5.5- A chegada a Buenos Aires e a busca por uma nova
moradia
Ao chegarmos a Buenos Aires, em meados de janeiro
de 1973, nos instalamos no Hotel Diplomat, localizado na “Calle San Martin”,
uma rua paralela à “Calle Florida” (Figura 1).
Figura 1 - Localização do Hotel Diplomat tomando-se
como referência a Calle Florida.
O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro (Figura 2).
O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro (Figura 2).
Figura 2- Trajeto a ser percorrido desde a nossa
casa até o centro comercial de Buenos-Aires representado pela Calle Florida.
Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “Calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste (Figura 3).
Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “Calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste (Figura 3).
Figura 3- Trajeto a ser percorrido desde a nossa casa até o Policlínico
Alejandro Posadas, em Haedo, Província de Buenos-Aires.
Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 4-5-6).
Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 4-5-6).
Figura 4- A família na sala de estar do nosso
apartamento. O violão servia para matar as saudades de casa.
Figura 5- Desfrutando o fim do verão em Palermo com
o filho de 1 ano de idade.
Figura 6- A visita da minha mãe depois de longa
ausência.
5.6- O hospital Policlínico Alejandro Posadas e o
começo das minhas atividades de especialização
O Policlínico Alejandro Posadas, ainda nos dias
atuais, é um hospital público federal, localiza-se em Haedo, fora da capital
federal, mas que faz parte da área da Grande Buenos Aires, a alguns poucos
quilômetros depois de se cruzar a avenida General Paz em direção a oeste (esta
avenida circunda a cidade de Buenos Aires e separa a capital federal da
Província de Buenos Aires, cuja capital é La Plata). Está situado em uma ampla
área de terreno cercado por um enorme gramado e um lindo bosque. Foi construído
na década de 1950 para ser um sanatório para tratamento de tuberculose, mas
nunca funcionou como tal, e somente foi aberto em 1970, para funcionar como um
hospital geral, tendo aproximadamente 1000 leitos sendo 100 deles para
Pediatria (Figuras 7-8-9-10-11).
Figura 7- Vista da entrada principal do Policlínico
Alejandro Posadas.
Figura 8- Vista lateral do hospital mostrando o
bloco da Pediatria.
Figura 9- Vista desde o andar da gastropediatria
para a entrada principal do hospital e visão parcial da cidade de Haedo ao
fundo.
Figura 10- Vista do jardim de entrada do hospital e
visão parcial do centro da cidade de Haedo ao fundo.
Figura 11- Vista da varanda de um dos apartamentos
de internação do hospital, o jardim e o bosque na parte posterior. Da esquerda
para a direita Jorge Donatone, especializando de La Plata, Mirta Ciocca,
residente de terceiro ano, e "Negro" Rodriguez, especializando de La
Plata. Donatone especializou-se em Endoscopia, trabalha no hospital Soror
Ludovica em La Plata, escreveu um lindo livro sobre endoscopia e atualmente
está lançando o segundo livro sobre o tema e me convidou para escrever o
Prefácio do mesmo. Mirta especializou-se em Hepatologia, atualmente é Chefe do
Serviço de Transplante Hepático do Hospital Garrahan, Buenos Aires, somos
grandes amigos desde aqueles dias. "Negro" tornou-se ativista
político contra a ditadura que se instalou em 1976 e é um dos desaparecidos.
O serviço de Pediatria, cujo chefe era Dr.
Toccalino, já era todo dividido por especialidades pediátricas e os leitos de
internação estavam localizados em amplos apartamentos, com banheiro acoplado,
na maioria das vezes ocupados por apenas duas camas, nunca mais do que quatro.
Os pais tinham permissão para permanecer todo o tempo que desejassem junto com
seus filhos, fato totalmente inédito para mim naquela época, porque aqui no
Hospital São Paulo, e possivelmente na quase totalidade dos hospitais públicos
brasileiros, as crianças permaneciam internadas desacompanhadas; somente era
permitida a visita dos pais duas vezes por semana durante o período de meia
hora. Apenas no início da década de 1990 é que foi promulgada uma lei criando
obrigatoriamente a figura dos pais participantes em todos os hospitais
brasileiros. Portanto, foi para mim o primeiro choque, muito positivo por
sinal, ter que travar contato direto com os pais das crianças internadas nos
leitos que eu cuidava e dar a eles todas as satisfações e explicações do que
estava ocorrendo com seus filhos. Diga-se de passagem, isto foi um impacto tão
importante para mim que, quando voltei ao Brasil, passei a defender
fervorosamente esta ideia, tendo encontrado inúmeras resistências contrárias a
essa proposta, e somente consegui implementar este modelo quando me tornei
chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo, em São Paulo, a partir
de 1986.
