terça-feira, 28 de julho de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (3)

Um relevante estudo epidemiológico a respeito da prevalência da Dor Abdominal em crianças de idade escolar
Recentemente, Saps e cols. (Journal of Pediatrics 2009; 154:322-6) publicaram um importante estudo prospectivo envolvendo crianças em idade escolar que apresentavam queixa de dor abdominal e outras manifestações somáticas freqüentes. Trata-se de uma das poucas investigações clínicas disponíveis na literatura médica, de natureza epidemiológica, que avaliou sintomas somáticos de um grande número de crianças a respeito de um problema frequentemente vivenciado não somente pelos profissionais da saúde como também pelos próprios pais das mesmas. Os autores demonstram de forma bastante convincente que sintomas somáticos, dentre eles cefaléia e dor abdominal, são altamente prevalentes em crianças em idade escolar.

Este trabalho de pesquisa teve o escopo de alcançar os seguintes objetivos: 1- estabelecer a prevalência da dor abdominal (DA) nestas crianças; 2- determinar os perfis psicológicos das crianças portadoras de DA; 3- determinar o impacto da DA sobre o absenteísmo escolar.
Desenho do Estudo
Os autores convidaram todos os alunos que cursavam o nível médio de 2 escolas públicas de Chicago para participar deste projeto de pesquisa de caráter prospectivo. Os objetivos do trabalho não foram revelados aos alunos para diminuir o risco de obterem informações não verdadeiras. Foi solicitado o consentimento escrito dos alunos e dos seus respectivos pais. Pesquisadores do grupo de trabalho realizavam visitas semanais para a aplicação de um questionário confidencial aos alunos a respeito da existência e da intensidade dos sintomas que pudessem ter ocorrido na semana anterior. Este questionário era composto de 8 perguntas que compunham um protocolo de investigação previamente validado para a faixa etária das crianças do presente estudo. Cinco perguntas estavam relacionadas com o trato gastrointestinal, a saber: DA, náusea, diarréia, constipação e vômitos. As outras três perguntas eram direcionadas para outras queixas somáticas freqüentes na infância: dores de cabeça, dores no tórax e dores nos membros. A intensidade das dores eram graduadas em uma escala de 0 a 4 pontos da seguinte forma: 0- ausência de dor; 1- pouca dor; 2- alguma dor; 3- muita dor e 4- dor intensa.
Como parte do projeto de pesquisa, durante o período que durou a investigação, também foram obtidas informações dos alunos e seus respectivos pais a respeito de faltas escolares, necessidades de consultas médicas e o número de dias que os pais tiveram que se ausentar do trabalho para cuidar das queixas dos seus filhos.

Resultados
Grupo de estudo
Um total de 237 de potenciais 495 (48%) crianças aceitou participar do estudo. As demais crianças não quiseram participar ou não responderam ao consentimento escrito para participar da investigação. O projeto de pesquisa teve a duração de 6 meses em uma das escolas e de 4 meses na outra.

Respostas completas dos questionários foram obtidas de 4606 sobre os 5175 (89%) possíveis. O grupo de estudo consistiu de 134 meninas e 103 meninos, com idade média de 11,8 anos, variando de 8 a 15 anos.

Sintomas, comportamento da dor e frente à dor
Aproximadamente 72% das crianças relataram pelo menos 1 sintoma somático por semana, e cerca de 45% dos participantes informaram sofrer pelo menos 1 sintoma gastrointestinal durante o período do estudo. DA foi o sintoma gastrointestinal mais freqüente, sendo que 90% das crianças referiram haver sofrido de DA pelo menos uma vez durante o tempo da investigação. A prevalência geral de DA por semana foi de 38%, sendo que a persistência da DA por mais de 4 semanas consecutivas foi relatada por 52% das crianças, acima de 8 semanas por 24%, e por mais de 12 semanas consecutivas em 18% das crianças.
A prevalência de outros sintomas gastrointestinais foi a seguinte: náusea 23%, diarréia 9%, constipação 8% e vômitos 7%.

