Prof.
Dr. Ulysses Fagundes Neto
Conclusões
As
atuais orientações diagnósticas levam em consideração novas evidências, a
maioria delas advindas de inúmeros estudos, inspiradas pela publicação de normas
prévias. Nem todas os postulados das diretrizes de 2012 foram baseados em um
grau similar de evidência. A maioria dos estudos informativos conduzidos em
anos recentes, têm confirmado a substancial correção das guias de conduta de 2012,
porém, ao mesmo tempo indicam que é necessário considerar que o processo está sempre
em evolução e, ainda assim, distante de ser concluído.
Meus
Comentários
A
Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade autoimune caracterizada pela intolerância
permanente ao glúten da dieta contido no trigo, cevada e centeio. A DC
apresenta uma característica extremamente peculiar em relação às outras
enfermidades autoimunes, porque para que ela ocorra é necessário que exista a
contribuição de um fator ambiental-alimentar, claramente identificável (o
glúten), associado à presença, no paciente, de um Antígeno de
Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante, DQ2 ou DQ8.
A DC
é, portanto, o resultado da interação entre o glúten e fatores imunológicos,
genéticos e ambientais. A gliadina, a fração solúvel em álcool do glúten, é uma
proteína rica em aminoácidos de glutamina e prolina, e que é pobremente
degradada pelas enzimas digestivas. As moléculas não digeridas da gliadina
atravessam a barreira de permeabilidade intestinal, provavelmente durante um
processo infeccioso ou quando há um aumento da permeabilidade por qualquer
outra razão, e interage com as células apresentadoras de antígeno da lâmina
própria da mucosa intestinal.
É
fato reconhecido pelos historiadores que há cerca de 10.000 anos não havia
grãos contendo glúten na natureza, e, portanto, presumivelmente, também não
existia a DC. Com o advento da agricultura, o trigo e outros grãos contendo
glúten passaram a ser cultivados extensivamente, o que veio a fornecer um dos
dois elementos chave, o outro é a predisposição genética, para a ocorrência da
DC (Figura 1).
Entretanto,
foi somente no século I da era cristã que Areteus da Capodócia relatou de forma
científica a primeira descrição da DC. Ele descreveu as fezes características,
o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência na mulher e a
possibilidade de crianças serem afetadas. Nos tempos mais recentes, no entanto,
deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra, a descrição em seu livro “On the
celiac afection”, (a palavra Celíaco tem origem no grego e quer dizer “ventre
abaulado”) muitas das características clássicas pelas quais ainda atualmente a
DC se apresenta, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as
idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos”. Gee sugeriu ainda que a DC
ocorreria por um erro dietético, e que a cura poderia ser alcançada pela
introdução de uma dieta adequada. Mas, foi somente 60 anos mais tarde que o
pediatra holandês Willem Karel Dicke, em 1950, acompanhando diversas crianças
com deficiência pondero-estatural e esteatorreia em Haia e Utrecht, provou o
efeito deletério do trigo. Ele demonstrou que a fração proteica do trigo, o
glúten, em especial a gliadina, é o fator responsável pela instalação da DC. Porém,
neste intervalo de tempo inúmeras teorias para explicar sua causa foram
propostas, assim como as mais variadas tentativas terapêuticas, as quais estão
disponíveis na literatura médica. Por exemplo, Schultz, em 1904, atribuía a
causa da DC a uma alteração da flora putrefativa intestinal, enquanto que
Herter e Holt, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora de lactobacilos;
Henfner, em 1909, considerou a existência de uma grave insuficiência digestiva
após o desmame e preconizava a utilização do leite humano. Haas, em 1924,
revolucionou o tratamento dietético propondo algo totalmente inédito para sua
época, a dieta de banana, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais, a
qual baixou de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e por isso tornou-se
muito recomendada até 1950. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus
pacientes com DC apresentava um agravo do distúrbio diarreico em seguida à
ingestão de alimentos contendo amido; a criança revelava intensa idiossincrasia
a alimentos como biscoito, pão e farináceos. Ainda em 1932, Parsons fez uma
revisão de 94 casos de DC ocorridos na infância e reconheceu que enquanto as
crianças eram amamentadas exclusivamente ao seio materno não apresentavam
sintomas sugestivos da enfermidade. Afirmava, também, que a DC podia afetar
igualmente adultos e crianças, chamando a atenção para a grande variabilidade dos
sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o
desencadeamento da enfermidade. Em 1934, Luell e Campos descreveram as
alterações radiológicas presentes na DC: “motilidade intestinal diminuída,
alterações no padrão da mucosa jejunal com ausência do pregueamento
característico e fragmentação da coluna de bário”.