O programa de Residência Médica em Pediatria estava
bem consolidado e nos primeiros dois anos era semelhante ao nosso, ou seja,
Pediatria Geral com rodízios nas enfermarias, ambulatórios e pronto-socorro. No
terceiro ano, porém, o Residente escolhia uma especialidade pediátrica, dentre
as muitas oferecidas, para se especializar. Eu entrei como médico residente de
terceiro ano tendo que cuidar dos meus leitos, realizar os procedimentos de
investigação diagnóstica da especialidade e atender o ambulatório de pacientes
externos e ex-internados, sob a supervisão de um médico sênior. O ambulatório
de pacientes externos eu fazia diretamente com Dr. Toccalino, como seu
assistente. Como parte do programa de treinamento tinha também que participar
das inúmeras reuniões científicas de apresentação de trabalhos, discussão de
casos clínicos, revisão das lâminas das biópsias no serviço de Patologia, e da
realização dos exames radiológicos, tudo isto no que se referia à
especialização na Gastropediatria (Figuras 12-13). Além disso, uma vez por
semana tinha que estar presente na reunião clínico-científica do Serviço de
Pediatria, quando todos os médicos contratados, residentes e especializandos
participavam com apresentações de casos clínicos das diversas especialidades,
e, periodicamente, também havia alguma palestra com um médico convidado
externo. Tratava-se, pois, de um programa bastante intenso de atividades
assistenciais e científicas em tempo integral, afora as horas extras que eu
tinha que conseguir encaixar no meu dia a dia para me dedicar aos estudos mais
atualizados da literatura médica.
Figura 12- Reunião de revista com Dr. Toccalino (ao
fundo à esquerda); à direita ao fundo Jorge Donatone e mais próximo Eduardo
Cueto Rua (outro especializando de La Plata).
Figura 13- Os temíveis "pases de sala"
(visitas aos leitos) sob o comando do Dr. Toccalino, quando ele cobrava de
todos eficiência no atendimento aos pacientes internados. No primeiro plano à
direita está Luis Guimarey especializando de La Plata, tornou-se Nutrólogo, foi
preso político durante a ditadura, exilou-se no Brasil por meu intermédio
juntamente com sua família, foi professor da UNICAMP e retornou à La Plata
assim que terminou a ditadura e atualmente é Chefe do Serviço de Nutrologia do
hospital Soror Ludovica. Ainda em primeiro plano à esquerda está
"Chango" Córdoba, residente do Posadas, natural de Tucuman, nos tornamos
grandes amigos jogando futebol nos fins de semana. Quando terminou a residência
foi para La Pampa, interior da Argentina, exercer pediatria como intensivista
do hospital local. Depois de 25 anos sem vê-lo, em 1998, recebi um chamado
telefônico de sua mulher contando que ele havia sofrido um infarto e estava em
Buenos Aires para ser operado e que ele havia dito a ela que queria me ver de
qualquer maneira. Por coincidência na semana seguinte eu iria a Tucuman, pois
havia sido convidado para dar palestras em um evento científico, então, fiz uma
escala em Buenos Aires para vê-lo; ele já havia sido operado, foram colocadas
umas quantas pontes de safena, estava convalescendo da cirurgia, recuperando-se
muito bem, foi uma emoção enorme nosso reencontro. Voltei a vê-lo pela última
vez em Córdoba durante o Congresso Latinoamericano de Gastroenterologia
Pediátrica em 2001, ele viajou desde sua cidade, mais de 400 km de distância,
especialmente para vir me ver, nos divertimos muito naqueles dias, ele estava
especialmente alegre e parecia muito feliz. Na semana seguinte, já de volta a
São Paulo, recebi um telefonema da sua mulher contando-me que ele havia
falecido, sofreu uma parada cardíaca fulminante enquanto estava atendendo um
paciente no hospital local.
Era, enfim, uma experiência maravilhosa e eu me
sentia fascinado por tudo aquilo que estava vendo e vivenciando, não somente
pelo conhecimento médico adquirido, mas principalmente pelo enriquecimento
global como ser humano, sob todos os aspectos que se queira considerar. Além de
tudo isso, a oportunidade de poder exercer ativamente a minha profissão,
naquele momento específico da carreira, em circunstâncias absolutamente ímpares
até então, representava algo de extraordinária importância pelo próprio desafio
que encerrava. Participar como protagonista e não como mero espectador dessa
nova situação significava vencer uma série de barreiras, e, dentre elas, a
primeira e a mais crucial, a adaptação. Tratava-se de um hospital estranho, em
uma nação que não era a minha, aonde se falava um idioma diferente do nosso,
(ainda que quase todo brasileiro acredite que saiba falar espanhol, eu
incluído, o que isto vale, em parte, para os lugares turísticos porque os
nativos estão treinados no nosso idioma e tem necessidade profissional de entender
e serem entendidos), e que precisava ser totalmente dominado porque era
requisito fundamental para tornar possível o relacionamento com colegas e
pacientes. Enfim, tudo era novidade na minha existência, a primeira experiência
de vida no exterior como cidadão radicado em um país estrangeiro (como turista
já havia viajado anteriormente pela América do Sul, Estados Unidos e Europa), e
como médico, o que em determinados momentos me deixava profundamente inseguro,
para não dizer desesperado, tudo podia ser um grande fracasso pessoal e
profissional, mas ao mesmo tempo este desafio extremo era altamente excitante.
