5- A Residência Médica e a inédita
experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a
especialização em Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria, em Buenos Aires
5.1-
As motivações, os preâmbulos e as
tratativas para a viagem de especialização
Corria o ano de 1970, eu estava cursando o último
ano de Medicina (naquela época já era denominado internato), na Escola Paulista
de Medicina (EPM). Havia muito tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha
uma meta obsessiva que era fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo,
posto que tinha absoluta consciência de que não me sentiria seguro em exercer a
profissão sem ter passado por esta extraordinária vivência de treinamento em
serviço. A instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio,
representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a
perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os
programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que tornava
o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas disponíveis
para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental importância
aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de internato para
obter tão almejado êxito. Naquele tempo, tudo o que meu pensamento alcançava,
até então, em termos futuros, era tornar-me um médico competente e,
concomitantemente, se possível seguir a carreira acadêmica e vir a ser um
professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico prestei
o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui
aprovado, e assim, consequentemente, um novo horizonte surgia na minha vida
profissional. Configurava-se para os três anos seguintes, a perspectiva de
concretizar o ambicionado desejo e, também, passaria a me preparar para os futuros
desafios que viriam a ser enfrentados.
Mas, antes de seguir o relato das atividades com o
decorrer da Residência Médica, torna-se importante voltar um pouco no tempo
para que se possa melhor entender os acontecimentos que o futuro me reservaria.
Durante o internato, quando eu estava fazendo o estágio na Pediatria, por
coincidência, concomitantemente como parte dos eventos comemorativos dos 50
anos de fundação da Associação Paulista de Medicina, foi organizado um curso de
atualização em várias especialidades médicas, inclusive em Pediatria. Convidado
pelo preceptor do internato e residência naquela época, professor Jamal Wehba,
fui assistir às aulas que eram ministradas por três professores convidados do
exterior. Dois deles eram professores seniores, Svoboda, alemão, especialista
em ortopedia e o outro Fred Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas
magistrais. Mas quem mais me chamou a atenção foi um jovem professor argentino,
Horácio Nestor Toccalino, gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas
extremamente práticos condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles
tempos. Abordava, sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarreia aguda e diarreia
crônica, demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos
tão frequentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de
morbidade e mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes
às famílias socioeconomicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou
também uma enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida
a Doença Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que
aprendi naqueles dias e, sem qualquer sombra de dúvida, foi a partir desta
fantástica experiência que começou minha inclinação pela Gastroenterologia e
Nutrição em Pediatria, a qual se tornou irreversível.
Os dois primeiros anos da Residência Médica
reforçaram a ideia da necessidade imperiosa de escolher uma super-especialidade
dentro da Pediatria, porém sem jamais negar a formação generalista. Naquela
época eram raras as especialidades pediátricas reconhecidas, tais como,
neonatologia, neurologia, cirurgia pediátrica, genética para citar as mais
consolidadas, enquanto que as potenciais outras futuras especialidades
encontravam-se em estágio ainda muito incipiente de implantação. O Pediatra
tinha uma formação de generalista e quando necessitava a opinião de um
especialista era chamado um clínico de adultos, o que não trazia na prática, na
maioria das vezes, grande contribuição para a solução dos problemas. Esta
situação associada ao fato de que eu não conseguia dominar com segurança todas
as diversas patologias que tinha que enfrentar no dia a dia me gerava grande
angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um pouco de tudo, mas apenas na
superficialidade, o que me deixava profundamente frustrado, queria conhecer as
patologias mais profundamente, queria entender as causas dos processos, não
apenas as consequências, ou seja, simplesmente as manifestações clínicas
(sinais e sintomas). Além disso, as principais causas de internação nas nossas
enfermarias eram devidas a Diarreia aguda e Diarreia crônica as quais
inevitavelmente vinham associadas à Desnutrição, e, acarretavam altíssimas
taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era frequente
deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários pacientes com
diarreia e ao voltar na manhã seguinte encontrava estes mesmos leitos vazios
porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela situação me
deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução para estes
problemas tão frequentes e tão graves, era preciso conhecer mais a fundo os
mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente agressor e
o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental enveredar
para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que vinha cercada
de conflitos, posto que as resistências contra a especialização no campo da
Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e justificado
orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do médico
generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam, pois, a
perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da época
provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo que
havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu grande
sonho era encaminhar-me para a vida universitária, com o objetivo de
enveredar-me na pesquisa, produzir e difundir conhecimentos em benefício da
sociedade e dos futuros discípulos. Entretanto, para ter êxito neste desejo era
imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma
determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa
mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico. Este foi o desafio que
lancei para mim, e, ao longo dos anos, foi o que tratei incessantemente de
perseguir.
5.2- O Grupo de Estudo
No início do segundo ano da Residência, como consequência
de todas as angústias e frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente
observados no manejo dos pacientes portadores de diarreia e desnutrição,
resolvemos constituir um grupo de estudo. Era pequeno, mas muito aplicado e
eficiente, composto pelo nosso preceptor Prof. Jamal e, por um grande amigo,
cuja amizade foi sendo construída desde o primeiro ano do curso médico, agora
colega na Residência, Dr. Fernando Fernandes. Tinha basicamente o objetivo de
aprimorarmos nos novos conhecimentos que se avolumavam na literatura a respeito
deste terrível binômio Diarreia-Desnutrição. Passamos, então, a nos reunir
semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal para ler e discutir
criticamente os artigos mais recentemente publicados na literatura médica sobre
os principais aspectos relacionados com a fisiologia dos processos
digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que envolviam a interação
dos diferentes agentes enteropatogênicos com o hospedeiro, e suas consequentes
intolerâncias alimentares. À medida que avançávamos em nossos estudos mais e
mais nos conscientizávamos do quanto ignorávamos sobre o tema; isto, no
entanto, não nos abalou negativamente, ao contrário, serviu sempre de estímulo
desafiador para que nos mantivéssemos em permanentes encontros de estudo.
Entrávamos, assim, no mundo recentemente descrito das intolerâncias aos
carboidratos da dieta, em especial da lactose, fatores perpetuadores da diarreia
e agravantes da desnutrição. Começava a surgir uma nova luz na perspectiva de
oferecermos uma melhor conduta nutricional aos nossos pacientes, porém, ainda
eram apenas conhecimentos teóricos, faltava-nos uma experiência prática para
podermos ter mais segurança nas nossas propostas diagnósticas, de investigações
laboratoriais, e terapêuticas (Figura 1).
Figura 1- Este paciente sofria de diarreia
persistente e intolerância à lactose e recebeu alta curado do Hospital São
Paulo; foi um dos primeiros, dentre inúmeros que viriam a seguir, a se
beneficiar dos novos conhecimentos adquiridos do grupo de estudo a respeito das
intolerâncias alimentares tão pouco conhecidas à época (1972). A foto abaixo juntamente com seu pai.
Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a ideia de buscar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.
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