Deficiência secundária de Lactase: é a deficiência de Lactase que resulta
de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como na diarreia aguda, diarreia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas
de agressões à mucosa do intestino delgado. Pode estar presente em qualquer
idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.
Esta deficiência implica em uma
subjacente condição fisiopatológica responsável pela subsequente
deficiência de Lactase e que pode até mesmo acarretar má absorção e/ou
intolerância à Lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se com maior
frequência a diarreia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente
enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado,
levando à perda da atividade da Lactase normalmente existente nas
microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem os enterócitos lesionados são, muitas vezes, ainda deficientes de Lactase, o que pode, desta forma, induzir à má absorção de Lactose. Giardíase,
criptosporidíase, e outros parasitas que infectam o intestino delgado proximal
freqüentemente levam à má absorção de Lactose devido uma lesão direta ao
enterócito provocada pelo parasita.
Rotavirus é o principal agente viral
causador de diarreia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar
lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros
estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças que sofrem de diarreia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de
desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais
de Lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes
casos a utilização de fórmula contendo Lactose não irá interferir de forma
negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da
doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou
seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a
intolerância à Lactose poderá estar presente e ser um fator importante na
perpetuação da diarreia (Figura 1).
Figura 1- Ultramicrofotografia do Rotavirus.
Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.
Nas comunidades desprovidas dos
benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de
promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais
pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular,
as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou
enteroagregativa em cultura de células HeLa são altamente agressivas sobre a
mucosa do intestino delgado (Figura 2).
Figura 2- Incubação de Escherichia
coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria
com aspecto característico de adesão localizada.
Estes agentes afetam principalmente
lactentes durante os primeiros anos de vida e devido a sua ação fisiopatológica
provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente
associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia coli enteropatogênicas
clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as
típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das
microvilosidades dos enterócitos (Figuras 3-4-5&6).
Figura 3- Material de biópsia de
intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente
portador de diarreia persistente por infecção com Escherichia coli
O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com
intensa destruição dos enterócitos.
Figura 4- Material de biópsia de
intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente
portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia
coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a
superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das
microvilosidades.
Figura 5- Ultramicrofotografia do
enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111;
observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no
interior do enterócito.
Figura 6- Ultramicrofotografia do
enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia
coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do
enterócito e a completa destruição das microvilosidades.
Intolerância à Lactose e mesmo aos
monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos
(em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarreia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 7 & 8).
Figura 7- Paciente portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111
acarretando intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar
múltipla, tendo necessidade de receber nutrição parenteral total.
Figura 8- O mesmo paciente da figura 8
já em recuperação clínica com capacidade de tolerar fórmula isenta de Lactose,
posto que ainda se encontrava intolerante à Lactose.
Crianças portadoras de Enteropatia
Ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à Lactose.
Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em
virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora
colônica, em especial as anaeróbias como os Bacteroides e Veilonella,
quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos
fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do
sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos
sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformando-os em
sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são
altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 9-10-11-12-13&14).
Figura 9- Visão parcial da favela
cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de saneamento básico e, portanto,
fator fundamental para o surgimento da Enteropatia Ambiental com
sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Observar as crianças
brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu aberto.
Figura 10- Morfologia do intestino
delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.
Figura 11- Representação esquemática da
desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.
Figura 12- Representação esquemática da
lesão do intestino delgado e deficiência de Lactase devido ao sobrecrescimento
bacteriano.
Figura 13- Material de biópsia de
jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa
atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina
própria.
Figura 14- Ultramicrofotografia do
intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando
importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em
número e altura.
Lactentes jovens
com desnutrição grave desenvolvem atrofia das vilosidades da mucosa intestinal
o que também implica em deficiência secundária da Lactase. Por esta razão, a
Organização Mundial de Saúde recomenda evitar leite contendo Lactose em
crianças com diarreia persistente (duração superior a 14 dias).
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