Dor de cabeça foi a queixa somática mais freqüente e esteve presente semanalmente em 42% das crianças. A grande maioria das crianças (80%) relatava sua queixa para um adulto quando da ocorrência da dor, sendo que 56% queixavam-se exclusivamente para a mãe, 22% para a mãe ou o pai, e apenas 7% exclusivamente para o pai. De acordo com as crianças os pais respondiam às suas queixas de diversas maneiras, a saber: providenciavam medicação para atenuar a dor (44%), recomendavam que a criança fosse deitar (41%), que comesse ou bebesse algo (12%), fosse ao médico (8%), procurasse relaxar (4%), convivesse com a dor (4%), fizesse compressas quentes no local da dor (3%), tomasse um banho quente (3%) ou fosse ao banheiro (3%).

Houve uma associação diretamente proporcional de altas taxas de ansiedade, de depressão e de baixa qualidade de vida à medida que a DA tornava-se mais intensa.
As crianças que se queixavam mais frequentemente de DA apresentavam uma maior tendência a faltar às aulas; 28% das crianças faltaram às aulas pelo menos uma vez durante o período do estudo devido a um episódio de DA. Cerca de 4% das crianças faltaram às aulas uma vez por semana, e aquelas crianças que se queixavam de DA apresentaram uma tendência 4 vezes maior de faltar às aulas do que aquelas que não apresentavam esta queixa. O absenteísmo aumentou significativamente de forma diretamente proporcional com a intensidade da DA.

Apenas 4 crianças buscaram atenção médica durante o período do estudo devido a uma crise de DA e 10% dos pais faltaram ao trabalho para cuidar do seu filho devido a DA.

Conclusões
Ficou evidenciado que a DA é usualmente um problema que se torna crônico e que as crianças que já se queixavam de DA no início da investigação apresentaram uma nítida tendência a continuar com a mesma queixa durante todo o período do estudo. Houve também uma alta porcentagem de crianças que persistiram com a queixa de DA por um período de tempo superior a 8 semanas. Aliás, este é o período de tempo considerado mínimo necessário para que os pacientes sejam catalogados como portadores de uma síndrome funcional gastrointestinal definida pelos critérios de Roma III (Rasquin e cols., Gastroenterology 2006;130:1527-37). Foi também demonstrado que os sintomas somáticos, incluindo a DA, são comuns em crianças escolares e que esses sintomas estão associados com baixa qualidade de vida, outras afecções mórbidas psicológicas e somáticas, absenteísmo escolar e que muitas vezes levam seus pais a faltar ao trabalho.
Entendo que trabalhos de investigação clínica desta natureza constituem importantes contribuições científicas para uma melhor compreensão dos fenômenos psico-sócio-ambientais que estão presentes na deflagração das diversas SFG. Além disso, também servem de alerta para a comunidade pediátrica no sentido de se poder reconhecer sua real prevalência e seus impactos sobre a saúde das crianças.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFG): Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (2)

Influência Genética
Atualmente reconhece-se a existência de várias AFG, mas em todas elas permanece o mistério da sua fisiopatologia de base. Entretanto, alguns novos conhecimentos dão suporte a evidências de que a hipótese de haver uma interação entre fatores genéticos e a influência do meio ambiente desempenham um importante papel na patogênese destas afecções (Talley, JPGN 47:680,2008).

Tanto a Síndrome do Intestino Irritável (SII) como a Dispepsia Funcional (DF) estão presentes em nichos familiares. Por exemplo, Locke e cols. (Mayo Clinic Proc 75:907-12,2000) demonstraram que indivíduos portadores de SII e de DF apresentam um maior risco de que também seus descendentes diretos venham a apresentar esta mesma sintomatologia. Este achado não foi confirmado quando se tratava da esposa ou esposo, mesmo quando ajustes eram feitos para variáveis, tais como, sexo, idade e somatização.

De qualquer forma estudos de epidemiologia genética, rigorosamente bem elaborados e em larga escala, são necessários para identificar de forma cientificamente convincente a relevância exercida pelo papel funcional dos genes nas AFG.

Ecologia das AFG
A ecologia é uma ciência que estuda as interações dos organismos com seu meio ambiente e vice-versa. Dois importantes princípios da ecologia caracterizam a relação com o meio ambiente. Em primeiro lugar, todos os organismos vivos possuem uma inter-relação continua com outros elementos vivos e não-vivos que fazem parte do meio ambiente. Em segundo lugar, cada um destes ecosistemas e seus componentes estão conectados entre si e se afetam mutuamente (Saps, JPGN 47:684,2008). Há cerca de 60 anos a Organização Mundial da Saúde propôs uma nova dimensão no conceito de saúde ao incluir componentes físicos, psicológicos e sociais em sua definição. Baseando-se neste conceito holístico de saúde, o modelo biopsicosocial dá sustentação à relação e ao equilíbrio entre os sistemas biológicos, fisiológicos e psicológicos para determinar a suscetibilidade das AFG e explicam as variabilidades clínicas e as diferentes respostas aos tratamentos propostos. Este modelo pressupõe que a doença é o resultado da interação em múltiplos níveis dos subsistemas biológicos, psicológicos e sociais. Neste contexto, fatores psico-sociais apresentam conseqüências fisiológicas e patológicas diretas.

Atualmente está bem estabelecido que a flora intestinal desempenha uma importante influência sobre as funções do organismo do ser humano de múltiplas maneiras. Por exemplo, nos pacientes portadores da SII têm sido descritas alterações qualitativas e quantitativas da flora colônica. Um estudo realizado com amostras de fezes (Saps, JPGN 47:684-7,2008) evidenciou diferenças qualitativas entre indivíduos controles sadios e pacientes portadores da SII seja com sintomas de constipação ou diarréia. A pesquisa mostrou que embora os pacientes com sintomas predominantes de constipação possuíam altas concentrações de Veillonella aqueles portadores de diarréia apresentavam baixas taxas de Lactobacillus. Por outro lado, Galatola e cols. (Min Gastroenterol Dietol 37:169-75,1991) encontraram sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado em 56% dos pacientes com sintomas predominantes de diarréia e em 28% daqueles com sintomas predominantes de constipação. Tudo indica que as alterações da flora intestinal associadas à atividade inflamatória celular podem modificar o funcionamento normal dos neurotransmissores sensoriais colônicos, acarretando desta forma uma anormalidade na percepção visceral, dismotilidade, aumento na produção de gás e modificações do hábito intestinal. Um aumento no número de células inflamatórias na lâmina própria da mucosa colônica, a proximidade dos mastócitos às células nervosas e a produção de substâncias que ativam os receptores envolvidos nas sensações viscerais têm sido demonstradas em pacientes portadores da SII.

Infecções entéricas causadas por bactérias enteropatogênicas podem levar secundariamente a manifestações gastrointestinais persistentes caracterizadas como AFG e dispepsia. Um estudo multicêntrico controlado demonstrou a ocorrência de SII pós-infecção entérica em crianças (Saps e cols., J Pediatr 152:812-16,2008). Esta investigação evidenciou um aumento significativo na prevalência de dor abdominal, a qual perdurou durante vários anos, nos pacientes que sofreram gastroenterite de origem bacteriana mesmo após a sua cura. Muito embora a patogênese da ocorrência da SII pós-infecciosa permaneça obscura, especula-se que as alterações funcionais e estruturais sofridas pela mucosa intestinal, o aumento da permeabilidade intestinal, o comprometimento das células neuroendócrinas e a persistência de interações neuroimunológicas provocando uma disfunção sensorial e motora poderiam explicar este fenômeno clínico.
Os distintos sistemas orgânicos também vivem em um equilíbrio integrado entre eles mesmos. O sistema nervoso entérico possui um diálogo bidirecional com o cérebro por meio das vias simpáticas e parassimpáticas as quais integram o assim denominado eixo cérebro-intestino. O estresse, definido como uma ameaça aguda à homeostase pode levar a inflamação, aumento da permeabilidade intestinal, hipersensibilidade visceral e dismotilidade (Hart e cols., Aliment Pharmacol Ther 16:2017-28,2002). Estressantes físicos e psicológicos geralmente estão envolvidos na instalação bem como na modulação dos sintomas da SII. O estresse pode provocar ativação dos mastócitos e sua degranulação, com a correspondente liberação de mediadores químicos, os quais alteram a resposta motora intestinal e mesmo sua capacidade de percepção visceral, através do seu efeito sobre os nervos entéricos e as células dos músculos lisos. Os mastócitos se constituem na via final comum dos vários mecanismos sensibilizantes do trato gastrointestinal tais como o estresse, alergias alimentares e infecções. Tudo indica que todos estes mecanismos fisiopatogênicos moleculares estariam envolvidos no desencadeamento do chamado estresse relacionado ao colégio, oferecendo desta forma uma explicação para os episódios de dor abdominal e outras manifestações somáticas tão frequentemente observadas nas crianças em idade escolar durante o período letivo do ano.
Um possível efeito dos hormônios juntamente com uma importante sustentação ambiental também deve ser levado em conta. Por exemplo, a produção da Melatonina ilustra de maneira bastante nítida a integração entre os ecosistemas e os sistemas orgânicos. A Melatonina, que inicialmente pensou-se encontrar apenas na glândula pineal, também foi demonstrada estar presente em concentrações muito mais elevadas na mucosa intestinal, principalmente nas células enterocromafins. Os níveis séricos da Melatonina variam de acordo com o ciclo da luz do dia e da temperatura do meio ambiente (ecosistema exterior). A Melatonina também é produzida pela flora intestinal e sua concentração no intestino é modulada pelos alimentos ingeridos (ecosistema interno). Inúmeros estudos têm demonstrado um importante efeito da Melatonina sobre a função gastrointestinal (Konturek e cols., J Physiol Pharmacol 58:381-405,2006). A Melatonina afeta o ciclo circadiano, possui uma atividade anti-oxidante e protetora das células, bem como um efeito anti-inflamatório. A Melatonina também regula a motilidade e a sensibilidade intestinal, fatores transcendentes na patogênese da SII. Inúmeros ensaios clínicos já demonstraram o papel benéfico desempenhado pela Melatonina no tratamento da SII e da dispepsia (Lu e cols., Liment Pharmacol ther 22:927-34,2005)). A Melatonina igualmente tem sido empregada no tratamento das cefaléias e da dor abdominal crônica, as quais, como se sabe, são entidades clínicas com uma forte característica de envolvimento biopsicosocial.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (1)

Introdução

As Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFG) constituem-se em um vasto grupo de entidades clínicas que se manifestam por meio de sintomas crônicos ou recorrentes e que, até o presente momento, não se tem conhecimento a respeito de apresentarem possíveis anormalidades estruturais ou bioquímicas. Por esta razão, representam um conjunto de síndromes altamente desafiadoras as quais freqüentemente deixam de ter um diagnóstico correto e estão associadas com elevadas taxas de morbidade. As AFG são responsáveis por mais de 50% das consultas em gastroenterologia pediátrica e de 2 a 4% das visitas aos consultórios dos pediatras generalistas (Nurko & Di Lorenzo, JPGN 47:679,2008). A qualidade de vida dos indivíduos afetados pelas AFG está significativamente mais comprometida que a da população geral, inclusive até mesmo em comparação com aqueles que padecem de asma ou enxaqueca. As crianças diagnosticadas com Dor Abdominal Funcional (DAF) ou Síndrome do Intestino Irritável (SII) sofrem mais episódios de dor abdominal ou mesmo outras dores somáticas, impotências funcionais e sintomas psiquiátricos do que as de grupos controles; além disso, têm também maior probabilidade de apresentarem persistência dos sintomas ao longo da vida adulta. Algumas investigações clínicas têm demonstrado uma associação entre DAF na infância e, a longo prazo, co-morbidades incluindo entre elas, depressão, ansiedade, doenças psiquiátricas, fobias sociais e queixas somáticas.
Mais recentemente, o interesse pelo estudo das AFG e seu reconhecimento pelos pediatras têm crescido de forma significativa. Estudos epidemiológicos cuidadosamente elaborados têm sido realizados, critérios diagnósticos têm sido propostos e validados, progressos evidentes têm sido conseguidos para uma melhor compreensão dos mecanismos patofisiológicos que são a causa básica destas diversas entidades clínicas, e abordagens terapêuticas mais baseadas em evidências estão sendo desenvolvidas. Tudo isso representam ações técnico-científicas que trarão enormes benefícios para os pacientes, em especial, para aliviar os seus sofrimentos. A importância de uma abordagem multidisciplinar nas AFG tem sido largamente estimulada e as afecções funcionais já deixaram de ser consideradas condições que carregavam o estigma de serem algo “da imaginação da cabeça da criança” ou aquela outra noção comumente externada “não há nada de errado com a criança”, para atualmente serem englobadas entre as síndromes, tais como a fibromialgia ou a enxaqueca, verdadeiramente legítimas e aceitas como manifestações de disfunções dos sistemas neuro-entérico ou nervoso central.
No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.