólico (ácido 3α e 12α, dihidroxi, 5β
colanóico) e Ácido Litocólico (ácido 3α hidroxi, 5β colanóico), os quais são
formados no íleo terminal a partir dos sais biliares primários decorrentes de
uma mudança estrutural denominada 7-alfa desidroxilação, por ação das bactérias
componentes da microflora normal, em especial as anaeróbias (Figuras 7-8).
Figura 7- Transformação do sal biliar
primário Colato em sal biliar secundário Deoxicolato pela ação da enzima
bacteriana acarretando a 7 alfa desidroxilação (em vermelho).
Figura 8- Estruturas químicas dos
sais biliares primários (Cólico e Quenodeoxicólico) e secundários (Litocólico e
Deoxicólico).
O Ácido Deoxicólico é
prontamente absorvido a partir do íleo e do colon, retorna ao fígado aonde é
reconjugado e secretado na bile, perfazendo cerca de 20% do total dos sais
biliares, enquanto que o Ácido Litocólico é pouco solúvel à
temperatura corporal, é absorvido em mínimas quantidades, sua maior parte é
excretada nas fezes. A circulação entero-hepática é mantida por 2 bombas
químicas, as quais extraem eficientemente os sais biliares e transportam-nos em
sentido unidirecional. A primeira delas localiza-se no fígado e é responsável
pela extraordinária rapidez pela qual os sais biliares retornam ao fígado, são
extraídos do plasma e reexcretados na bile. A segunda bomba química está
localizada no íleo terminal que remove 95% dos sais biliares que atingem esta
porção do intestino e transporta-os para a circulação portal. Desta forma
somente até 5% dos sais biliares sintetizados no fígado são eliminados nas
fezes. Além dessas 2 bombas químicas, a vesícula biliar e o intestino delgado
podem ser também considerados como bombas físicas.
Estima-se
que o “pool” de sais biliares realiza a circulação entero-hepática 10 vezes por
dia. Um indivíduo normal apresenta um “pool” de sais biliares de
aproximadamente 3,5g e a circulação entero-hepática deste “pool” é da ordem de
35.000mg/24 horas.
Ao
atingir o íleo terminal, cerca de 25% dos sais biliares primários conjugados
com taurina ou glicina sofrem desconjugação por ação da flora bacteriana,
principalmente anaeróbia, a qual existe em concentração elevada
(aproximadamente 10 elevada a 9 colonias/ml de secreção ileal). Por outro lado,
a maior parte destes sais biliares desconjugados é reabsorvida, retorna ao
fígado e é novamente conjugada com glicina e/ou taurina dando sequência, assim,
a seu ciclo diário de circulação.
A
função mais importante dos sais biliares é, indiscutivelmente, criar um meio
ambiente propício no lúmen jejunal para favorecer a solubilização das gorduras
ingeridas com a dieta e assim permitir que o processo de digestão das mesmas se
realize com máximo aproveitamento. Esta propriedade particular dos sais
biliares primários está diretamente relacionada com sua capacidade de
“detergência”. Detergentes são compostos químicos que apresentam dupla
atividade, ou seja, uma porção da sua molécula interage de forma efetiva com a
água (fração hidrofílica) ao passo que a outra porção o faz de forma débil
(fração hidrofóbica). No caso dos sais biliares, as hidroxilas (radicais OH) e
a cadeia lateral são hidrofílicas, ao passo que a estrutura esteróide é
hidrofóbica (Figura 9).
Figura 9- Representação esquemática
dos polos hidrofílicos e hidrofóbicos dos sais biliares.
Em
baixas concentrações as moléculas dos sais biliares encontram-se dispersas em
solução, mas em concentrações mais elevadas e dependendo de certas condições
basais do fluido intestinal (pH, temperatura etc.) ao atingir a denominada
concentração micelar crítica começa a ocorrer uma agregação molecular. Estes
agregados são denominados micelas (Figura 10).
Figura 10- Representação esquemática
da formação da micela.
Em
condições fisiológicas a concentração micelar crítica encontra-se ao redor de 1
a 3 mM, e, em adultos normais, a concentração dos sais biliares varia de 5 a 25
mM; por outro lado, em recém-nascidos e nos primeiros meses de vida esta
concentração é significativamente mais baixa, ao redor de 1,2 a 3 mM. A criação
da fase micelar juntamente com a solubilização dos compostos de gordura acelera
a reação lipolítica (digestão da gordura) no sentido de sua completa realização
e, ao mesmo tempo, aumenta consideravelmente a disponibilidade da gordura já
digerida pela lípase pancreática sob a forma de glicerol e ácidos graxos
(reação de desesterificação) para ser absorvida pelos enterócitos do jejuno
(Figura 11).
Figura 11- Representação esquemática
do processo de digestão das gorduras da dieta.
No
interior dos enterócitos irá ocorrer a reação de re-esterificação, ou seja,
volta a ser formada a união do glicerol com os ácidos graxos (gordura), que
serão transportados na circulação sanguínea pela veia porta em direção ao
fígado ligados pela β-lipoproteina, fechando-se o ciclo da digestão-absorção
das gorduras (Figura 12).
Figura 12- Representação esquemática
do processo absortivo do colesterol, dos ácidos graxos e dos monoglicerídeos.
Pode-se,
portanto, depreender que os sais biliares desempenham algumas funções de
extrema importância para que os processos digestivo-absortivos se deem de forma
plena e além disso têm também crucial papel no controle dos níveis séricos do
colesterol no organismo humano. Por outro lado, alterações patológicas na
localização da microflora bacteriana do trato digestivo interferem diretamente
nos mecanismos fisiológicos acima descritos e irão provocar inúmeros efeitos
colaterais indesejáveis para o organismo, sobre os quais versou este projeto de
pesquisa experimental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário