terça-feira, 21 de novembro de 2023

A caracterização da Esofagite Eosinofílica em lactentes e pré-escolares

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista JPGN publicou o artigo intitulado Characterization of Eosinophilic Esophagitis in Infants and Toddlers”, de Suzanna Hirsch e cols, em julho de 2023, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

 

INTRODUÇÃO

A Esofagite Eosinofílica (EEo) trata-se de uma enfermidade crônica imune-mediada caracterizada por eosinofilia esofágica e sintomas de disfunção esofágica. As manifestações clínicas da EEo são bastante variadas e são diferentes entre as crianças maiores e os adultos. As clássicas apresentações da EEo nos adultos e nas crianças maiores incluem disfagia ou impactação alimentar, enquanto nas crianças de menor idade podem se apresentar com dor abdominal, vômitos ou dificuldades na alimentação. Além disso, os pacientes menores podem apresentar sintomas extra intestinais, tais como: tosse, sibilos, ou ronquidão, embora a relação causal entre EEo e doença respiratória permaneça incerta. Há uma crescente produção de pesquisas relacionadas à EEo nas crianças, entretanto os estudos existentes incluem poucos lactentes e pré-escolares com idades menores de 2 anos, e poucos estudos têm investigado especificamente as manifestações clínicas e o tratamento da EEo neste grupo pediátrico.

Os objetivos do presente estudo foram os seguintes, a saber:

1)   Caracterizar as apresentações gastrointestinais e respiratórias da EEo nas crianças menores de 2 anos de idade e,

2)   Avaliar a resposta clínica e histológica no tratamento dessas crianças.

 

MÉTODOS

Foi realizada uma análise retrospectiva nas crianças menores de 2 anos de idade diagnosticadas como portadoras de EEo. A EEo foi definida pela presença de ≥ 15 eosinófilos por campo de grande aumento em pelo menos 1 biópsia esofágica. Os dados dos pacientes foram revisados levando-se em consideração os seguintes dados: idade, sexo, sintomas presentes, comorbidades, emprego passado e presente de supressão ácida, histórico dietético e restrições, e estudo vídeo fluoroscópico para a deglutição e avaliação de aspiração. Os achados endoscópicos mais salientes tais como: edema, exsudatos, sulcos, anéis, estenose e erosões ou úlceras foram pesquisados. Os achados histológicos foram analisados incluindo a contagem de eosinófilos em todos os níveis esofágicos.

DESFECHOS

Os arquivos dos pacientes foram revisados levando-se em consideração as endoscopias de seguimento, os resultados foram anotados e os pacientes foram classificados como segue:

1)   Remição da EEo, contagem de eosinófilos <15 ou

2)   Persistência da EEo, pico >15.

Os tratamentos da EEo em cada momento das endoscopias foram anotados e estes incluíam o uso de inibidor de bomba de próton (IBP), esteroides ingeridos e restrições dietéticas. A maioria dos pacientes recebeu uma combinação de tratamentos.

Considerando-se os tratamentos recebidos, no momento de cada endoscopia, os pacientes foram considerados como Respondedores ou Não Respondedores a cada combinação dos tratamentos. Respondedores (definido como pico de eosinófilos <15) foram os pacientes que alcançaram remição histológica e Não Respondedores (definido como pico de eosinófilos >15) foram os pacientes que mantiveram mais de 15 eosinófilos por campo de grande aumento.

RESULTADOS

Características dos pacientes

Foram identificadas 42 crianças menores de 2 anos de idade no momento do diagnóstico da EEo, cujas características clínicas estão demonstradas na Tabela 1.

  Tabela 1- Características demográficas dos pacientes ao ingressar no estudo

A idade média dos pacientes foi de 1,3±0,4 anos, e o mais jovem tinha 5 meses. O sintoma mais frequentemente apresentado foi dificuldade na alimentação (67%), a qual foi caracterizada por engasgo ou tosse durante a alimentação (60%) ou dificuldade na progressão dos alimentos sólidos (43%). Nenhum paciente apresentou relato de impactação alimentar.

Índice Endoscópico  

O índice endoscópico mostrou-se anormal em 30 pacientes (71%) e normal em 12 pacientes (29%). As anormalidades incluíram edema da mucosa (20/42 – 48%), sulcos (20/42 – 48%), exsudatos (17/42 – 41%) e erosões (1/42 – 1%). Não foram identificados anéis ou estenoses. Do ponto de vista histológico o pico médio de eosinófilos foi de 50pcga com a variação de 30 a 100pcga (Figura 1).

Figura 1- Alterações nas contagens dos eosinófilos no momento inicial e na primeira biópsia de seguimento.

Resposta Sintomática

Todos os pacientes apresentaram melhoria clínica em pelo menos 1 sintoma no primeiro seguimento. Houve uma significante redução de todos os sintomas durante o seguimento em comparação com os dados iniciais (Figura 2).

Figura 2- Porcentagem de pacientes com sintomas pré e pós-tratamento.

Seguimento longitudinal 

O número de respondedores e não respondedores para cada tratamento ou combinação de tratamentos e endoscopias de seguimento estão demonstrados na Figura 3.

Figura 3- Proporção de pacientes que alcançou remissão histológica após o tratamento.

 

Houve um significativo efeito positivo no tipo de tratamento em relação à resposta histológica e as melhores respostas observadas foram as combinações dieta/esteroides ou dieta/inibidor de bomba de próton e a pior resposta observada foi o uso isolado com inibidor de bomba de próton.

CONCLUSÕES  

Em resumo, este estudo demonstra que lactentes e pré-escolares portadores de EEo são mais frequentemente do sexo masculino, com forte história pessoal e familiar de atopia, e frequentemente apresentam dificuldades alimentares, vômitos ou sintomas respiratórios. EEo neste grupo etário pode mimetizar outros diagnósticos gastrointestinais frequentes, tais como refluxo, alergia à proteína do leite ou aspiração. Enquanto a maioria dos pacientes demonstrou melhoria clínica com os tratamentos padrões, utilizando-se uma combinação de dieta/esteroide ou dieta/IBP, sendo estes os mais efetivos, a lesão endoscópica é considerável e as respostas histológicas não podem ser mantidas a longo prazo. Futuras pesquisas prospectivas serão de grande utilidade para avaliar os desfechos terapêuticos e o curso da enfermidade neste grupo etário de crianças mais jovens.