Mas,
indiscutivelmente, o grande salto de qualidade na melhor compreensão dos
efeitos deletérios sobre o organismo provocados pela DC se deveu ao
esclarecimento da sua etiologia pelo Professor Dicke. Ele observou que na
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante o período da ocupação nazista na
Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão (durante
o racionamento não havia disponibilidade de alimentos contendo glúten, e sim
outros alimentos contendo carboidratos complexos, como o amido, que embora em
pequena quantidade, ainda estavam disponíveis para o consumo), paradoxalmente
as crianças portadoras de DC apresentavam uma melhora clínica. Dicke observou
também que, durante as internações, quando os pacientes seguiam uma dieta livre
de glúten havia uma diminuição da diarreia com desaparecimento da esteatorreia
e retomada da normalidade da curva de crescimento. Por outro lado, Dicke notou
que após o término da guerra estas mesmas crianças vieram a apresentar uma
deterioração clínica quando os Aliados, através do plano Marshall, passaram a
suprir alimentos à população, particularmente o pão. Subsequentemente, Dicke
publicou uma série de artigos comprovando claramente a associação do trigo e da
cevada como causadores da DC.
Vale
ressaltar que a primeira descrição da realização da biópsia do intestino
delgado se deve a um médico argentino Dr. Royer, que publicou sua façanha na
Prensa Médica Argentina, em 1956. No mesmo ano a médica inglesa Dra. Margot
Shiner realizou a primeira biópsia de intestino delgado em um paciente com DC e
publicou seu feito na revista inglesa The Lancet. Mas somente no início da
década de 1960 passou-se a dispor de um equipamento apropriado para a
realização rotineira de biópsias de intestino delgado, o qual foi criado por
Crosby e Kugler. Vale ressaltar que Crosby era um hematologista que estava
interessado em estudar a absorção intestinal de ferro. Para tal se associou ao
engenheiro mecânico Kugler para desenvolver um instrumento que pudesse obter
amostras de fragmentos de intestino delgado, cujo instrumento acabou sendo
batizado de cápsula de Crosby-Kugler. Esta cápsula, sem dúvida alguma resultou
no avanço mais espetacular para propiciar o estudo das lesões morfológicas da
mucosa intestinal na DC, tornando-se, desde então, até os dias atuais, o padrão
ouro no diagnóstico da DC.
O primeiro
caso com comprovação diagnóstica documentada com biópsia de intestino delgado,
no Brasil, foi descrito e publicado em 1976, pelo nosso grupo da Gastropediatria
da Escola Paulista de Medicina, constituído naquela ocasião por Ulysses
Fagundes Neto e Jamal Wehba, após meu retorno da especialização realizada no
Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, em 1973, sob a orientação do
saudoso Dr. Horácio Toccalino, (Figuras 2-3-4-5-6) (Fagundes Neto, U. Ped.
Prát. 47(11-12): 23-26, 1976).
Figura
2- Nosso primeiro paciente com DC no momento da internação evidenciando
desnutrição grave e grande irritabilidade.
Figura
3- A DC na sua expressão mais intensa de desnutrição, a caquexia.
Figura
4- Nosso paciente alguns dias após o diagnóstico e em dieta isenta de glúten.
Começava a recuperar a sociabilidade perdida e a se interessar pelas coisas ao
seu redor, inclusive os brinquedos.
Figura
5- Comparação nutricional do nosso paciente no momento da internação e após
alguns meses em dieta isenta de glúten, com total recuperação clínica e
nutricional.
Figura
6- A importância do diagnóstico correto e cumprir com rigor a dieta isenta de
glúten, sem permitir quaisquer transgressões, ainda que esporádicas.
Depois
desta primeira descrição muitos outros casos, até então considerados pacientes
portadores de desnutrição por verminose ou problemas de ordem sócio-econômica,
vieram a ser também diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC
no nosso meio é tão frequente quanto aquela descrita em outras regiões do mundo
de 1:100 indivíduos.
O
diagnóstico da DC, como é do conhecimento geral, baseia-se nas alterações
morfológicas da mucosa do intestino delgado, as quais embora não sejam
patognomônicas, são altamente características, levando a graus variados de
atrofia vilositária, infiltrado linfocitário intra-epitelial e hiperplasia das
glândulas crípticas (Figura 7).
Figura
7- Microfotografia de biópsia do intestino delgado, em microscopia óptica
comum, grande aumento, de paciente portador de Doença Celíaca evidenciando
atrofia vilositária total, hiperplasia das glândulas crípticas e aumento dos
linfócitos intra-epiteliais.
