sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (4)

Fisiopatologia

A patogênese da EE está diretamente relacionada com atopia, como tem sido descrito em pesquisas de co-ocorrência de doença, em estudos com modelos animais, e também a partir dos relatos de sucesso terapêutico quando são evitados determinados alergenos (controle dietético primário). A maioria dos pacientes revela nítidas evidências de hipersensibilidade a certos alimentos e alergenos aéreos, bem como, uma história concomitante de alergias respiratórias (Figura 1).
Figura 1- Fisiopatologia da EE: desenho esquemático de como os alergenos da dieta e do meio ambiente, por inalação, provocam as alterações esofágicas (Gastroenterology 2009;137:1238-49).

Ao contrário da anafilaxia alimentar, a qual ocorre em cerca de 15% dos pacientes portadores de EE, a sensibilização pelo pólen para uma grande série de alimentos (baseada no exame da pele pelo prick test) pode ser caracterizada na maioria dos pacientes. O papel central da sensibilização por antígenos alimentares tem sido demonstrado pelo êxito resultante da redução das exposições a antígenos alimentares específicos definidos pelos testes prick e patch, ou mesmo pela introdução de uma fórmula à base de mistura de amino-ácidos. Para confirmar estas premissas Kagalwalla e cols., em 2006, (Clin Gastroenterol Hepatol 4;1097-1102) realizaram um estudo retrospectivo observacional de curta duração para avaliar as respostas clínicas e histológicas em 60 crianças portadoras de EE analisadas durante 6 semanas, as quais foram divididas em 2 grupos de acordo com a intervenção dietética: 1- 35 delas recebeu tratamento dietético com a eliminação de 6 tipos de alimentos, a saber: proteína do leite de vaca, soja, trigo, ovos, amendoim e frutos do mar; 2- as outras 25 crianças receberam tratamento dietético utilizando fórmula à base de mistura de aminoácidos. Após o período de avaliação dietética novas biópsias de esôfago foram realizadas. Os resultados das intervenções dietéticas mostraram que 26 (74%) das crianças do Grupo 1 e 22 (88%) das crianças do Grupo 2 alcançaram uma significativa redução da inflamação esofágica em média com menos de 10 eos/cma. No momento pré-tratamento e pós-tratamento as contagens de eosinófilos esofágicos foram de 80,2 e 13,6 para o Grupo 1, e 58,8 e 3,7 para o Grupo 2, respectivamente. Estes rsultados mostraram-se altamente significativos.
Figura 2- Efeito do tratamento no grupo de pacientes que recebeu restrição dietética de 6 alimentos: notar a diminuição do número de eosinófilos na mucosa esofágica.


Figura 3- Efeito do tratamento dietético no grupo de pacientes que recebeu fórmula à base de mistura de aminoácidos: notar a diminuição dos eosinófilos na mucosa esofágica pós-tratamento.

Os autores concluem que o tratamento com a dieta de exclusão e o emprego da fórmula à base de aminoácidos foram eficazes para a regressão dos sintomas e das lesões histológicas, sendo que a dieta de exclusão teve a vantagem de proporcionar maior aderência ao tratamento pela melhor palatabilidade dos alimentos.

Tem sido notória a observação de que pacientes portadores de rinite alérgica apresentam elevações sazonais dos eosinófilos esofágicos, e, além disso, tem também sido demonstrado que pacientes portadores de EE apresentam variações sazonais dos sintomas. Estes fatos reforçam as evidências clínicas que dão suporte à idéia de que os alergenos aéreos são responsáveis por provocar uma resposta eosinofílica no esôfago. Por exemplo, em modelo animal, utilizando camundongos, o emprego de repetidas exposições intra-nasais do alergeno aéreo Aspergillus fumigatus induz simultaneamente eosinofilia das vias respiratórias e inflamação esofágica, sem que haja concomitantemente eosinofilia no trato digestivo inferior.