MEUS COMENTÁRIOS

Este é um dos primeiros estudos que definem os aspectos clínicos e endoscópicos da EEo em lactentes e pré-escolares, e, ao mesmo tempo, avalia a resposta ao tratamento neste grupo etário de pacientes. Considerando que os sintomas são inespecíficos neste grupo etário, é importante compreender suas mais frequentes manifestações clínicas, e manter um alto índice de suspeição para a EEo quando estes sintomas estão presentes. Diferentemente dos pacientes maiores, nos quais as apresentações clássicas incluem disfagia e impactação dos alimentos, os mais frequentes sintomas nestes pacientes mais jovens são dificuldades na alimentação, vômitos, tosse e sibilos. Vale ressaltar que estes pacientes geralmente não têm agravo do seu estado nutricional, na grande maioria dos casos.

Outro aspecto que chamou a atenção neste estudo é que a avaliação endoscópica se revelou aparentemente normal em 29% dos pacientes, o que salienta a necessidade de incluir na rotina a análise histológica.

Os tratamentos dietéticos costumam variar intensamente, tanto quanto as alterações das fórmulas e quanto as restrições de alimentos sólidos. No presente estudo 40% dos pacientes foram tratados apenas com restrição dietética, enquanto 71% deles que foi tratado com uma combinação de restrição dietética e IBP ou esteroides apresentou remissão histológica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1)   Suzanna Hirsch e cols. JPGN 2023; 77:86-92.

2)   Lyles JL e cols. J Allergy Clin Immunol 2021;147:244-54.

3)   KeLes MN e cols. Dysphagia 2023;38:474-82.

4)   Witmer CP e cols. JPGN 2018;67:610-5.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O poder da observação que permitiu os avanços na elucidação da causa da Doença Celíaca (DC)

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista JPGN publicou o artigo intitulado The Power of Observation in Advancing Celiac Disease”, de Barbara Bosch e Peter Holt, em fevereiro de 2023, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

INTRODUÇÃO

A Doença Celíaca (DC) já havia sido reconhecida há décadas quando, nos anos 1930, Willem Karel Dicke, um pediatra holandês, observou que as crianças portadoras desta enfermidade apresentavam recidiva quando consumiam produtos contendo trigo, e, por outro lado, não apresentavam quaisquer sintomas quando não ingeriam este alimento. Dicke publicou em um manuscrito, em 1941, suas observações e propôs o uso da dieta isenta de trigo. Os anos sombrios da Segunda Guerra Mundial impediram que ele realizasse as investigações necessárias para comprovar suas observações clínicas. Por outro lado, durante o inverno de 1944 houve uma grande escassez de alimentos, o que tornou praticamente inexistente a disponibilidade de pão na Holanda. Este acontecimento levou as crianças portadoras de DC a apresentar uma marcada regressão dos sintomas, os quais rapidamente recidivaram quando pão branco foi enviado por paraquedas pelos aviões aliados durante a operação Marshall. Este fato sugeriu fortemente a ação dos efeitos nocivos dos produtos do pão sobre a DC. Entre 1946 e 1960, Dicke com os Drs Weijers e Van de Kamer, finalmente realizaram uma brilhante pesquisa clínica que comprovou os efeitos nocivos da farinha de trigo sobre as crianças que estavam sob seus cuidados médicos. Quando essas crianças apresentavam a recidiva das suas enfermidades, elas eram internadas nos hospitais Wilhelmina e Juliana Children’s, e lá permaneciam vários meses para serem submetidas a investigações clínicas e laboratoriais. Inicialmente, elas eram alimentadas com dieta à base de farinha de batata para induzir alívio clínico. Então, elas eram observadas quando dietas contendo trigo ou componentes do trigo eram introduzidas na sua alimentação. O propósito desses repetidos estudos tinha por objetivo definir quais as frações tóxicas eram responsáveis pelos sintomas e pela má absorção. Antes de receberem alta hospitalar, as crianças eram alimentadas novamente com dieta isenta de trigo para eliminar os sintomas e provocar aumento do peso corporal. O elo fisiopatológico entre a farinha de trigo e a DC foi comprovado pelos estudos de quantificação das perdas fecais de gordura realizadas em 5 pacientes, cujos resultados foram publicados na tese de PhD de Dicke, em 1950. Os efeitos benéficos da dieta isenta de trigo na DC foram rapidamente confirmados na Europa e nos EUA, o que acarretou em um êxito terapêutico, e que, posteriormente, com seu uso generalizado uma diminuição da mortalidade.

Considerando-se que essas crianças contribuíram de forma definitiva para a compreensão e o tratamento exitoso da DC, nós decidimos tentar contactá-los. Nós tínhamos a esperança de saber o que eles se lembravam, como eles manejavam a sua dieta à medida que cresciam para a vida adulta, e, finalmente o que eles sentiam a respeito por haver participado da referida pesquisa. Elas forneceram algumas luzes a respeito desses estudos extraordinários que formaram o pilar fundamental do nosso conhecimento sobre a fisiopatologia do glúten na DC.

As Vinhetas das Crianças  

JHB nascida em 1944 foi uma das primeiras crianças com DC a serem estudadas. Foi internada repetidas vezes no Wilhelmina Children’s Hospital aos 2 anos de idade. Ela está presente na Figura 1, dentre as crianças estudadas na enfermaria de pesquisa.  



Após a alta hospitalar, seus pais foram avisados de que ela deveria evitar alimentos condimentados e gorduras, mas não receberam qualquer outra recomendação dietética. Ela questiona por que sua família nunca foi avisada de que ela deveria receber uma dieta isenta de glúten, mas não tem quaisquer arrependimentos da sua participação na pesquisa.

HA foi hospitalizada aos 9 meses de idade em um hospital local durante 3 anos, mas nunca havia sido diagnosticada como DC, seu médico sugeriu uma dieta de bananas e água de arroz, mas seus pais apresentavam dificuldades em adquirir esses alimentos especiais. Seus irmãos nunca aceitaram que ela fosse enferma e ela nunca podia vê-los ingerindo alimentos rotineiros. Durante a infância ela precisou de repetidas transfusões de sangue. Ela foi diagnosticada com DC somente aos 62 anos de idade. Suas lembranças a respeito das hospitalizações foram muito positivas. Ela desejaria participar em estudos futuros caso isso possa ser de maior valor para a compreensão da enfermidade.

VOF foi hospitalizada para investigação detalhada aos 5 anos de idade. Ao longo de toda sua infância, ela sentia-se sempre cansada, com abdome distendido e retardo do crescimento, e, geralmente ela assumia o lugar no carrinho de bebê que pertencia a sua irmã mais nova. Ela sofreu hospitalização prolongada recebeu inúmeras injeções e se recorda de não ter visto seus pais ou irmãos durante muitas semanas. Após a alta ela iniciou dieta de arroz e pão produzido por uma padaria especial. Subsequentemente ela descobriu ser intolerante à lactose e foi novamente diagnosticada com DC em idade posterior. Ela refere que não tem más lembranças a respeito das hospitalizações e se sentiria feliz em participar de estudos futuros.

As Lembranças da Enfermeira

Complementando essas estórias pessoais há também o relato de BN que aos 19 anos de idade começou a trabalhar como estagiária de enfermagem pediátrica na enfermaria de pesquisa do Wilhelmina Children’s Hospital. Ela se recorda que tinha entre 5 a 6 crianças sob seus cuidados, e que inclusive foram incluídos alguns dos 6 pacientes pesquisados, descritos na tese de Dicke. O time de enfermeiras tinha conhecimentos de que os pacientes com DC eram tratados com dietas especiais para a pesquisa. Ela se recorda que preparava mingaus com diversos grãos. As crianças permaneciam hospitalizadas durante 6 meses cada vez, e eram permitidas ver suas famílias apenas semanalmente. Ela enfatizou o papel do Dr Weijers que geralmente decidia a respeito da composição das dietas das crianças.

CONCLUSÕES

O que essas estórias nos dizem respeito sobre as crianças submetidas à pesquisa e seus familiares? Em primeiro lugar, a extraordinária resiliência demonstrada por essas crianças que foram repetidamente provocadas com alimentos que as tornavam enfermas. A fé desses familiares nos seus médicos durante os estudos ainda permanece muito clara após decorridos 70 anos. Todas elas ainda se dispõem a ser voluntárias de pesquisa novamente. Nós ouvimos que havia uma falta de entendimento a respeito do que era a DC, e que a DC somente poderia ser tratada com alimentos especiais isentos de glúten, os quais eram difíceis de serem encontrados e muito caros. As crianças eram acusadas de fingir a sua enfermidade para obter mais atenção familiar e ter o privilégio de que elas ingerissem suas refeições isoladamente dos seus irmãos. Ao ouvir essas estórias, nós podemos compreender a importância das sociedades leigas de apoio à DC, que forneciam recomendações dietéticas práticas e suporte psicológico, em um determinado momento em que a enfermidade era pouco compreendida. Através dos olhos da enfermeira pediátrica, nós podemos ter um lampejo do ambiente no qual Dicke e seus colaboradores testavam as crianças com DC. Vale ressaltar que esses estudos foram conduzidos antes da implantação dos comitês de ética para aprovar estudos de pesquisa clínica. Nós nos perguntamos se esses tais estudos teriam sido aprovados pelos comitês de ética atualmente existentes.

MEUS COMENTÁRIOS

Passaram-se mais de 60 anos entre a primeira descrição da DC feita por Samuel Gee, em 1888, e o conhecimento da etiologia da DC, definitivamente constatada por Dicke em sua tese de PhD, publicada em 1950.



Ao longo desse período inúmeras investigações em diferentes centros foram realizadas para tentar caracterizar a etiologia e o tratamento da DC, sem sucesso. A perspicácia e a perseverança de Dicke e seus colaboradores foram fundamentais para que o objetivo final fosse alcançado. Uma ironia do destino foi um fator coadjuvante essencial para esta concretude. Os horrores causados pela deflagração da Segunda Guerra Mundial, na qual a Holanda foi uma grande vítima, em virtude da escassez dos alimentos, particularmente do trigo e seus produtos, auxiliaram o poder de observação de Dicke para levantar a suspeita de que o trigo fosse o agente etiológico da DC. Este fato foi definitivamente por ele comprovado porque seus pacientes, que durante o período de escassez alimentar apresentavam recuperação clínica e mantinham-se assintomáticos, e, com o final da guerra, com a implantação do plano Marshall, que propiciou o fornecimento de inúmeros alimentos pelas forças aliadas inclusive os derivados do trigo, incluindo o pão, Dicke percebeu, então, que seus pacientes voltaram a apresentar os sintomas da DC. Foi, portanto, a partir dessas observações acuradas, que Dicke chegou à comprovação da causa etiológica da DC. Vale ressaltar, que naquela época ainda não existia a disponibilidade para a realização da biópsia do intestino delgado. O dado laboratorial mais específico limitava-se ao balanço fecal de gorduras introduzido por Weijers e Van de Kamer. A esteatorreia passou a ser o marcador laboratorial de maior valia para caracterizar o quadro da Síndrome de Má Absorção provocado pela DC. Vale ressaltar, que o advento da biópsia do intestino delgado, foi rudimentarmente implantado em meados dos anos 1950, sendo a médica inglesa Margot Shiner a primeira pesquisadora a caracterizar as lesões microscópicas de atrofia vilositária subtotal, em 1957, em um artigo publicado na revista Lancet. Devo dizer que a conheci pessoalmente na década de 1970 aqui em São Paulo, e, com ela tive o prazer de realizar um trabalho de pesquisa em crianças desnutridas, ao analisar as graves alterações morfológicas do intestino delgado, por meio da microscopia eletrônica. Este trabalho está publicado na Revista American Journal of Clinical Nutrition, em 1979 (3).

Outro grande avanço para o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi neste período que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas esposas poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em 1963, no Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de trabalho para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal, ele desenvolveu juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos invasivo que o de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal, o qual passou a ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A partir da introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias de intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta nova técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época, pois, passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do intestino delgado tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro para o diagnóstico da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler” com o orifício de abertura lateral que obtém o fragmento de mucosa intestinal e parte do procedimento da biópsia.





Figuras 7 e 8

Vale ressaltar que a partir da década de 1980, com a implantação praticamente universal da técnica da endoscopia digestiva alta com endoscópios flexíveis especificamente fabricados para uso em crianças, as biópsias de intestino delgado passaram a ser realizadas rotineiramente com as pinças endoscópicas. Esta nova técnica trouxe algumas vantagens indiscutíveis, posto que as biópsias podiam ser realizadas sob visão direta, com a possibilidade de obtenção de vários fragmentos de tecido, e não mais às cegas, o que levou ao abandono da utilização da cápsula de Crosby-Kugler.

Ao final da década de 1960 alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber: 1- que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma indiscutível e facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado; 3- a disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias do intestino delgado, e, com isto, possibilitar o início da solução do mistério da patogênese da DC.

Quanto a DC especificamente, nosso grupo da Gastropediatria da EPM teve a primazia de descrever o primeiro relato de caso de DC comprovada com biópsia do intestino delgado no nosso meio e, a respectiva recuperação clínica e nutricional com o uso da dieta isenta de glúten (4).      



Figura 9 – Paciente portador de DC no momento da internação, e logo após o inicio da dieta isenta de glúten, evidenciando os primórdios da sua recuperação clínica.  



Figura 10- O mesmo paciente portador de DC em plena recuperação clínica após 6 meses de uso da dieta isenta de glúten.



Figura 11- Fragmentos de biópsia de intestino delgado revelando a foto superior atrofia vilositária subtotal, e, na inferior a recuperação morfológica apresentando vilosidades digitiformes e uma relação vilosidade/cripta 4/1. 

É importante assinalar que após esta primeira descrição da DC no nosso meio, muitos outros casos, até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose e/ou problemas de ordem socioeconômica, vieram também a ser diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão elevada quanto aquela descrita nos outros países do mundo ocidental.

No final dos anos 1980, um grande estudo multicêntrico realizado na Itália, levando-se em consideração estritos critérios clínicos e laboratoriais, pode-se estabelecer com 95% de segurança que o diagnóstico de DC poderia ser realizado com apenas 1 biópsia de intestino delgado. Este achado conduziu a ESPGHAN à publicação, em 1990, de novos critérios de conduta para o diagnóstico da DC, ao utilizar os marcadores sorológicos positivos e apenas 1 biópsia de intestino delgado.

No início dos anos 2000 a DC passou a ser universalmente considerada como exemplo de uma enfermidade autoimune associada ao complexo genético HLA DQ2/DQ8, e o autoanticorpo, até então desconhecido, revelou-se ser o anticorpo anti-transglutaminase. Nas figuras abaixo estão representadas a molécula do HLA, a predisposição genética e sua frequência na população geral.







 No passado, há cerca de 40 anos, a DC era considerada uma enfermidade rara que afetava majoritariamente indivíduos de origem europeia, e que usualmente se caracterizava por seu aparecimento nos dois primeiros anos de vida. Naquela ocasião, o diagnóstico baseava-se inteiramente no surgimento dos sintomas típicos de má absorção, com diarreia crônica e perda de peso, cuja comprovação ocorria através da biópsia do intestino delgado. Entretanto, mais recentemente, a partir da década de 1980, com a disponibilidade dos marcadores sorológicos, o rastreamento da DC pode ser inicialmente realizado utilizando-se estes testes, os quais apresentam elevadas taxas de sensibilidade e especificidade, tais como os anticorpos anti-endomíseo e o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com o advento desses métodos rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um significativo aumento no conhecimento da DC, o que possibilitou, por sua vez, também, que se estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas da DC, evidenciando outras variedades sintomáticas, e não mais apenas aquelas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita também associada com outras múltiplas enfermidades autoimunes, como por exemplo, tireoidite autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de uma ocorrência aumentada de DC em crianças portadoras de dermatite herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência de IgA, síndrome de Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau dos pacientes portadores de DC. Uma série de estudos tem demonstrado que a prevalência da DC pode estar presente também entre 5 a 13% dos irmãos dos pacientes. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos, a prevalência da DC entre as crianças de dois a quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000 crianças, ou aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças (Figura 12).



No Brasil, contrariamente às previsões do passado, a prevalência da DC, à semelhança dos países da Europa e dos Estados Unidos, embora com variação na dependência geográfica dos estudos realizados, também se configura com níveis compatíveis como um problema de saúde pública a ser devidamente enfatizado (Figura 13).

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1-   Bosch, B e Holt, P - JPGN 2023;76:120-22.

2-   Fagundes-Neto U. Igastroped, 2016. Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental.

3-   Fagundes-Neto, U.; Campos, JVM; Patricio, FRS; Wehba, J; Carvalho, AA; Shiner, M - American Journal Clinical Nutrition 1979;32:1575-1591. Jejunal mucosa in marasmatic children. Clinical, pathological, and fine structural evaluation of the effect of protein-energy malnutrition and environmental contamination.

4-   Fagundes-Neto, U - Pediatria Prática 1976;43:23-26. Doença Celíaca: aspectos práticos de importância.


terça-feira, 19 de setembro de 2023

Manejo Farmacológico da Constipação Idiopática Crônica: guia clínico da Associação Americana de Gastroenterologia.

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou o artigo intitulado “American Gastroenterological Association-American College of Gastroenterology Clinical Practice Guideline: Pharmacological Management of Chronic Idiopathic Constipation”, de Lin Chang e cols, em junho de 2023, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

INTRODUÇÃO

A Constipação idiopática crônica (CIC) é uma queixa clínica frequente que afeta cerca de 8 a 12% da população Norte-Americana. A CIC trata-se de um transtorno funcional da interação trato digestivo – cérebro e pode estar associada com sintomas, tais como, evacuações pouco frequentes e incompletas, na ausência de anormalidades estruturais da mucosa colônica. Este transtorno funcional apresenta efeitos adversos sobre a qualidade de vida dos pacientes que podem ser similares a aqueles observados em outras enfermidades, tais como, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes e depressão. Intervenções não farmacológicas geralmente representam o passo inicial no manejo da CIC, e podem incluir alterações dietéticas (ingestão aumentada de líquidos e de fibras na dieta), alterações comportamentais, tais como exercícios físicos. O tratamento farmacológico pode incluir a utilização do polietilenoglicol, secretagogos e agentes pró-cinéticos. De uma maneira geral, pode-se afirmar que uma proporção significativa dos pacientes com CIC não se encontra satisfeito com o tratamento vigente, e, muitas vezes, utilizam-se de medicações que não necessitam de prescrição médica, para em seguida, passar a utilizar medicamentos que necessitam prescrição médica, a fim de obter um alívio dos seus sintomas. A AGA e o ACG desenvolveram de forma conjunta essa revisão sistemática, e, guias clínicos para fornecer recomendações baseadas em evidências para o tratamento da CIC.  