Vale
ressaltar que os sintomas e as lesões morfológicas do intestino delgado são
totalmente reversíveis com a introdução de uma dieta isenta de glúten restrita (Figura
8).
Figura
8- Microfotografia de biópsia do intestino delgado, em microscopia óptica
comum, grande aumento, de paciente portador de Doença Celíaca 6 meses após
início da dieta isenta de glúten. As vilosidades intestinais encontram-se
digitiformes, as glândulas crípitcas normais e o infiltrado linfo-plasmocitário
da lâmina própria discreto, células epiteliais cilíndricas com núcleo em
posição basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta
4ou5:1.
Presentemente,
os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa
intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos
por Marsh, em 1992 (Figuras 9-10).
Figura
9- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da
Doença Celíaca.
Figura
10- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na Doença Celíaca.
Marsh
classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes
graus, a saber: Grau 0, estágio pré-infiltrativo (normal), Grau 1, lesão
infiltrativa (aumento do número de linfócitos intra-epiteliais), Grau 2, lesão
hiperplásica (Grau 1 + hiperplasia das criptas), Grau 3, lesão destrutiva (Grau
2 + atrofia vilositária parcial), Grau 4, lesão hipoplásica (atrofia
vilositária total com hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para
ser subdividida em Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia
vilositária subtotal) e Grau 3c (atrofia vilositária total).
A
existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é
aceita como claro aspecto diagnóstico da DC. A ocorrência de lesão Marsh Grau 2
associada à positividade de marcadores sorológicos é altamente sugestiva da DC.
A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica,
porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores
sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação
deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário repetir a biópsia do intestino
delgado, ou então, indicar o emprego da dieta isenta de glúten e após 6 meses repetir
os testes sorológicos e a biópsia do intestino delgado.
Muito
embora eu nutra um profundo respeito pelo grupo de trabalho da ESPGHAN sinto-me
no direito de discordar especificamente quanto ao critério diagnóstico não-biópsia, pelas seguintes razões, a saber:
1-
Os testes sorológicos ainda que se revistam
de extraordinária importância como rastreamento diagnóstico da DC nem sempre
apresentam 100% de sensibilidade e especificidade. Além disso, podem apresentar
variabilidade dependendo da metodologia de cada laboratório e dos diferentes
locais aonde os testes são realizados.
2- Por outro lado, atualmente a endoscopia
digestiva alta passou a ser um exame extremamente seguro, rotineiro na prática
médica, desde longa data, e praticamente de domínio universal. Além disso,
durante a realização do próprio procedimento é possível se fazer uma avaliação macroscópica
inicial ao se visualizar, pela lupa, na estrutura da mucosa duodenal, a
ausência das pregas de Kerkring. Isto permite que as biópsias possam ser
dirigidas diretamente para estas áreas focais de lesão, posto que as alterações
da mucosa não são necessariamente sempre difusas.
3- Considerando-se que estamos tratando de uma
enfermidade que envolve uma intolerância permanente ao trigo, centeio e cevada,
alimentos que fazem parte fundamental da nossa cultura alimentar ocidental,
parece-me indispensável que tenhamos a absoluta certeza do diagnóstico
definitivo de DC. Esta certeza é a base para que possamos transmitir, com total
confiança aos pais e aos pacientes, a imperiosa necessidade para que seja cumprida
de forma restrita a dieta isenta de glúten.
4-
Como é do conhecimento geral, a necessidade da
adesão a uma dieta isenta de glúten de forma restrita diz respeito à prevenção
de uma série de potenciais efeitos colaterais da DC, quando ocorrem
transgressões dietéticas. Dentre os inúmeros efeitos colaterais podemos citar
osteoporose, deficiências das vitaminas lipossolúveis, parada do ritmo de
crescimento, outras enfermidades autoimunes (Diabetes, Tireoidite), neoplasia
intestinal etc.
Isto
posto, devo reafirmar a importância da realização de oficinas de trabalho, como
a atual publicação, que leva em consideração as revisões sistemáticas baseadas
em evidências, valorizando acima de tudo a ciência, a despeito da possível
existência de algumas menores discordâncias, posto que a Medicina não é uma
ciência exata.
Referências
Bibliográficas
1-
Husby S – JPGN 2020; 70:141-157
2-
Husby S – JPGN 2012; 54:136-60
3-
Ludvigsson JF – Gut 2014; 63:1210-28
4-
Rubio-Tapia A – Am J Gastroenterol 2013;
108:656-76
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