No nosso próximo encontro continuarei a abordar os principais aspectos desta intrigante enfermidade.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (3)

Manifestações Clínicas
EE
possui inúmeras diferentes formas de apresentação, a saber: os pacientes comumente têm dificuldade para se alimentar, “failure to thrive”, vômitos, dor epigástrica ou torácica, disfagia e impactação do alimento. Recusa alimentar ou intolerância aos alimentos é um sintoma comum da EE, em especial entre os lactentes, os quais, devido à tenra idade, não são capazes de relatar os sintomas. As crianças maiores freqüentemente apresentam sintomas similares à DRGE, que incluem regurgitação e queimação retro-esternal, muito embora as estimativas variem consideravelmente entre os relatos disponíveis na literatura, de 5 a 82%. Vômitos (8 a 100%) e dor abdominal (5 a 68%) também têm sido relatados, bem como disfagia (16 a 100%) e impactação dos alimentos (10 a 50%). Todos estes sintomas tendem a se agravar com o avançar da idade.
História Natural
EE apresenta a nítida tendência de ser uma enfermidade crônica cujos sintomas são persistentes ou recidivantes. Estes sintomas costumam ocorrer em ordem progressiva, desde a infância até a vida adulta. Os adultos tipicamente sofrem de disfagia recorrente e impactação dos alimentos, as quais são refratárias ao tratamento com drogas anti-refluxo; na verdade, estudos recentes indicam que de 10 a 50% dos pacientes adultos do sexo masculino que apresentam este tipo de sintomatologia sofrem de EE. Embora uma estenose em local bem definido do esôfago possa ser responsável pela disfagia e pela impactação da comida observadas em alguns pacientes com EE, há evidencias de que o esôfago demonstra um defeito da função do músculo liso, à semelhança de uma falta de sincronismo de contração entre a camada muscular circular e a longitudinal durante a deglutição, a qual discutirei com maior riqueza de detalhes em outra oportunidade.

Liacouras e cols. (Clin. Gastroenterol Hepatol 2005;3:11961206) foram responsáveis por descrever o maior estudo longitudinal abrangendo 381 crianças com EE (66% meninos, idade média 9 anos). A grande maioria deles apresentava sintomas da DRGE refratária ao tratamento de supressão ácida ou disfagia. A radiologia contrastada do trato digestivo superior demonstrou estreitamento esofágico em 6% das crianças. A endoscopia evidenciou a presença de anéis (Figura 1) em 12%, e 1 paciente requereu o emprego de dilatação esofágica.

Figura 1- Achados endoscópicos associados a EE: na foto à esquerda nota-se a formação de anéis circulares na mucosa esofágica dando idéia de contrações transitórias ou de estruturas fixas. Este tipo de aparência é também denominada traqueização do esôfago; na foto à direita podem ser observados exudatos esbranquiçados sobre a mucosa esofágica. Estes achados representam pústulas eosinofílicas que emergem através do epitélio esofágico.

Em um subgrupo de pacientes, tratamento clínico com corticosteróides sistêmicos induziu remissão clínico-patológica em todos os pacientes exceto em 1 deles. Tratamento tópico com fluticasone foi utilizado com sucesso em 52% dos pacientes, porém 2 deles desenvolveram candidíase. Após a suspensão do tratamento clínico, porém, a maioria dos pacientes apresentou recidiva dos sintomas e eosinofilia esofágica (Figura 2).

Figura 2- Micro-abscesso eosinofílico visualizado em campo de menor aumento recobrindo a superfície epitelial do esôfago.

Tratamento dietético na forma de restrições alimentares específicas ou emprego de fórmula à base de mistura de aminoácidos mostrou-se altamente eficaz para a indução e manutenção da remissão dos sintomas (97,6% mostraram resposta clínico-patológica positiva). O estudo radiológico contrastado do esôfago normalizou-se em 21 dos 22 pacientes que apresentavam estenose esofágica.
É importante ressaltar que a EE não parece ser um fator causal que limita a expectativa de vida dos pacientes. Metaplasia esofágica, potencial causa de adenocarcinoma esofágico, nunca foi, até o presente momento, relatada em pacientes portadores de EE, mesmo em adultos que sofrem de doença grave. EE não é uma enfermidade caracterizada por ulceração ou destruição da mucosa. Portanto, tudo indica que a base do processo patológico da EE difere daquela da DRGE, e que, o adenocarcinoma ou o câncer escamoso do esôfago não fazem parte do espectro da EE.

No nosso próximo encontro seguirei discutindo outros tópicos de interesse desta enfermidade.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (2)

História

O primeiro caso de EE foi descrito por Dobbins e cols. (Gastroenterology 1977;72:1312-16), em 1977, em um paciente adulto que referia sofrer de disfagia e apresentava inflamação eosinofílica do epitélio esofágico mas não exibia sintomas compatíveis com DRGE. Ao longo dos anos de 1980 passaram a ser descritos vários casos de eosinofilia epitelial esofágica em espécimes de biópsia em pacientes portadores de DRGE. No entanto, foram Leape e cols. (J Pediatr Surg 1981;16:379-84) e Hyams e cols. (JPGN 1988;7:52-6) que reconheceram que um grupo de pacientes que apresentava eosinofilia intra-epitelial esofágica não respondia com sucesso ao tratamento clínico para a DRGE. Um aspecto peculiar destes pacientes referia-se à presença de um denso infiltrado eosinofílico (>20 eos/cma) na mucosa esofágica. No entanto, desde o final dos anos 1980 até meados dos anos 1990, a maioria dos patologistas entendia que a existência do infiltrado eosinofílico era um sinal patognomônico da DRGE. Mas, em contrapartida, nesta mesma época, alguns investigadores já começavam a sugerir que a etiologia desta intensa eosinofilia esofágica apresentada por alguns pacientes não devia ser atribuída à DRGE. Por exemplo, Lee (Am J Surg Pathol 1985;9:475-79) relatou uma série de crianças e adultos em cujas biópsias esofágicas havia uma “intensa eosinofilia”, que por ele foi definida como >10 eos/cma. Especialmente, chamou sua atenção uma menina de 15 anos que sofria de asma e queixava-se de dor abdominal com eosinofilia periférica e que Lee classificou ser um caso exemplar de “esofagite eosinofílica idiopática”.
Attwood e cols. (Dig Dis Sci 1993;38:109-16) estudaram 11 pacientes adultos com disfagia, monitoração normal do pH esofágico e densa eosinofilia esofágica (>20 eos/cma). Sete destes pacientes sofriam de alergia alimentar e todos eles necessitaram ser submetidos a medidas terapêuticas agressivas tais como dilatação esofágica e/ou emprego de corticóide para que os sintomas cedessem. Importante enfatizar que um grupo controle de pacientes com DRGE apresentava em média 3,3 eos/cma na mucosa esofágica, o que levou os autores a questionar a, até então, atribuição automática da eosinofilia esofágica à DRGE.

Kelly e cols. (Gastroenterology 1995;109:1503-12), em um primoroso estudo descreveram 10 crianças que apresentavam sintomas similares à DRGE com intensa eosinofilia esofágica a despeito de terem recebido tratamento anti-refluxo. Inclusive, 2 destes pacientes haviam sido submetidos à cirurgia de fundo-plicatura. Todos os pacientes foram tratados com fórmula à base de mistura de amino-ácidos e responderam de forma muito satisfatória, sugerindo, portanto, uma etiologia alérgica para esta enfermidade. Mais ainda, durante os anos 1990 vários trabalhos foram publicados descrevendo crianças que apresentavam densa eosinofilia esofágica (>15-20 eos/cma) e que evidenciavam resposta clinico-patológica favoráveis a restrições dietéticas com o emprego de fórmulas à base de mistura de amino-ácidos, corticóides por via oral ou tópica. Finalmente, Steiner e cols. (AM J Gastroenterol 2004;99:801-5) demonstraram uma relação inversamente proporcional entre a contagem de eosinófilos intra-epiteliais e índice de refluxo, ou seja, 1-5 eos/cma correlacionava-se com índice de refluxo elevado.
Assim sendo, ao longo destes últimos 30 anos todos estes estudos foram pouco a pouco demonstrando que pacientes que apresentavam sintomas da DRGE que não respondiam satisfatoriamente à medicação anti-refluxo e que concomitantemente apresentavam denso infiltrado eosinofílico na mucosa esofágica, na verdade não eram portadores da DRGE, mas sim sofriam de outra enfermidade que em alguns casos estava relacionada com algum tipo de alergia e que passou a ser denominada EE.
No nosso próximo encontro continuarei a descrever os aspectos mais importantes desta enfermidade que se torna cada vez mais prevalente em todo o universo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Esofagite Eosinofílica: uma entidade clínica recentemente reconhecida em evidente expansão mundial (1)