MÉTODOS

Foi constituído um painel multidisciplinar de guias de conduta que realizou uma revisão sistemática analisando os seguintes agentes medicamentosos, a saber: fibras, laxantes osmóticos (polietilenoglicol, óxido de magnésio e lactulose), laxantes estimulantes (bizacodil, bicosulfato de sódio, senna), secretagogos (lubiprostona, linaclotida, plecanatida), e, um agonista do tipo 4 da serotonina (prucaloprida). O painel priorizou as questões clínicas e os desfechos utilizando a estrutura de Graduação de Avaliação das Recomendações, o Desenvolvimento, e a Avaliação para acessar a evidência de certeza para cada intervenção. A estrutura da Evidência para Decisão foi utilizada para desenvolver recomendações clínicas baseadas na confrontação entre os efeitos desejáveis e indesejáveis, nas valorizações dos pacientes, nos custos e nas considerações de equidade da saúde.

RESULTADOS

O painel concordou com o estabelecimento de 10 recomendações no manejo da CIC. Baseado na evidência disponível, o painel propôs fortes recomendações para o uso do polietilenoglicol, picosulfato de sodio, plinaclotina, plecanatida e prucaloprida. Recomendações condicionais foram estabelecidas para o uso de fibras, lactulose, sena, óxido de magnésio e lubiprostona.

Naqueles pacientes que não apresentam sucesso terapêutico utilizando medicamentos que não necessitam prescrição, o painel recomenda o uso da prucaloprida (um agonista da serotonina) em associação ou isoladamente, entre 4 e 24 semanas. A prucaloprida é um agonista seletivo de elevada afinidade pela serotonina que promove a neurotransmissão pelos neurônios entéricos resultando na estimulação do reflexo peristáltico, secreções entéricas e motilidade gastrointestinal. Efeitos colaterais tais como cefaleia, dor abdominal, náusea e diarreia podem ocorrer de intensidade variável.

DISCUSSÃO

Esse documento fornece uma extensa revisão dos vários agentes farmacológicos disponíveis para o tratamento da CIC. As diretrizes de conduta têm o significado de fornecer uma estrutura para a abordagem a respeito do manejo da CIC. Os profissionais de saúde devem se envolver no compartilhamento das decisões baseadas na preferência dos pacientes, tais como: disponibilidade e os custos do medicamento. As limitações e as lacunas das evidências foram salientadas para auxiliar a direcionar futuras pesquisas, para proporcionar melhores oportunidades para os pacientes portadores de CIC (vide gráfico em anexo).

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1-          Lin Chang e cols. – Gastroenterology 2023;164:1086-1106

2-          Bharucha AE e cols. – Gastroenterology 2020;158:1232-1249

3-          Shah ED e cols.- Am J Gastroenterol 2020;115:596-602

4-                  Chang L e cols.- Am J Gastroenterol 2021;116:1929-1937

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

A expressão do Transportador de Recaptação da Serotonina na Síndrome do Intestino Irritável é modulada pela microbiota intestinal por meio dos mastócitos-prostaglandina E2

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou o artigo intitulado “Mucosal Serotonin Reuptake Transporter Expression in Irritable Bowel Syndrome is Modulated by Gut Microbiota via Mast Cell-Prostaglandin E2”, de Jun Gao e cols, em junho de 2022, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

INTRODUÇÃO

A serotonina (5-HT) é uma molécula chave parácrina e neurócrina presente no trato digestivo, no qual desempenha papel essencial na regulação da motilidade, secreção, vasodilatação, nocicepção e inflamação. O aumento dos níveis plasmáticos pós prandiais da 5-HT nos pacientes com Síndrome do Intestino Irritável (SII) com predominância de diarreia (SII-D), e com alívio significativo dos sintomas sob tratamento com antagonistas do receptor 5-HT sugere que a atividade diminuída da regulação da 5-HT pode contribuir para a fisiopatologia da SII-D. A maior quantidade intestinal da 5-HT é sintetizada pelas células enterocromafins por meio da enzima triptofano hidrolase1 e liberada como resposta a estímulos mecânicos e químicos no lúmen intestinal. O esgotamento da produção da 5-HT repousa quase que exclusivamente no transporte intracelular pelo transportador seletivo de recaptação da serotonina (TRS) o qual se expressa em todas as células epiteliais intestinais. A principal enzima responsável pela degradação da 5-HT nos tecidos colônicos é a monoaminaoxidase A, que é codificada pelo gene MAOA. A diminuição da expressão do TRS no trato digestivo de pacientes com SII pode contribuir para o aumento do nível de 5-HT no cólon dos pacientes com SII-D. Além disso, camundongos desprovidos desse transportador apresentam diarreia aquosa com aumento da motilidade colônica e hipersensibilidade visceral. Todas essas observações dão suporte à tese de que a captação diminuída de 5-HT pelas células epiteliais, e que, portanto, resultam em um aumento da 5-HT no cólon, podem desempenhar um papel importante na fisiopatogenia da SII-D.

Os Mastócitos são ativados por estímulos externos e liberam efetores que podem causar sintomas da SII-D. Medicamentos que possuem propriedades estabilizadores sobre os mastócitos, ao que tudo indica causam alívio da dor e da diarreia na SII-D. Nós demonstramos que a administração intracolônica de sobrenadantes da mucosa colônica de pacientes com SII-D induz hipersensibilidade visceral em ratos por meio da síntese aumentada e respectiva liberação da Prostaglandina E2 (PGE2) desde os mastócitos, os quais por sua vez ativam os neurônios dos gânglios dorsais. No presente trabalho foi investigado se o TRS é modulado pela microbiota intestinal via mastócitos-PGE2.

