sexta-feira, 11 de abril de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (5)

Deficiência secundária de Lactase: é a deficiência de Lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como na diarreia aguda, diarreia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado. Pode estar presente em qualquer idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.

Esta deficiência implica em uma subjacente condição fisiopatológica responsável pela subsequente deficiência de Lactase e que pode até mesmo acarretar má absorção e/ou intolerância à Lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se com maior frequência a diarreia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado, levando à perda da atividade da Lactase normalmente existente nas microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem os enterócitos lesionados são, muitas vezes, ainda deficientes de Lactase, o que pode, desta forma, induzir à má absorção de Lactose. Giardíase, criptosporidíase, e outros parasitas que infectam o intestino delgado proximal freqüentemente levam à má absorção de Lactose devido uma lesão direta ao enterócito provocada pelo parasita.

Rotavirus é o principal agente viral causador de diarreia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças que sofrem de diarreia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais de Lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo Lactose não irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a intolerância à Lactose poderá estar presente e ser um fator importante na perpetuação da diarreia (Figura 1).



Figura 1- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.


Nas comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou enteroagregativa em cultura de células HeLa são altamente agressivas sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 2).

 

Figura 2- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.


Estes agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e devido a sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia coli enteropatogênicas clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das microvilosidades dos enterócitos (Figuras 3-4-5&6).
 

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarreia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.

 

 Figura 4- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.

 
  
Figura 5- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.
  
 

 Figura 6- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.


Intolerância à Lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarreia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 7 & 8).
  
 

Figura 7- Paciente portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 acarretando intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar múltipla, tendo necessidade de receber nutrição parenteral total.


 

 Figura 8- O mesmo paciente da figura 8 já em recuperação clínica com capacidade de tolerar fórmula isenta de Lactose, posto que ainda se encontrava intolerante à Lactose.


Crianças portadoras de Enteropatia Ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à Lactose. Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como os Bacteroides e Veilonella, quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformando-os em sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 9-10-11-12-13&14).

 
  
Figura 9- Visão parcial da favela cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de saneamento básico e, portanto, fator fundamental para o surgimento da Enteropatia Ambiental com sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Observar as crianças brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu aberto.

 
 Figura 10- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.





Figura 11- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.

 
   
Figura 12- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de Lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.


 

Figura 13- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.
  

 
  
Figura 14- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em número e altura.


Lactentes jovens com desnutrição grave desenvolvem atrofia das vilosidades da mucosa intestinal o que também implica em deficiência secundária da Lactase. Por esta razão, a Organização Mundial de Saúde recomenda evitar leite contendo Lactose em crianças com diarreia persistente (duração superior a 14 dias).

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