Introdução

Esofagite Eosinofílica (EE) é uma afecção clínico-patológica caracterizada por densa eosinofilia esofágica associada à intensa hiperplasia do epitélio escamoso, e que geralmente, vem acompanhada de sintomas gastrointestinais, primariamente esofágicos. Na EE as mucosas gástricas e duodenais estão preservadas e as anormalidades esofágicas não respondem ao tratamento com altas doses dos fármacos inibidores da bomba de próton. Trata-se de uma enfermidade cujo reconhecimento, nesta última década, vem aumentando de forma significativa em todos os continentes, com exceção apenas da África. Por exemplo, Spergel e cols. (JPGN 48:30-6;2008), em seu artigo sobre os 14 anos de experiência clínica, baseados em estudos realizados nos Estados Unidos, Suiça e Austrália, relatam que a EE está se tornando cada vez mais prevalente. No Children’s Hospital of Philadelphia verificou-se um aumento de 35 vezes desde os 2 primeiros casos vistos em 1994 para 72 atendidos em 2003. Outros estudos têm demonstrado uma predominância do sexo masculino, a maioria dos pacientes refere atopias, alcançando até 70% dos casos dependendo das localizações geográficas dos relatos.

Definir EE não é uma tarefa fácil porque sua sintomatologia clínica pode se sobrepor à da Doença do Refluxo Gastro-Esofágico (DRGE). Entretanto, embora a DRGE possa coexistir com a EE, os sintomas e os aspectos patológicos intrínsecos da EE não respondem ao tratamento baseado na supressão ácida gástrica. Muito embora freqüentemente ocorra hiperplasia das células basais da mucosa esofágica na EE, o que também pode se dar na DRGE, o principal aspecto de diferenciação histológica na EE é a intensa eosinofilia da mucosa esofágica, inclusive a usual formação de micro-abscessos eosinofílicos. Por outro lado, é também sabido que a eosinofilia esofágica pode ser encontrada em outras enfermidades, tais como, Doença de Crohn, enfermidade vascular do colágeno, esofagite infecciosa (herpes, Candida), esofagite associada a medicamentos, síndrome hiper-eosinofílica, escleroderma, lesões cáusticas, imunosupressão (especialmente seguida a transplante de órgão sólido) e gastroenteropatia eosinofílica. EE também pode estar associada a outras enfermidades, em especial com Doença Celíaca. Portanto, foi necessária a organização de um grande encontro científico que reuniu os mais internacionalmente reconhecidos pesquisadores a respeito desta entidade clínica para elaborar um documento que ademais de definir EE, concomitantemente também estabelecesse critérios para excluir o diagnóstico das supracitadas enfermidades em relação à própria EE. Estas propostas foram levadas a cabo no First International Gastrointestinal Eosinophil Research Symposium, ocorrido em Orlando, Flórida, em outubro de 2006 e as conclusões deste evento científico estão publicadas em artigo assinado por Glenn T. Furuta e cols. na revista Gastroenterology 2007:133:1342-63.
Desta forma, EE foi definida como uma afecção clínico-patológica primária do esôfago caracterizada por sintomas esofágicos e do trato gastrointestinal superior associada a espécimes de biópsia da mucosa esofágica contendo >15 eosinófilos intra-epiteliais(eos)/campo de maior aumento (cma) em 1 ou mais espécimes de biópsia, na ausência de DRGE que se fez descartar por estudo de pHmetria, o qual tenha se revelado normal no esôfago distal, ou a falta de resposta clínica a altas doses de medicamentos inibidores da bomba de próton (Figura 1).