MÉTODOS

Pacientes

Foram recrutados 14 pacientes portadores de SII-D e 14 indivíduos sadios que serviram como controle. Foram realizadas infusões intracolônicas em camundongos com o sobrenadante fecal dos indivíduos com SII-D e com os controles sadios. O papel dos mastócitos foi estudado em camundongos com deficiência de mastócitos. Organoides colônicos ou mastócitos foram utilizados para experimentos in vitro, a expressão do TRS foi mensurada pela reação quantitativa da polimerase em cadeia. Respostas visceromotoras devido à distensão coloretal e trânsito colônicos foram avaliadas.

RESULTADOS  

A infusão intracolônica do sobrenadante fecal dos indivíduos com SII-D nos camundongos causou aumento da 5-HT na mucosa, em comparação com aquela observada nos controles sadios, acompanhada por uma redução de 50% na expressão do TRS. O tratamento in vitro com lipopólissacarídeo (LPS) provocou aumento da enzima oxigenase-2 e liberação de PGE-2 nos mastócitos dos camundongos. A infusão intracolônica do sobrenadante fecal dos pacientes com SII-D nos camundongos reduziu o tempo de trânsito colônico, aumentou o conteúdo fecal de água e aumentou a resposta visceromotora à distensão colorretal.

CONCLUSÃO

O TRS está presente nas células epiteliais do intestino e diminui a ação da 5-HT no trato digestivo. Inúmeras investigações têm associado níveis diminuídos do TRS intestinal com aumento do teor de 5-HT e exacerbação dos sintomas nos pacientes com SII-D. Uma diminuição significativa da expressão do TRS tem sido descrita em espécimes de biópsia colônica nos pacientes com SII-D. O presente estudo demonstrou que o lipopólissacarídeo fecal agindo em concomitância com a tripsina nos pacientes com SII-D, estimulou os mastócitos da mucosa intestinal na liberação da PEG-2, a qual provoca uma diminuição do TRS na mucosa colônica, que por sua vez, resulta no aumento da 5-HT. O presente trabalho apresenta algumas observações interessantes, a saber:

1)   Fornece evidencia de que lipopólissacarídeo fecal atuando em conjunto com a tripsina nos pacientes com SII-D, estimula os mastócitos da mucosa para a liberação de PEG-2, a qual acarreta um decréscimo da produção do TRS, e que resulta, portanto, no aumento da concentração do 5-HT na mucosa. Esse fenômeno pode contribuir para a ocorrência de diarreia e dor abdominal, as quais são frequentes nos pacientes com SII-D;

2)   As infusões intracolônicas nos camundongos com os sobrenadantes dos espécimes de biópsias dos pacientes com SII-D provocou um considerável aumento das respostas viscero motoras devido à distensão colorretal, a qual mostrou-se associada com aumento significativo da PEG-2, histamina e triptcase na mucosa colônica.   

Finalmente, os autores propõem o seguinte modelo de trabalho para explicar o mecanismo responsável pela diminuição da expressão da TRS na mucosa nos indivíduos com SII-D. O material fecal no colón dos pacientes com SII-D contém quantidades aumentadas do lipopolissacarideo e outras substâncias bioativas, como por exemplo, tripsina. No interior da lâmina própria, o lipopolissacarídeo age em combinação com a tripsina, que por sua vez aumenta a síntese de PEG-2, a qual é liberada pelos mastócitos ativados. A PEG-2 age sobre os receptores das células epiteliais provocando uma diminuição da expressão do TRS, e, consequentemente acarretando um aumento da disponibilidade da 5-HT na mucosa. Esse aumento da 5-HT na mucosa deflagra um aumento da motilidade, secreção intestinal e hipersensibilidade visceral nos pacientes com SII-D (Figura1).





Abaixo segue o esquema fisiopatológico da gênese da SII-D:

Referências Bibliográficas

1-   Jun Gao e cols. – Gastroenterology 2022;162:1962-74

2-   Qiqi Z e cols. – Gastroenterology 2022;162:1833-34

3-   Wang F e cols. – J Physiol 2017;595:79-91

4-   Cao YN  e cols. – World J Gastroenterol 2018;24:338-350

quinta-feira, 13 de julho de 2023

DIARRHEA AND MALNUTRITION

DIARRHEA AND MALNUTRITION

Prof. Ulysses Fagundes Neto

Esta é a transcrição completa da palestra, por mim proferida a convite do professor Fima Lifshitz, chefe do Serviço de Pediatric Research do North Shore University Hospital afiliado da Cornell University Medical College, como saudação da minha chegada para a realização do Pos-Doutorado em 1977.

It is well known that 2/3 of the children living in the world are hungry and suffer some degree of malnutrition. Diarrhea is the major cause of death in infancy in the underdeveloped countries and almost of the children that died due to diarrheal disease had been malnourished.

Malnutrition and diarrhea are a binomial factor the main component of a vicious cycle that is extremely hard to be broken, being by this own reason the responsible cause of the high rates of mortality observed in these children.

While for you (Americans) and for all the physicians who work in the so-called developed countries malnutrition is almost always secondary to diseases, such us malabsorption syndromes (Cystic fibrosis, Celiac disease etc.), for me and for all the physicians who work in the underdeveloped countries malnutrition is almost always a consequence of a socioeconomic problem.

Overcrowding and wretched conditions where promiscuity, contaminated environment, lack of water and sanitary supply, associated to poor personal hygiene, with deficient formula intake, these are the basic determinants of an unsteady state that can be tipped over, at any moment, to a state of overt malnutrition.


Vista aérea de uma fração da Favela Cidade Leonor.



Registros fotográficos do Córrego da Água Espraiada evidenciando  barracos construídos em suas margens.

 

However, at the time that we are involved with a considerable number of malnourished children due to socioeconomic problems, we must be alerted to correctly diagnose those children who are undernourished due to secondary causes, like this seventeen-month-old child that came to us with a history of diarrhea, weight loss and failure to grow for the last 5 months. A daily fecal fat excretion of 12 grams and a D-xylose absorption with values of 12 mg% in the first hour and 9 mg% in the second hour, associated with total villous atrophy in the small bowel biopsy practically made the diagnosis of Celiac Disease. After receiving a gluten free diet for 6 months the clinical appearance showed a complete nutritional recovery, with normal values of the intestinal function tests, although there were still some mild alterations in the intestinal morphology. This child, like several other children, could easily been labeled as suffering from primary malnutrition in a more simplistic approach and at this moment could be carrying all the undesirable stigmas of malnutrition.