Com efeito, na prática todas estas dificuldades foram sentidas logo no início
das minhas atividades como está registrado no meu diário, três semanas após
haver começado a especialização: “devo dizer que fui muito bem recebido, sou
muito bem tratado, sinto-me quase que à vontade, mas é claro que o problema da
língua atrapalha um bocado, não tanto para compreender, muito embora de algumas
pessoas, especialmente de outro especializando que vem de La Plata, consigo
entender muito pouco do que falam. Mas, sem dúvida a dificuldade maior é para
me fazer comunicar, posto que eles não conseguem entender qualquer palavra que
não seja em espanhol, e isto me deixa muito angustiado, sinto-me como um
verdadeiro débil mental, enquanto eu falo as pessoas me olham como se eu fosse
de outro planeta. Espero que logo mais isto deixe de ser um problema... pelo
menos assim espero”. E, de fato, com muito esforço diário para
suplantar estas dificuldades, algum tempo depois deixou de ser um problema, o
que indiscutivelmente contribuiu de forma decisiva para um ótimo relacionamento
pessoal com colegas e pacientes, bem como para aquilo que eu havia me proposto
realizar.
Em pouco tempo mais já estava familiarizado com
todos aqueles procedimentos da especialidade, teoricamente a razão primordial
da minha viagem, mas que na prática resultou em parcela significativa, mas
longe de ser a única, pois a experiência de vida que se incorpora nestas
circunstâncias tão especiais é incalculavelmente maior. Para demonstrar meu
domínio com os procedimentos da especialidade assim ficou registrado em meu
diário, em 14 de maio, após três meses e quinze dias de trabalho: “agora
já estou totalmente adaptado, tanto na parte médica quanto na comunicação,
felizmente superei este obstáculo que muito me preocupava; tenho a
responsabilidade direta sobre quatro leitos, os quais me ocupam uma parcela
significativa do tempo pela gravidade dos casos e em relação às minhas
atividades com os usos das sondas de intubação intestinal e as biópsias de
intestino delgado sinto-me completamente à vontade e não tenho tido quaisquer
problemas mais. Tenho realizado também algumas retosigmoidoscopias (vale
salientar que naquela época não existiam ainda os endoscópios flexíveis
específicos para uso em crianças) e participado ativamente, também, em muitos
exames radiológicos, bem como, tomado muita radiação. Na parte clínica tenho
visto muitas novidades, tanto doenças até então totalmente desconhecidas,
quanto outras já conhecidas, mas cuja conduta aqui é bastante diferente daquilo
que estava acostumado a ver aí em São Paulo, e a mortalidade destes pacientes é
praticamente nula. Fazer o ambulatório com Dr. Toccalino tem sido uma
fantástica experiência, ele atende os pacientes, eu me sento ao seu lado e fico
observando tudo àquilo que ele faz; no fim da jornada repassamos todos os
pacientes atendidos e discutimos cada caso individualmente, o diagnóstico e a
conduta a ser tomada. Estamos construindo um
relacionamento extremamente amistoso, ele tem sido muito
paciente com minhas dificuldades com o idioma e a rotina do serviço, o que me
deixa cada dia mais à vontade e mais seguro de que estou no caminho certo com a
escolha que fiz. Vi também o primeiro caso de Doença Celíaca, esta enfermidade
tão misteriosa para mim até então (Figuras 14-15).
Figura 14- A primeira paciente com Doença Celíaca
que eu vi, cuidada pela Dra. Mirta Ciocca.
Figura 15- A mesma paciente vista de perfil para
melhor evidenciar o importante agravo nutricional, desnutrição intensa devido à
síndrome de má absorção provocada pela Doença Celíaca.
Tenho a mais absoluta certeza de que muitos
desnutridos que vemos em São Paulo, e que são considerados casos de desnutrição
por problemas socioeconômicos, na verdade são portadores de Doença Celíaca.
Quando voltar a São Paulo irei investigar estes pacientes obsessivamente, e
estou seguro que irei encontrar esta enfermidade no Brasil (o que na verdade
ocorreu assim que retornei a São Paulo, e a partir deste primeiro caso,
inúmeros outros passaram a ser diagnosticados). O que está me angustiando agora
é a quantidade de coisas que a especialidade apresenta e o desejo de estudar
tudo ao mesmo tempo, o que é claro, não é possível. Não sei o que fazer!
Ultimamente (3 semanas para cá) não tenho estudado muito, ou pelo menos com a
mesma continuidade que o vinha fazendo anteriormente, devido as minhas
obrigações de cuidar dos meus leitos (pacientes internados) e dos meus dois
trabalhos de investigação clínica.”