Figura 1- Inflamação eosinofílica esofagiana, coloração Hematoxilina-Eosina: A- epitélio esofágico evidenciando aumento do número de eosinófilos e hiperplasia da zona basal com alongamento das papilas em campo de menor aumento; B- visão de campo de grande aumento mostrando grande número de eosinófilos infiltrando o epitélio em especial na sua porção mais superficial.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir os mais variados aspectos desta tão intrigante enfermidade.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor (6)

Um trabalho de pesquisa realizado no Brasil e de repercussão internacional

Conforme eu havia mencionado em nosso último encontro o presente texto refere-se a um estudo sobre aleitamento natural realizado por um grupo de consolidada tradição em pesquisa em nosso país. Este trabalho foi elaborado pelo grupo do Departamento Materno-Infantil da Universidade Feral de Pelotas, Rio Grande do Sul, tendo sido publicado no Journal of Pediatrics 2009;155:505-9. Trata-se da revista pediátrica de maior prestígio internacional e que apresenta alto fator de impacto na literatura médica. O trabalho intitula-se “Bed Sharing at 3 Months and Breast-Feeding at 1 Year in Southern Brazil” e está assinado pelos seguintes autores: Iná S.Santos, Denise M. Mota, Alicia Matijasevich, Aluísio J.D. Barros & Fernando C.F. Barros, e versa, portanto, a respeito do compartilhamento da cama entre o lactente e sua respectiva mãe aos 3 meses e qual a associação deste comportamento com a amamentação aos 12 meses de idade.
Introdução

Muitos dos fatores que influenciam a forma como as mães alimentam seus filhos, assim como a duração do aleitamento natural são bem conhecidos, e dentre eles destaca-se a proximidade de ambos. Os métodos da mãe canguru para recém-nascidos de baixo peso e do alojamento conjunto para recém-nascidos adequados para a idade gestacional estão baseados nos efeitos benéficos oriundos da proximidade da relação mãe-filho e auxiliam no sucesso da amamentação.

Por outro lado, após a alta hospitalar os efeitos da proximidade mãe-filho com relação à prática do aleitamento natural também continuam sendo investigados. Semelhante ao alojamento conjunto, o compartilhamento da cama, aqui definido como mãe e filho dormindo à noite na mesma cama, tem sido demonstrado como fator positivo para o êxito da prática do aleitamento natural, porém as informações disponíveis na literatura a esse respeito ainda são muito escassas. Além disso, o compartilhamento da cama nos últimos anos tem sido pouco estimulado devido sua associação com o risco aumentado da Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL).

O objetivo do presente estudo foi investigar a associação entre o compartilhamento da cama aos 3 meses e a persistência da prática do aleitamento natural aos 12 meses de idade em uma coorte de crianças de Pelotas, em 2004.

Métodos

A coorte de Pelotas foi constituída por 99,2% de todas as crianças nascidas em 2004 e que vivem na área urbana da cidade, e também no bairro contíguo de Jardim América. Uma entrevista com cada mãe foi realizada no período peri-natal ainda quando estivesse internada no hospital por ocasião do nascimento do seu filho e novamente durante visita domiciliar aos 3 e 12 meses após o nascimento da criança.

Na entrevista dos 3 meses as mães responderam às seguintes perguntas: trabalho remunerado extra-domiciliar, dieta, aleitamento natural, cômodo da casa aonde a criança costumava dormir e informação sobre o hábito de compartilhar a cama com adultos ou outras crianças. Compartilhamento da cama foi definido como um comportamento habitual de compartilhar a cama com outra pessoa durante parte da noite ou durante toda a noite. A prática do aleitamento aos 3 meses foi definida como exclusivo, predominante (associado a água, chá ou sucos) ou parcial (associado a chá, sucos, água e outros alimentos líquidos ou semi-sólidos). Aos 12 meses a prática do aleitamento natural foi novamente avaliada por meio de uma entrevista pessoal à mãe.

Resultados

Esta coorte foi constituída por 4231 crianças nascidas vivas, em Pelotas, em 2004, representando 99,2% da população geral, tendo havido 0,8% de perdas ou recusa em participar da pesquisa. Na visita de seguimento aos 3 meses as mães de 3985 crianças foram entrevistadas (94,2% da amostra inicial; houve 181 perdas ou recusas e 65 mortes). Dentre estas crianças 2866 estavam recebendo aleitamento natural. Na visita de 12 meses houve 5,7% de perdas ou recusas e um total de 82 mortes, fazendo com que houvesse um total final de 3907 crianças. Considerando-se o total da coorte a prevalência da prática do aleitamento natural caiu de 71,9% aos 3 meses para 37,7% (n=1442) aos 12 meses de idade.