 

Este foi o primeiro relato de caso publicado de Doença Celíaca (DC) com investigação completa e recuperação clínica e nutricional em 1974 (Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina). 

 







Paciente portador de desnutrição proteico-calórica devido a Doença Celíaca (DC) no momento da internação, após alguns dias em dieta isenta de glúten, e 6 meses ainda recebendo dieta isenta de glúten. Primeira biópsia intestinal revela atrofia vilositária subtotal e hipertrofia das glândulas crípticas e a recuperação morfológica durante o tratamento.

 

The reason for secondary causes of malnutrition associated to diarrhea within this large population of primary undernourished children is one of the most important challenges in our daily medical practice.

Another striking difference between you and me, that is, in the children that you must follow up and those that I must follow up is related to the dietary scheme used in the first year of life. While for you it may make no real difference at all whether the child is being breastfed or not, to me this is a very important matter.

It has been well demonstrated that children while exclusively breastfed, despite living in poor conditions, have a growth chart very similar to those ones of the healthiest British children, but when human’s milk is replaced by cow’s milk formula, or other new foods are incorporated to the infant’s diet repeated infectious diarrheic episodes appear and malnutrition supervenes. This is the classical picture known by the name of “weanling diarrhea”.

To confirm this hypothesis which has been proven by the classical studies in Punjab and in Guatemala, I invite you to follow me on a long trip to a Brazilian Indian Reservation, called Xingu National Park. The Reservation is in the heart of the country just on the beginning of the Amazon region. The only means of transportation to reach this area is by plane.



Archeological studies indicate that the Indians settled this area at least for the II century of our Era, and due to some geographic peculiarities, the Indians remained in complete isolation until the last years of the 19TH century. Nowadays these people are allowed to live in their most natural way of living, and all their traditions, customs and culture have been respected. They live in their little villages in houses built by themselves.






Diversas aldeias do Alto Xingu

Oca típica do Alto Xingu

 


Registro fotográfico da minha primeira viagem ao Parque Indígena do Xingu, em dezembro de 1970, semanas antes das solenidades da minha graduação em Medicina pela Escola Paulista de Medicina.

 

Their basic food supply are fish and starch obtained from a special kind of root, called manioc, and wild fruits, mainly “piqui”, that is rich in vitamin A.


Os rios e os lagos são abundantes fontes de peixes


 
 
 


Registro das principais etapas do laborioso processo de elaboração do Biju

 

Breastfeeding is universal and the most important kind of food during the first year of life, being practically the only nutritional supply in this period of life, except for a special kind of juice made of manioc and native fruits, that is offered near the end of the first year of life. There is no other way to get animal milk since they have no pastoral tradition, and so, human milk is the only option. Breastfeeding lasts approximately until the third or fourth year of life and after weaning milk is never again consumed by these population. In general, soon after the fifth year of life the Indians become lactose intolerants due to a genetically lactase deficiency acquisition.

 




 

To evaluate the nutritional status of the children population below 5 years of age we have done a prospective study during 3 consecutive years. This study showed that the prevalence of malnutrition in these children was 5.8% and despite malaria which is endemic in this region of the country we did not find severe cases of malnutrition and the mortality rate was very low. So, these people, some of the most primitive human beings still alive, live in close relationship with nature showing a perfect state of adaptation and integration. We can state by now that they do not demand any special medical care, except of course for the routinary immunization schedule, to maintain their nutritional status.



Foto registrada pela premiada fotografa Maureen Bisilliat, em 1974, quando do meu trabalho de tese de Doutorado intitulado “Avaliação do estado nutricional das crianças índias do Alto Xingu”, defendida em abril de 1977.
 




Este poster foi exposto, no mural do Carnegie Hall em Nova York, durante a temporada de concertos do cantor Sting em março de 1993, escrito em inglês e por mim vertido para o português. Vale ressaltar que Sting é um grande amigo do cacique Raoni desde longa data, e financiou parte da demarcação do Parque Indígena do Xingu.

 

On the other hand, when the descendants of these people move up to our traditional western type of civilization, this happy and healthy appearance gradually starts to disappear and becomes more difficult to be seen in a considerable proportion of our general population. A clinical picture of overt malnutrition can now be seen more frequently, and kwashiorkor is one of the most common types of severe protein-energy malnutrition seen in the rural zones of the country. However, when you reach the large cities, the problems are multiplied, and the iceberg of malnutrition becomes more visible in an earlier age.

 

These people original inhabitants of the rural zones are attracted by the illusion of the great cities, and they constitute a considerable migratory mass moving to the big urban centers. Most of these families have numerous children and a very low income that compel them to live in promiscuous environment with no potable water and lack of sewage system in the periphery of the cities. Theses deleterious factors together with precocious weaning predispose the children to suffer repeated episodes of diarrheal diseases. Moreover, the high prices of formulas result on the consumption of diluted preparation of the feeding bottles, thus contributing to the aggravation of the nutritional status. Repeated infectious diseases, frequent hospital admissions and deficient protein-energy intake are the main factors of a vicious cycle that leads to severe protein-energy malnutrition in the first five years of life and consequently to high rates of death. Marasmus is the most common clinical picture of protein-energy malnutrition observed among us.



Registro fotográfico do Projeto de Avaliação do Estado Nutricional das Crianças moradoras na favela e o nosso voluntário Tuta, morador da favela que se incorporou ao projeto.

 

Nutritional deficiencies of minerals, vitamins, protein, and calories, associated to a contaminated environment, create a vicious cycle that induce several alterations in the digestive system, mainly a malabsorption syndrome. Currently, it is admitted that the alterations reported in the digestive-absorptive function represent a summation of effects, among possible others, between malnutrition itself and the changes observed in the intestinal microbiota. Careful studies on pancreatic structure and function indicate that the zymogen granules are decreased in the severe protein-energy malnutrition and that after the stimulation with secretin and pancreozymin, pancreatic output is also markedly reduced. The enzyme activity of the pancreatic output is lower than normal, lipase, trypsin, chymotrypsin, and amylase being reduced in that order.



In severe protein-energy malnutrition the intestinal wall becomes thin and hypotonic, and the enteric mucosa can show histological abnormalities in variable degrees of severity. In general, it can be said that in kwashiorkor the villi aberrations although significant are non-specific. However, some authors have shown severe alterations like those observed in untreated celiac disease, in as many as 10-60% of the patients. The enterocyte may show a cuboidal transformation and the mitotic index of the crypt cells remains practically normal, while the crypt glands may be found to be elongated.

In marasmus patients, on the other hand, the morphological studies of the intestinal mucosa have shown controversial results. Brunser et al. did not find significant changes in the small intestinal morphology but have shown a low mitotic index in the crypt cells, suggesting a low rate of cellular proliferation in the crypt glands. In our experience, on the other hand, we have found alterations in varying degrees in the intestinal morphology in 63% of the studied patients. In half of the studied material the abnormalities were found to be non-specific, and we never found total villous atrophy like that described in celiac disease. In 54% of the patients, however, the small intestinal mucosa showed a very peculiar morphological pattern of alteration that we called Diminished Villi Population.




Alterações morfológicas da mucosa do intestino delgado com atrofia parcial das vilosidades e aumento da distância entre elas, caracterizando população vilositária diminuída (Tese de Mestrado por mim apresentada e aprovada com nota máxima ao IBEPEGE em abril de 1977). 





The digestive-absorptive function is impaired and patients suffering from severe protein-energy malnutrition show steatorrhea and a marked decrease in the D-xylose absorption test, the second hour being significantly higher than the first hour. This observation may be due to a delayed gastric emptying and/or intestinal hypomotility.

Dean et al, in 1952, were the first authors to indicate the possibility of lactose or other carbohydrate intolerance in malnourished patients. Disaccharidase deficiency, mainly lactase in up to 82% of the patients and sucrase in up to 54% have been exhaustively reported in malnourished children. The well-known deleterious effects of carbohydrate malabsorption, therefore, can be seen not only to lactose intolerance, but also with sucrose intolerance, and even in the more severe cases glucose malabsorption have been described in the classical papers published by Lifshitz et al. In our personal experience with marasmus patients 73% showed lactose, 23% sucrose and 5% glucose malabsorption. 

A striking feature described in protein-energy malnutrition is small intestine bacterial overgrowth. In normal condition the stomach, duodenum and upper jejunum are practically sterile or have a sparce microflora consisting predominantly of Gram+, facultative microorganisms, that are derived from the oral cavity, colonizing the stomach and the upper bowel in a variable wave like fashion following the meals. The distal portion of the ileum shows a change of the flora composition with the appearance of Gam- microorganisms such as coliforms and anaerobic Bacteroides. In the colon an evident change in the number and types of microorganisms can be seen and of note is the increase in the anaerobic population.

The acid gastric secretion, the secretory IgA production, the bile salts, and the intestinal peristaltic movements are the most important regulatory mechanisms that maintain the equilibrium of the microflora, avoiding an abnormal bacterial overgrowth.

In protein-energy malnutrition most of these regulatory mechanisms are deranged. Gastric achlorhydria, intestinal hypotonia and hypomotility, and immunological deficiencies have been described in malnourished children. These factors acting together with the lack of sanitary environmental conditions will favor a chronic bacterial overgrowth in the small intestine of these children. This bacterial overgrowth is considered one of the most important causes of malabsorption reported in malnourished children.

The bacteria compete with the host for food and attack proteins, folic acid, vitamin B12, nondigested carbohydrate, and for this reason may provoke nutritional depletion in the host.  Intestinal bacteria present in the upper portions of the small intestine, especially the anaerobes, cause deconjugation of the primary bile salts and 7 alpha dehydroxilation. The lowered concentration of the conjugated bile salts together with the transformation in secondary bile salts may result in fat malabsorption when they are reduced to a concentration below the critical micellar level. The presence of deconjugated and secondary bile salts in the jejunum otherwise defaulting fat absorption, will damage the intestinal mucosa and impair glucose absorption by the enterocytes. Bacterial proliferation into the jejunal lumen also competes with the host in carbohydrate absorption causing fermentation with the production of osmotically active particles increasing water loses leading to metabolic acidosis.

In conclusion as you can see now it is easy to answer why malnutrition and diarrhea constitute a binomial complex that come almost always together and becomes easier to explain why the experimental conditions not always reproduce the exact model observed in the clinical practice dealing with malnourished children. The environment makes the whole difference due to lack of sewage, no potable water supply, leading to contaminated foods, precocious weaning, no hygienic education, numerous proles, low family income, all together acting as the trigger factor of the vicious cycle malnutrition-diarrhea. This binomial complex is one of the numerous challenges that Health Care Professionals must face and try to solve in the underdeveloped countries. Thank you.



Projeto de implantação de promoção do aleitamento natural na comunidade da Favela Cidade Leonor: uma profilaxia temporária retardando a ocorrência da Enteropatia Ambiental (Teses de Mestrado em 1988 e Doutorado em 1993, de Fatima Lindoso, por mim orientada apresentada ao curso de Pós-Graduação da Escola Paulista de Medicina).

 

Nota de Esclarecimento

1-   As fotos registradas nesse trabalho não coincidem necessariamente com a cronologia da palestra proferida, posto que a maioria delas foi obtida após o meu retorno ao país.

2-   Toda a documentação fotográfica exposta nesse documento foi por mim realizada, exceto naquelas fotos em que estou presente. 

3-   A documentação fotográfica realizada no Parque Indígena do Xingu (PIX), foi registrada entre 1970 e 2000, intervalo de tempo em que trabalhei na referida área por meio de visitas anuais.

4-   O trabalho de campo realizado na Favela Cidade Leonor  tratou-se de um projeto de assistência e pesquisa da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina (EPM), por mim coordenado, como parte do Programa de Pós-Graduação da nossa instituição, a partir de 1981, envolvendo Mestrandos e Doutorandos, e que resultou na elaboração de inúmeras teses de Mestrado e Doutorado.

5-   A Favela Cidade Leonor foi erguida  a partir dos anos 1950, às margens do córrego da Água Espraiada, o qual nasce na região do ABC e desagua no rio Pinheiros. Informações mais detalhadas deste trabalho de campo, estão descritas no Livro “Enteropatia Ambiental. Uma consequência do fracasso das políticas sociais e de saúde pública”, por mim escrito e  editado pelo Editora REVINTER em 1996.