A Tabela 1 resume as características das mães e das crianças que recebiam aleitamento natural aos 3 meses e o percentual de crianças que estava recebendo aleitamento materno aos 12 meses de idade. A Tabela 1 revela a associação entre a prática do aleitamento natural aos 12 meses e as seguintes variáveis com relação às mães: nível sócio-econômico, escolaridade, paridade, cor da pele, tipo de parto e trabalho extra-domiciliar. A persistência da prática do aleitamento natural aos 12 meses mostrou-se ser mais freqüente entre as crianças cujas mães relataram que compartilhavam a cama aos 3 meses; aos 12 meses, 59,2% das crianças que compartilhavam a cama aos 3 meses ainda recebiam aleitamento materno comparada com 44% daquelas que não compartilhavam a cama (p<0>
Tabela 1- Características das mães e seus filhos.

A Figura 1 mostra a curva evolutiva da prática do aleitamento materno desde os 3 até os 12 meses de idade comparando as crianças que compartilhavam a cama aos 3 meses com aquelas que não compartilhavam a cama aos 3 meses de idade. Como se pode apreciar a Figura 1 mostra que a taxa de desmame até os 12 meses mostrou-se mais rápido naquelas crianças que não compartilhavam a cama aos 3 meses.

Figura 1- Curva evolutiva da frequência de aleitamento materno entre as crianças que compartilhavam a cama e as que não compartilhavam a cama.


Conclusões

Os autores afirmam que o compartilhamento da cama provê uma aproximação física e ao mesmo tempo facilita que a mãe esteja mais disponível às solicitações de se alimentar por parte do filho durante o período de sono, e também oferece conforto psicológico para a criança.

Os benefícios e os prejuízos para as crianças associados ao compartilhamento da cama tem sido objeto de inúmeras investigações, a maioria das quais desenhadas para identificar os potenciais fatores de risco para a ocorrência da SMSL. A interação entre o compartilhamento da cama e o hábito de fumar com a SMSL também tem sido explorada em várias pesquisas. Embora o compartilhamento da cama tenha sido desestimulado devido ao risco da SMS, alguns estudos têm demonstrado um risco aumentado apenas para as crianças cujas mães são fumantes. Estudos epidemiológicos tem demonstrado uma diminuição entre a associação da SMSL e o compartilhamento da cama, especialmente nos lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo até os 4 meses de idade. Até o presente momento, entretanto não há evidências científicas suficientemente conclusivas para afirmar que o compartilhamento da cama seja um fator de proteção contra a SMSL.

De qualquer forma até que se chegue a uma conclusão definitiva a respeito dos riscos e benefícios do compartilhamento da cama, os pais devem ser alertados para evitar as práticas inseguras durante o sono dos seus filhos. Estas incluem o hábito de fumar no ambiente aonde a criança convive, o compartilhamento de sofás fofos, o uso de álcool ou outra drogas que alterem o nível de consciência do adulto que compartilha a cama com a criança. Além disso, os pais também devem ser informados a respeito das boas práticas de segurança para o sono dos seus filhos, tais como, colocar a criança em posição supina (de barriga para cima), sobre uma superfície firme, evitando, portanto, sofás, travesseiros, almofadas etc.

Minha Opinião
Particularmente, eu sempre fui um ardoroso defensor do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, e devo afirmar que tenho obtido grande êxito em estimular as mães dos meus pacientes em amamentá-los. Entretanto, por inúmeras razões, inclusive algumas delas expostas neste mesmo trabalho, tal como o risco da morte súbita, bem como propiciar aos pais a privacidade necessária para a preservação de um relacionamento saudável, um período de merecido descanso à mãe que amamenta, por exemplo, não sou favorável à opinião de compartilhar a cama com o lactente. Está claro, porém, que esta não é uma posição radical e a decisão de compartilhar a cama ou não com o filho tem que ser definida pelo livre arbítrio dos pais. De qualquer forma este excelente trabalho científico traz à luz pontos para serem debatidos e meditados o que sem dúvida é uma das grandes riquezas da investigação científica quando realizada com metodologia adequada.

No nosso próximo encontro iniciarei a apresentação de um novo e altamente relevante tema da gastropediatria e nutrição.